Coisas estranhas

Já se aproximava o início da primeira vigília - e, portanto, hora de encerrar o expediente - quando o telefono do escritório começou a bater no seu pequeno gongo de bronze. Apanhei o bastão do fone e com a outra mão, levei o auscultador de latão à orelha.

- Caligo Psicopompos, bonum vesperam.

- Bonum vesperam - respondeu uma voz cansada de mulher. - Com quem falo?

- Publius Secundinius, ao seu dispor. Em que posso servi-la, domina...?

- Considia Pascentia. Recebi boas recomendações de vocês por parte de uma de suas clientes, Statia Collatina, minha amiga...

- Pois não - lembrei-me que Collatina era uma velha avarenta, regateava por asses.

- ... e gostaria de saber o quanto cobram para fazer uma limpeza espiritual completa.

- Para isso, seria melhor agendar uma visita ao local - respondi calmamente. - Cada caso, é um caso. Onde vive, domina?

- Villa Trancoso, norte de Pax Julia.

Isso dava cerca de 120 milhas desde Ebora Cerealis, onde a Caligo tinha sua sede. Com trânsito bom, cerca de duas horas pelo laofório que ligava as duas cidades lusitanas.

- As despesas de transporte correm por sua conta e devem ser pagas antecipadamente, bem como a taxa de visita - alertei. - Isso independe se vamos ou não aceitar o serviço.

- De quanto estamos falando?

Olhei para o ábaco de contas de âmbar que mantinha sobre minha mesa, mas nem toquei nele. Fiz o cálculo de cabeça.

- São 120 milhas, ida e volta, mais taxas... 15 denários.

A mulher bufou no meu ouvido.

- Quinze denários apenas pela visita?!

- Caso a domina nos contrate, abatemos este valor do total dos serviços - tranquilizei-a.

- Mas isso praticamente me obriga a contratá-los - relutou ela.

- A domina sempre poderá recorrer a outros psicopompos - ponderei.

- Está bem - rendeu-se ela por fim. - Vocês foram bem recomendados. A que horas, amanhã?

- Entre a sétima e a oitava, pode ser?

- Combinado. Vou mandar um escravo aguardá-lo na estação do laofório.

- Agradecido - respondi, finalizando a conversa.

* * *

Na manhã seguinte, depois de narrar um resumo do acontecido ao meu sócio, Tertius Acilius, e checar via interrete se os quinze denários haviam sido creditados em nossa conta (positivo), chamei um taxiraeda que passava e disse-lhe que tocasse para a estação do laofório de Ebora Cerealis.

- Tem alguma preferência de itinerário, dominus? - Perguntou-me o condutor, um peregrino de aparência gaulesa, com bigodes ruivos caídos nos cantos da boca, e brincos de ouro nas orelhas.

- Não é um passeio turístico - atalhei. - Vá pelo caminho mais curto.

- Pois não, dominus.

O condutor dirigia bem e rápido o seu pequeno veículo de três rodas. Desviamos das ruas congestionadas pela feira agrícola semanal, passamos por trás do templo de Ceres e finalmente vi-me na estação que servia de terminal para as diversas linhas de laofórios. Paguei dois sestércios pela corrida e dirigi-me ao guichê onde eram vendidas as passagens para Pax Julia: um denário, informou a atendente, uma peregrina dentuça, possivelmente britânica. Caro, poderia-se pensar, mas os laofórios eram destinados primordialmente aos cidadãos romanos; os peregrinos menos abastados que se virassem com os autoraeda públicos, puxados por juntas de bois ou burros.

- O dominus é um registrador de maldições? - Perguntou-me a atendente, curiosa.

- Não. Psicopompo - retruquei, um tanto ofendido pela comparação.

- Desculpe, dominus - ela me deu um sorriso simpático. - É que ternos pretos como o seu, não são muito comuns...

O laofório, de três eixos e movido a etanol de vinho, era confortável, com bancos de madeira revestidos de mantas de lã, e contava com serviço de bordo, já que a velocidade máxima não ultrapassava 60 milhas por hora. Nas quase três horas que durou a viagem até Pax Julia, foram servidos pão com azeite, figos e água, já que o consumo de bebidas alcoólicas em veículos automotores era proibido por lei.

Finalmente, pouco antes da hora sétima, desembarcamos na estação de laofórios do nosso destino, e, carregando minha maleta, caminhei para o grupo de espectadores que aguardavam a saída dos passageiros, alguns deles erguendo placas de madeira com nomes que identificavam seus clientes. Percebi rapidamente um rapaz magro, túnica amarelada de escravo, que exibia uma placa onde se lia em letras brancas "CONSIDIA PASCENTIA". Aproximei-me dele.

- Sou Publius Secundinius - identifiquei-me.

Ele abaixou a placa e fez uma vênia.

- Me acompanhe, dominus.

Saímos da estação e atravessamos a rua, onde estava estacionado um císio puxado por um cavalo baio. O escravo deu um asse ao guardador e sentei-me ao lado dele, no único banco do veículo. Ele estalou o chicote e partimos para a Villa Trancoso.

- Quanto tempo até lá? - Indaguei.

- Menos de duas ampulhetas - calculou.

* * *

Levamos menos tempo do que isso, e após sairmos da cidade e trafegarmos em meio a campos de trigo maduro, chegamos à residência de minha contratante. Não era exatamente suntuosa, nem eu esperava isso tomando por base o veículo que mandara para me buscar. Comecei a fazer uma conta mental de quanto cobraria pelos meus serviços, partindo do pressuposto de que lidaria apenas com uma limpeza espiritual padrão. Mas, como tomei conhecimento pouco depois, não era bem disso que se tratava.

A dama, viúva como vim a saber, recebeu-me no triclínio da residência. Pareceu-me ter mais do que os seus quarenta anos declarados e pintava o cabelo de louro; bolsas sob os olhos, mãos trêmulas.

- Meu marido morreu há dois meses, - explicou com ar vago - e receio que tenhamos sido vítimas de alguma maldição. Mas não adianta chamar um registrador de maldições se sequer se sabe quem poderia ter nos amaldiçoado, não é?

- Muito perspicaz - tive que reconhecer.

- Por isso pedi que viesse hoje, - prosseguiu ela - posto que temo estar sendo vítima da mesma força maligna que vitimou meu marido.

Perguntei-lhe como havia morrido o falecido e ela me deu uma série de detalhes que começaram a montar o quebra-cabeças em minha mente. Era um problema menos de espíritos e mais de velhos hábitos que as pessoas teimavam em manter, particularmente em cidades menores e regiões rurais como aquela.

- Eu poderia ver a sua adega? - Indaguei.

- Naturalmente - acedeu ela. - Eleutério irá levá-lo.

Eleutério era o escravo que fora me buscar na estação.

Fomos até a cave. Como eu previra, além das tradicionais ânforas de cerâmica dispostas em prateleiras, havia recipientes metálicos usados para ferver o vinho. Dei por encerrada a investigação e voltei ao triclínio para comunicar as más novas à domina.

- A maldição que matou o seu marido e que dará cabo de toda a sua família, se não tomar providências imediatas, chama-se "stagnum".

- Stagnum? - Ela encarou-me surpresa.

- Isso mesmo; o vinho doce, fervido em vasos revestidos de chumbo. Nunca se perguntou porque as plaquetas de maldição são escritas em chumbo? Os eflúvios e miasmas mais terríveis aderem neste metal e enlouquecem e matam os que se enganam com seu sabor doce!

Obviamente, não disse à ela apenas para destruir todos os vasilhames revestidos de chumbo usados na preparação de alimentos. Para remover de uma vez por todas qualquer possibilidade de que o mal voltasse à se manifestar na Villa Trancoso, tornava-se necessário um completo ritual de exorcismo.

Esses rituais, como podem imaginar, não custam barato.

- [27-03-2018]