A pintura e o Eclipse

Era noite de quinta-feira e estou nessa trilha a mais tempo do que minha mente sã consegue imaginar, a garoa ríspida cai sobre meu rosto e desaba sobre o caminho que sigo, minhas botas estão sujas de barro e tudo que vejo a frente é apenas mais um vilarejo despojado. Sem pensar duas vezes corro para a casa mais próxima, passo pela cerca quebrada e mal cuidada que rodeava a residência pulando pelo portão que alcançava a altura do meu joelho e prossigo pelo caminho de pedras diretamente para a porta fendida passando por árvores mortas e nuas, bato na porta pedindo abrigo recebendo apenas o eco do vazio, olho para trás...

Observo em volta para ver se encontro alguma forma de luz, nada... ando até o meio do caminho de pedras e olho para as outras casas do vilarejo e com o breu da noite e a neblina melancólica nada consigo enxergar... aquele lugar me recordou de várias histórias que minha mãe contava a mim e a meus irmãos, entre eles o conto da cidade sombria e de como os habitantes sumiram de uma noite para a outra sem que corpos pudessem ser encontrados. Minha alma se enche de arrepios ao recordar de tal história e meus braços começam a tremer ao perceber que não havia nenhum sinal de vida desde que cheguei, quando viro em direção à primeira casa que interagi percebo uma cena que me deu ânsia e fez-me regurgitar o almoço, atrás da árvore enegrecida do quintal habitava um corpo felino cuja acabrunhada dona sequer deu-se ao luxo de enterrá-lo.

-Como pode existir um lugar tão morto assim? – Penso – Nenhum animal deve ter que morrer e ficar sem um enterro digno, pelo menos antes de sair do vilarejo vou dar a esse felino o que ele merece por direito – Ando até o corpo do felino e caio de joelhos em sua frente – O que fizeram com você meu amiguinho? – O cheiro de morte preenchia toda a atmosfera do lugar, poucos segundos depois me levanto e tampo o nariz por conta do cheiro, meus olhos lacrimejam em uma mistura de tristeza, chuva e irritação.

Volto em direção a casa, e ao chegar novamente à porta faço força para abri-la, rapidamente ela despenca no chão e parte-se em dois levantando uma nuvem de poeira e caindo em cima de um tapete marrom e vermelho com o desenho de um corvo segurando uma espada e uma fita vermelha no bico que se enrolava nele até às pernas. A sala de estar era grande, com um sofá de 3 lugares vermelho-escuro e uma estante preenchida de livros velhos e empoeirados, de alguma forma aquele lugar era familiar para mim. Quando viro meu rosto para o quadro que se localizava na sala percebo algo de estranho, pois pelo ambiente que compunha a cena do quadro dá-se a perceber que era uma foto familiar, entretanto há uma paisagem e nada mais.

Tomo passo até ao que parece ser a cozinha e percebo que a entrada à esquerda dava entrada a algo que parecia um armazém, passo rapidamente ao lado da mesa tombada que outrora era usada por uma família para se alimentar e me surpreendo ao abrir a porta do armazém sem dificuldades, encontro uma pá jogada no chão e a pego averiguando se ela será o suficiente. Pego-a e volto em direção a entrada com passos pesados e a mente aflita por tal ocasião.

Ao chegar ao local, começo a cavar em frente à árvore e enterro o felino com todo o cuidado e carinho que a ele posso conceder, faço um tempo de silencio e me recordo do tempo que vivia com minha família, das brincadeiras que fazia com meus irmãos e irmãs, meus dois irmãos e minha única irmã, um pai que morreu antes que eu pudesse me dar consciência dele e uma mãe que deu mais do que deveria de si mesmo para criar todos nós, sou o único que restou... a viagem que faço agora não tem motivo, só estou fugindo de uma casa vazia onde presenciei cada uma das pessoas que eu mais amava morrer entre meus braços confesso... e mesmo assim me prendo a ideia de que ela me servirá como uma redenção por não ter dado todo o valor necessário para aquilo de mais valioso que a vida poderia me dar. E em meu surto depressivo de consciência ouço um som vindo de dentro da casa, algo como o miado de um gato.

Corro o mais rápido que posso até que me deparo com algo anormal, caio de joelhos e sem reação perante ao quadro transfigurado com a adição da figura de um gato preto no canto inferior esquerdo do quadro, lágrimas caem dos meus olhos ao ver cena tão exacerbada ante ao quadro que era em outrora, a resposta me era clara, meu trabalho aqui estava feito, volto pelo caminho que fiz depois de guardar a pá e ando até a árvore que existe na entrada do vilarejo para descansar.

Será que se alguém passar por uma situação parecida com a desse gato, algum dia apareceria uma alma bondosa de verdade a ponto de sacrificar seu tempo e sua energia para fazer um enterro a este felizardo defunto que ele não conheceu em vida e não tem nenhum tipo de laço?

Enquanto fecho os olhos, caio em reflexão sobre a vida que este gato deve ter tido antes de realizar o seu último suspiro debaixo daquela árvore, será que ele enquanto vivo ficou muito tempo sozinho? Quem deve ter sido sua família? E por que ele acabou morrendo naquele lugar? Debaixo daquela árvore? E por que aquela casa me parecia tão familiar? Inesperadamente caiu no sono.

Era meio-dia de um sábado e um homem com cabelo cacheado tampava uma cova com a terra que havia retirado em outrora, logo que acabou o serviço se virou para a companheira e pediu um gole de agua. Ela o encara e tira da bolsa uma garrafa pela metade e o entrega. Ele vira para a cova que fez e comentou:

- Como pode existir um lugar tão morto assim? E ele ainda morreu na frente do vilarejo, que azar, não acha, Marie?

Marie exclama:

- Realmente, e nem dá para saber como ele morreu – Ela puxa o homem pela mão e aponta em direção ao outro lado do vilarejo – Vamos Hayts, temos que passar mais três vilarejos até terça senão vamos nos atrasar.

Hayts responde acenando animadamente com a cabeça e corre para deixar a pá que encontrará na casa mais próxima da árvore, adentra a residência e por um tempo o silencio reinou.

- Marie, vem aqui - gritou com entonação de surpresa – Você vai achar isso muito interessante.

Marie se levanta do murinho de pedra que estava sentada, pula delicadamente e se direciona para a residência notando de relance a árvore sem vida que viu em outrora perto da entrada, por sua surpresa ao pé da arvore havia um broto saindo de algo que tivera um dia a aparência de um tumulo, provavelmente muito antigo. Ela entra na casa e vê Hayts na sala de estar encarando a pintura e argumenta:

- O que quer que eu veja? – Disse curiosa.

- Quando a gente olhou o quadro pela primeira vez tinha esse homem? – Disse apontando para a pintura desgastada pelo tempo.

Murillo Othavio
Enviado por Murillo Othavio em 23/01/2018
Código do texto: T6233604
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.