Homens desaparecidos

Foi uma rajada curta e rápida. O suficiente para matá-lo. Seu corpo estrebuchou e ficou em uma posição esquisita, parecia uma marionete desmantelada. Ele nem soube de onde veio a morte.. A morte foi rápida. O coitado ainda tem os olhos abertos.

O infrahomem que matei não era muito maior que eu. A única diferença visível entre nossas raças é que eles possuem a pele escamosa e seis dedos em vez de cinco. Nossas duas espécies de resto são muito semelhantes, possuímos a mesma capacidade física e cognitiva, nosso material genético é pouco diferenciado. Somos parecidos também em agressividade e na capacidade de construir e destruir.

Não sabemos ao certo de onde eles vieram, mas eles se estabeleceram aqui e de maneira desesperada lutam para permanecerem. Não existe tolerância entre nossas espécies. A coexistência pacifica não é possível. A hipótese mais aceita é que eles vieram de uma outra dimensão e não conseguiram mais retornar para ela, restando ficar aqui ... só que já havia outra raça presente.

A merda dessa guerra já perdeu o sentido há muito tempo, tudo degenerou para matanças e mais matanças ou lutar por meio metro de terreno conquistado. As missões que o Comando determina praticamente consistem em limpar uma cidade, um quarteirão ou as vezes apenas uma rua. Lutamos, na maioria das vezes, sem saber se estamos vencendo ou perdendo.

Somos cerca de 250 homens espalhados pelos cinco setores do bairro industrial. Estamos distribuídos em dez grupos com vinte e cinco homens cada. Enquanto caminhamos fico pensando que andar por esta cidade moribunda é como passear de mãos dadas com a própria morte, ficamos sempre com a sensação de que a qualquer momento vamos ver a sua face.

Meu grupo ficou com o setor 3, o mais longínquo do centro do bairro. Nossos drones de vigilância antecipada mostram a presença de aproximadamente 600 infrahomens em nosso setor. Claro que os drones deles também mostraram nossa presença. Recebemos o informe de que meu grupo e um outro avançariam em pinça, partiríamos de dois pontos diferentes objetivando comprimir o inimigo até destruí-lo. Tudo muito simples.

Meu grupo de extermínio avança cautelosamente pelas ruas. Ninguém fala em morrer ou em voltar vivo. No nosso ofício sobreviver aqui é apenas preparar-se para morrer logo ali. O medo fez com que substituíssemos a palavra morte pela palavra desaparecer. Sendo assim, quem desaparece não está morto e também não está vivo, apenas não estará presente no próximo combate.

Avançamos noite adentro. O combate é sempre mais duradouro quando é travado a noite. Ao meu lado seguem Hensel e Gurkin, mais atrás estão Vilas, Chang e Bastide. Acredito que todos nós estamos com medo e o medo nós empurra para a luta. Os captadores de calor leem várias fontes a nossa frente. Sabemos a origem dessas fontes...

Um quarteirão mais atrás, chefiando outro grupo, está Folcke que envia a informação de que possivelmente estávamos bem no meio de uma concentração de infrahomens. Cada homem ouviu essa informação em seu rádio individual. Ninguém falou nada. Todos nós sabemos que se recebermos ajuda será somente quando os demais grupos terminarem o seu trabalho.

Avançamos com os sentidos em alerta máximo. De repente começa o inferno. Gurkin é estilhaçado ao meu lado e desaparece. Rapidamente jogamos três ou quatro granadas de fragmentação onde havia maior concentração de fontes de calor. Os gritos de dor que ouvimos são horríveis.

Folcke pelo rádio informa aos gritos que tudo virou um inferno, que três homens seus desapareceram, e que avança para reunir-se ao meu grupo. O rádio fica impregnado com gritos, ordens e uma cacofonia de sons ininteligíveis. Meus homens atiram ao menor ruído ou movimento, ninguém confia nos captadores de calor. Bastide ao meu lado atira com a metralhadora e uma pistola ao mesmo tempo. Nossas pistolas com cartuchos explosivos já estão praticamente sem munição. No alto de uma janela diviso quatro ou cinco cabeças azuladas. Atiro em direção a elas com a metralhadora. Chang ao meu lado desaparece em um piscar de olhos. Pelo rádio do capacete eu escuto gritos e explosões, gemidos e tiros.

Após um tempo totalmente impreciso consigo entrar em um porão com Vilas, Hensel e Bastide. Lá fora ouvimos mais tiros e gritarias. Estamos em silêncio, cada um imaginando como foi que conseguiu ainda estar vivo em meio a esse inferno todo. Precisamos nos reorganizar.

Passaram mais de duas horas, não se escuta mais nada. Vilas monta guarda na entrada do porão. Bastide explora o lugar onde nos metemos. Tento falar pelo rádio com o resto do grupo de exterminadores, escuto que alguém está ferido, mas não sabe dizer onde está. Foi apenas isso que escutei. Silêncio no rádio.

As horas escoam. Estamos calados. Fazemos um reordenamento das munições que nos restam. Restam-nos várias granadas de fragmentação, umas poucas granadas cegantes e ainda temos muitos cartuchos para metralhadoras. Avaliamos que talvez não sejamos mais de sessenta soldados em todo o bairro e que o inimigo nos supera na proporção de quatro para um.

Estamos há três dias nesse porão. Possivelmente o Comando está organizando outra expedição para cá. Mas não sabemos quando virão. Nossas esperanças são poucas pois há dois dias que não recebemos nada pelo rádio. Nossas opções são mínimas. Estamos sem água e alimentos. Acho que mais cedo ou mais tarde teremos que sair daqui. Sairemos para matar ou desaparecer ...

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 04/03/2018
Reeditado em 05/03/2018
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