Crianças Industrializadas

A Senhora encarava pacientemente as prateleiras do supermercado.Via vários robôs exatamente iguais.Todos eram iguais.Meninos e meninas de porte físico normal.Não queria nenhum deles.Queria um menino gordinho.Adorava as crianças gordas.Ela as achava tão fofas a ponto de querer apertá-las com seu abraço e sufocá-las com todo o amor e carinho que poderia conceder.

Aproveitou o fato de estar naquele lugar em um fia de menor procura para comprar um robô.Afinal,nunca se viu uma recepção tão positiva em relação a algo tão “revolucionário” quanto filhos-robôs.Até porque quando se vive em um planeta cada vez mais carente de recursos e juventude,qualquer solução é aceitável.

A Senhora finalmente achou o modelo que estava procurando por vários minutos a fio.O modelo Jumbo 4.Um menino gordo,de pele extremamente branca,cabelos castanhos e olhos da mesma cor,guardado em uma caixa de papelão branco,visualizado através de uma película de plástico,tal qual uma boneca.Ela pegou a caixa e assustou-se com o verdadeiro peso do robô,quase deixando-o cair.Presumia ser mais leve.Correu para um carrinho e compras próximo à ela,a fim de deixá-lo nele.Quase o largou no chão.

Ela prosseguiu ao caixa.Assim como muitos dos supermercados,os caixas eram automatizados.Como o acesso ao Ensino Superior era facilitado à todos,ninguém tinha a necessidade em trabalhar nos chamados “subempregos”.

Enquanto o computador registrava o pagamento a partir dos seu cartão,ela olhou para o vidro do monitor,iluminado pela reconfortante luz do sol ao final da tarde.Mesmo sendo casada,se achava jovem demais para receber o título de “Senhora”.

A contemplação do seu reflexo no vidro terminou subitamente,ao som da impressão da nota fiscal.Ela a pegou e colocou a pesada caixa no seu carrinho.Iria voltar para casa carregando-o.Presumia nenhum perigo na sua volta,tanto que nem tirou o carro da garagem.

A jovem Senhora caminhava pela calçada,observando o cansado sol dar lugar à um céu esbranquiçado pelas nuvens.Ela virava seu rosto e olhava no espaço ao seu redor os adultos e as crianças tendo contato com robôs.Uma mãe passeando de mãos dadas com uma menina,gêmeos brincando com um irmão mais velho,um pai andando com um menino sobre os seus ombros…

Não conseguia ver filhos.Não conseguia ver irmãos.Só via máquinas.Pedaços de metal retorcido,dotados de comportamentos humanos.Ela se perguntou,indignada:”Como poderíamos desperdiçar algo tão humano em coisas tão frias?”.

De repente,ela sentiu algo puxando a sua saia.Virou-se em direção à quem a estivesse lhe puxando,pensando que era um pedinte.Porém,no momento que ela se preparou para disparar uma desculpa de que estava desprovida de dinheiro,a sua visão a chocou.

Era uma menina.Somente uma menina.Uma menina sentada sobre a calçada.Pele branca,mancha pela sujeira acumulada,graças às noites dormidas sobre o concreto frio.Um vestido vermelho,com formas brancas em forma de rosas,desbotado e levemente rasgado em diversas regiões.Cabelos loiros sujos e olhos azuis que imploravam por amor.Folhas de papel rasgadas,amassadas e moribundas.Lápis de cor quebrados,roídos e muito longe de estarem apontados.

Aquela cena foi capaz de carregar seus olhos com a mais forte das tristezas.Achou que ela queria alguns trocados.Abriu sua bolsa e procurou incessante nos seu interior,procurando por algumas moedas para que diminuíssem a expressão contaminada pela infelicidade.

Não achou nenhuma.No momento no qual voltou a face para a menina,com o intuito de dar uma desculpa sincera,ela viu que ela segurava alguma coisa.

Ela segurava um desenho.Tinha traços típicos de uma criança de sua idade.As cores borradas mostravam uma pessoa baseada na Senhora.Os mesmos sapatos pretos.O mesmo casaco marrom-claro.A mesma pele escurecida.O mesmo chapéu vermelho.Estava de mãos dadas com a garota sentada ao chão.Haviam dois nomes sobre elas.”Eu”,ligado à garota,e “Mamãe”,ligado à Senhora.E,na borda da folha,havia mais um personagem.A caixa do robô,jogada numa lata de lixo.A palavra “Lixo” denotava o círculo que destacava a lata e a caixa semi afundada.

A Senhora tirou o desenho desenho de sua vista e fitou a garota no chão.Ela nutria um olhar esperançoso.Estava certa de que a mulher atenderia seu pedido de ajuda.Desejava que ela o condenasse ao mar de sucata ao qual ele pertence.Queria que ela a acolhesse.Que a alimentasse.Que pudesse chamá-la de “Mãe” e fosse chamada de “Filha”.

Mas não.

A Senhora andou para longe com o desenho em mãos,pedindo desculpas em voz baixa.Não havia como cuidar daquela menina.Não porque não queria ou não se importasse com ela,mas porque,infelizmente,a sociedade não funcionava mais do mesmo jeito.

Evitou olhar para trás.Desta forma,sua tristeza não se tornaria mais pesada do que já estava.

Ela estava sentada sobre uma das cadeiras de madeira de sua cozinha.Sentada perto de uma mesa,olhava fixamente o desenho feito pela menina e se esforçava ao máximo para conter o choro.Sentia como se tivesse cometido um crime cruel e imperdoável.Havia se arrependido profundamente de ter abandonado aquela criança carente de amor.

Ela ouviu passos.Passos pouco pesados.Conseguia identificar quem era por meio do ritmo dos passos.Passos mecânicos e artificiais.

“Algum problema,mamãe?”,disse o robô que tinha a forma de um gordo menino,com uma voz mais artificial que seus passos.Apesar de ter sido programado para chamá-la de mãe,ela não tinha nenhuma vontade de de chamá-lo.Nunca conseguiria chamar um robô em forma de criança de filho.

“Não há problema algum”,disse ela,soluçando.Era incapaz de conter a tristeza derramada pelo seus olhos.

“Tem certeza?Você parece triste”,disse o garoto artificial.Aquela pergunta pareceu estranha.Principalmente quando ele é o emissor.

“Não é nada.Apenas uma forte dor de cabeça”,disse ela,esperando que ele vá embora para outro lugar.

“Quer que eu pegue um remédio?”,ele parecia ter empatia.Parecia mesmo se preocupar com ela.

“Muito obrigado,mas creio que não vou precisar de um.Devo melhorar em um instante”,mentiu ela.

“Tudo bem mamãe.Espero que a senhora melhore logo”,disse ele,com um autêntico sorriso.Saiu da cozinha de um jeito idêntico ao qual veio:Passos artificiais pedados e ritmados.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 13/09/2017
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