Começo do Fim - Parte 2

No entardecer do terceiro dia, vislumbrou o pequeno vilarejo, por cima das montanhas, onde conseguiu distinguir algumas pessoas, andando pelas ruas, em uma certa normalidade. Mesmo achado que tudo estava normal, decidiu que iria esperar até o amanhecer, não queria arriscar a segurança de suas filhas.

No dia seguinte, seu João acordou cedo, logo após o canto de um galo, que escutou ao longe. Preparou o café e acordou suas filhas, implorando para que ali ficassem, e caso não retorna se que elas procurassem um novo lugar, sabendo que mais a frente existia um rio, e outras possibilidades para tentarem uma nova vida, seguindo seu curso.

Seu João estava apreensivo, com medo que alguém tivesse transformado o vilarejo de São Gabriel em um pandemônio, assim como Santa Clara tinha se tornado. Devagar, desceu o morro, sempre atento a tudo, mas a vida ali parecia seguir o curso normal. Logo na chegada da rua lateral a um conjunto de casas, viu um garoto, que brincava com um pedaço de madeira, usando a como espada, quando os olhos se encontraram o menino tomou um susto, e saiu em disparada para uma das casas. Mantendo o ritmo de caminhada, seu João continuou, e tomou um susto quando um homem, armado com um facão se postou em uma das portas:

- O que você quer aqui? Perguntou o homem.

Seu João com os braços para cima, mostrando que não portava armas respondeu:

- Calma, sou de paz, vim fugindo de Santa Clara, aquilo lá virou um inferno. Estou procurando o Jonas do armazém, é meu primo.

Abaixando o facão, o homem falou:

- Seu Jonas está no armazém, desculpa a recepção, mas é que outros forasteiros apareceram por aqui, e não deu muito certo. Vem comigo que te levo até o armazém. A propósito, meu nome é Marcos. O último que aqui chegou, matou um dos nossos para roubar. Desde então ficamos preparados, sempre alerta a aqueles que aqui chegam.

E a medida que caminhava pelas ruas do pequeno povoado, mais pessoas foram saindo das casas, no total deveria haver umas 50 pessoas, e seu João não via maldade nelas, apenas curiosos que o ficaram encarando como se fosse de outro mundo. Continuou sendo escoltado por aquele povo, até entrara no armazém, onde pode ver seu primo Jonas, dando ordens para alguns homens que ali carregavam sacos:

- Jonas, meu primo, a quanto tempo que não lhe vejo?

- João, seu desnaturado, quanto tempo. O que houve para aparecer por aqui? Onde está sua família?

- As meninas estão bem, em um local seguro, não sabia se por aqui tudo tinha enlouquecido, vim para lhe pedir ajuda. Santa Clara virou um inferno, as pessoas enlouqueceram. Mataram várias pessoas. Não tinha mais condição de ficar lá. Vim buscar abrigo e ajuda.

- Que bom que veio me procurar, as notícias não são nada boas. Pelo que soubemos as cidades estão acabadas. Tudo em ruinas, as pessoas estão matando e saqueando o que sobrou. Tivemos as ultimas noticias a um mês quando um rapaz por aqui chegou. No final acabamos matando o desgraçado que roubou o Mathias e depois o matou. Ouvimos os gritos da esposa dele, e quando chegamos ele estava a estuprando sem o mínimo remorso. O corpo do Mathias ainda estava quente quando chegamos. Mas venha, vamos entrar. Por aqui estamos mantendo as coisas como dá.

- Jonas, vou buscar as meninas. Elas estão em um morro próximo, não vou deixa-las sozinha.

- Está certo. Pedro, Jeremias, vão com meu primo ajuda-lo a buscar minhas sobrinhas. E já sabem, qualquer coisa passa fogo se alguém se meter a besta.

Seu João saiu do armazém com os dois rapazes a tira colo, e subindo o morro através de uma trilha, logo localizou as meninas e as levou em segurança para a casa do primo, que ficava atrás do armazém. À noite, após tomarem um banho de cuia e se acomodarem, jantaram como a muito não faziam, comendo uma galinha caipira com angu e quiabo.

Satisfeitos com a iguaria, as meninas trataram de dormir, agora em camas, como a algum tempo não faziam, sendo necessário apenas encostar para adormecer. Seu João e seu Jonas sentaram na varanda observando a luz da lua que despontava e começaram a conversar:

- Pois é João, graças a Deus que está tudo bem com vocês. Após o começo das notícias sobre a tal febre, fiquei preocupado com o que poderia estar acontecendo em Santa Clara, ouvíamos no rádio que tudo estava maluco. Não tinha como ir te ver, são quase 300 Km cortando a Serra. Fiquei rezando para que você se lembrasse da trilha. Você é o único da família que sobrou. Lembro delas pequenas, quando foi a última vez que nos vimos dez, doze anos?

- É por aí Jonas, a mais velha tinha uns 6 anos e a menor era um bebê. A Amália morreu a uns 5 anos, teve uma pneumonia que a levou para junto do nosso senhor. Não teve como salvar. Nem lhe avisei pois não sabia como estava. Recebi sua carta perguntando sobre as coisas, mas naquele momento de luto não pensava em mais nada a não ser nas minhas filhas. O tempo foi passando e a preocupação com elas se tornou minha única força para viver.

- Fiquei sabendo por um conhecido. Aqui está dando para se viver, ninguém contraiu nenhuma doença, e as plantações familiares continuam nos sustentando, ainda tem galinha, porco e vaca para todos. Nosso prefeito tratou de criar uma barricada a uns vinte quilômetros da entrada da cidade, quem vê a entrada apenas segue reto, tirou qualquer placa que indicasse o caminho, e assim conseguimos viver. De vez em quando aparece alguém, geralmente de passagem, tirando o ultimo rapaz que fez a lambança que te contei. Enforcamos ele em praça pública, pra mostrar as consequências a qualquer um que tiver vontade de fazer besteira.

- Em Santa Clara não foi nada melhor, no começo tudo ia bem, mas o Prefeito tentou estuprar a Claudia, minha mais velha. Peguei no pulo, e cortei o bucho deles e dos capangas, depois disso uma guerra começou, muita gente morreu, quem sobreviveu foi praticamente escravizado pela corja que se apoderou do controle da cidade. Fiquei mais de mês escondido naquela gruta que achamos quando éramos crianças. Lembra? Pois bem, como estava acabando meu estoque de comida, resolvi ver se você ainda estava por aqui. Morrendo de medo que o mesmo tivesse acontecido por aqui. Cheguei na verdade ontem, e fiquei só observando a movimentação.

Ouviram três batidas na porta, e Jonas se levantou para ver quem era. Tudo era iluminado por luz de velas, e os grilos cantavam naquela noite sem nuvens. Jonas voltou acompanhando por um senhor, que em roupas quase elegantes, adentrava a sala:

- João, esse é o seu Mario, nosso prefeito, veio aqui lhe conhecer.

- Prazer seu João, fiquei sabendo de sua chegada, fico feliz que seja primo de seu Jonas, como deve saber, forasteiros não estão sendo muito bem-vindos. Mas o senhor é da família de seu Jonas e da família de São Gabriel Também. Desde que tudo foi fechado seu Jonas tem nos ajudado muito com a logística de distribuição e armazenamento. Não temos muito, mas o suficiente para vivermos. Todos contribuem, todos recebem.

- Obrigado seu Mario, precisávamos de ajuda depois do que houve em Santa Clara.

- Ora, não se preocupe, somos uma grande família aqui. Desde que todos respeitem essa família. Mas agora descanse, e depois retomamos a conversa. Uma boa noite. Até mais ver – disse Mario para os dois.

- Boa noite. – Responderam os dois quase que ao mesmo tempo.

Ficaram ainda um tempo em silencio, contemplando as estrelas. Se despediram e seu João foi até o quarto em que as filhas dormiam. Ficou feliz ao ver que dormiam profundamente, graças as camas e sem ver dormiu também na cama reservada a ele.