Um Conto Semita

I

A água começava a criar poças no chão. Já fazia mais ou menos duas horas que ele tinha reconhecido a fonte de onde ela vinha; um furo pequeno, quase uma picada de mosquito na lataria do navio, mas que em algumas horas ia matar todos lá dentro.

No quarto não tinha nada de especial; um notebook em cima da escrivaninha, a cama encostada na parede que dava no corredor, uma estatuazinha de Iemanjá, presente da ex e várias coisas que ele nem reparava. Não sabia há quanto tempo estava no navio nem para onde ia; o pai arranjou tudo e lhe deu a passagem, dizendo que precisava de vida nova.

Quatro dias atrás, num almoço festivo de natal ou páscoa, o rapaz ouviu uma conversa entre três amigas, comentando os rumores de um disco voador, avistado sobrevoando o navio. Ninguém sabia quem tinha começado o rumor nem quem tinha visto primeiro, mas o capitão tinha resolvido que isso era caso de emergência e impedido a galera de sair a noite.

Passou uns dez minutos até o telefone tocar.

II

A primeira ideia que teve foi não fazer nada, deixar tocar que uma hora para. Mas o barulho insuportável do negócio fez ele mudar de ideia. Era um amigo de internet que ele nunca tinha visto pessoalmente. Ligava porque ficou sabendo das naves. O som vazava do altofalante.

É melhor sair daí enquanto é tempo. Ninguém sabe o que elas querem, podem estar atrás de comida.

O rapaz no telefone claramente não entendia do que estava falando. Os alienígenas não comem gente, eles comem vaca e transam com gente. E nisso não faziam grande oposição a eles próprios. Além do mais, o capitão deixou ordens claras para não sair do quarto. Ainda mais com essa chuva.

Você pode ficar na minha casa, só por favor sai desse navio!

Ele sequer sabia do vazamento. Isso parece ter divertido o garoto. Ele disse que não dava pra sair do barco. Ao dizer isso, se despediu e desligou a chamada.

Ouviu um estrondo do lado de fora, seguido de uma forte luz turquesa; talvez a primeira luz que deixou o som passar na frente, tamanha a inércia. O rapaz olhou para baixo, a água já estava na altura das canelas. O furo aumentou? Talvez o tempo tenha passado mais rápido.

III

Os vizinhos entraram no quarto ao lado. Um homem, sua mulher e a mãe dela. O homem está agitado:

- Você não me disse que a sua mãe tinha enjôo. O que a gente vai fazer agora?

- Eu não sei! - respondeu a mulher. - Ela guardava os remédios na bolsa; será que ela esqueceu de tomar?

- Ugh! - gemeu a velha. - Foi o vinho. Eu disse pro Capitão que eu não podia com vinho.

- Pro inferno com esse capitão. Cadê a porra dos comprimidos? - Uma pausa. - E de onde está vindo essa água?

- Água! - gritou a velha. Ouve-se os outros dois tentando segurá-la.

- E agora, o que a gente faz?

- Eu não sei! Eu achei que a mãe tinha trazido os comprimidos. Eu dei um chiclete pra ver se segurava o enjôo até o quarto, mas não dá pra fazer nada sem os comprimidos. Acho melhor levar ela pra enfermaria.

Uma pausa maior. O homem está audivelmente bufando.

- O barco… tem uma enfermaria? - A última palavra foi pronunciada com uma ênfase sarcástica.

- Sim, eu achei que você soubesse.

- Amor - não tem carinho na voz - por quê, exatamente, a gente está com a sua mãe doente no nosso quarto, sendo que tem uma enfermaria no barco?

- Ela tinha um chiclete…

- Que se dane o chiclete! - Algo gruda no vidro. - Nós estamos levando sua mãe para a enfermaria

* * *

Um momento de silêncio. O rapaz ficou olhando o chiclete da velha, grudado na janela entre os banheiros. Era um chiclete rosa, provavelmente de tutti-frutti, o sabor favorito da Júlia. Passaram mais alguns minutos até o rapaz decidir levantar e pegar o doce.

Estava voltando pra cama quando ouviu uma risada.

IV

Frente o furo, exalando o fedor de enxofre do laser, estava o alien. Na mão esquerda, segurava a estatuazinha de Iemanjá.

- Eu admiro vocês, humanos. Da vastidão do seio desta mulher, vocês ergueram o barco, e dentro dele levam-se de ponta a ponta do mundo. Mas nós - nossa nave leva vocês de ponta a ponta do universo. Seu mundo não me é segredo, eu vejo tudo - um jovem japonês deitado, inato, na cama; um pedreiro pegando a linha vermelha para o trabalho; um rapaz que tira a maquiagem, se preparando para dormir; uma garotinha que se revira na cama, jogando videogame e comendo os doces que escondeu mais cedo. Ninguém precisa de lentes para ver através de você. Quer salvar o navio, mas nada faz sobre si. - E ao dizer isso, o oposto quebra a estátua de Iemanjá. Ele ri, ri, e percebe que o próprio riso já perdeu a graça. Nada aconteceu. Ninguém no quarto se moveu. No fim de dez minutos, o próprio E.T se via parado junto da mobília. - Então havia um pedaço que você estava escondendo. O rapaz aproveitou a saída do astronauta e pegou outros dois pedacinhos da estátua de Iemanjá. Um ele guardou para si, e o outro grudou com chiclete na lataria do navio.

V

O rapaz deitou na cama. Em breve chegaria em seu destino. Algo queimava em seu peito, aquele pedaço que recolheu do chão ressoava com algo em seu coração. Partindo dali, uma linha vertical se estica nas duas direções, mas nada mais se vê no horizonte.

Marcelo Rosa
Enviado por Marcelo Rosa em 10/04/2018
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