Ohaka Mairi

O inspetor Wilmer Hasselblad desceu em Tóquio pouco menos de uma hora após ter embarcado no voo suborbital oriundo de Estocolmo. De lá, pegou o Shinkansen para Nagoia, uma viagem de cerca de 90 minutos. Para alguém acostumado a cobrir anos-luz no tempo que levara para ir de Estocolmo até ali, aquilo estava sendo quase um passeio no campo, embora o trem-bala cortasse a paisagem japonesa numa velocidade estonteante. A viagem, contudo, não terminava em Nagoia. Dali, fez a baldeação para o Limited Express Wide View Hida, o trem convencional que o levaria à Takayama, seu destino final, nos Alpes Japoneses. Como a expectativa era que a viagem durasse 2,5 h, enviou uma mensagem ao seu anfitrião, informando que estava a caminho, e aproveitou para tirar um cochilo.

Despertou pouco antes da chegada à estação de Takayama. Anoitecia, o que, considerando-se a hora em que saíra de Estocolmo, o fuso horário, e o tempo de trajeto, estava perfeitamente dentro das expectativas. Felizmente, não iria sofrer com descompensação horária, o incômodo "jet lag" de viajantes de outras épocas.

Seu anfitrião, Seison Umebayashi, um homem magro usando terno escuro, na faixa dos 40 anos, o aguardava com um carro à saída da estação, conforme avisara por mensagem de voz enquanto ele cochilava. Sorriu ao ver Hasselblad, e trocaram um aperto de mãos.

- Fez boa viagem, Hasselblad-san?

- Muito tranquila, Umebayashi-san. E também serviu para relembrar o tamanho do planeta no qual nasci. Omachidô sama!

- Douitashimashite - foi a resposta polida.

Embarcaram no automóvel, e, cinco minutos depois, chegaram ao Best Western Hotel Takayama, um três estrelas com bom custo-benefício.

- Se eu soubesse que era tão perto da estação, teria vindo andando - gracejou Hasselblad ao desembarcar, mala na mão.

- Mas assim eu não teria ido lhe dar as boas-vindas - argumentou Seison, com um sorriso cortês.

- Só confirmando... a cerimônia começa às 9 h, correto?

A expressão de Seison Umebayashi tornou-se séria.

- Hai. Estarei aqui às 8:30 h, Hasselblad-san.

- Combinado. Dewa mata ashita.

- Mata ashita, Hasselblad-san.

* * *

E, pontualmente, às 8:30 h da manhã seguinte, um belo domingo de outono, Seison Umebayashi parou seu automóvel em frente ao hotel, e ali já encontrou Hasselblad à espera, vestindo um terno preto.

- Eu não sabia exatamente que cor usar, então decidi pelo preto... - explicou, ao entrar no veículo.

- Preto está correto, Hasselblad-san, embora não se trate de um funeral...

- Sobre isso... eu bem que gostaria de ter vindo para a cremação do professor Umebayashi, mas na época estava do outro lado da Galáxia.

- Não se preocupe, Hasselblad-san... - ponderou Seison - sabemos o quanto é ocupado e apreciamos que tenha podido vir para o primeiro aniversário da morte de meu pai.

Deixaram o carro num estacionamento próximo ao Passeio Higashiyama e subiram a escadaria que levava aos templos e ao cemitério propriamente dito. O lugar era tranquilo e deserto, contrastando com a azáfama da cidade lá embaixo, árvores de folhas douradas pelo outono, pedras escuras cobertas de musgo e limo. Silêncio.

A família Umebayashi, meia dúzia de pessoas incluindo um bebê de colo - todos em trajes claros e informais - já estava reunida junto ao jazigo privativo. Entre elas, alguém que Hasselblad não via há muitos anos: Ruriko, uma ex-namorada - e irmã caçula de Seison. Ela continuava bonita, avaliou, o cabelo castanho-avermelhado cortado à altura dos ombros. Trocaram um olhar de reconhecimento, antes de se cumprimentarem formalmente.

- Estamos felizes que tenha vindo ao nosso primeiro Ohaka Mairi em homenagem ao meu pai, Wilmer - saudou-o Ruriko.

- Daijobu desu - agradeceu Hasselblad, sentindo que Ruriko havia segurado sua mão por mais tempo do que o estritamente necessário.

Apresentações foram feitas. Sugita Umebayashi, primo de Seison e Ruriko, sua esposa, Hasumi, e a filha de ambos, Yukiji; uma irmã idosa do professor, Yumako, mãe de Sugita; e a viúva do professor Noritoshi Umebayashi, Miyoko, uma mulher esbelta, aparentando bem menos do que os seus 65 anos de idade.

A cerimônia em si, foi simples. Os adultos presentes - inclusive Hasselblad - revezaram-se para, cuidadosamente, derramar água, retirada de um balde plástico, sobre a lápide. Em seguida, a viúva colocou crisântemos em vasos de pedra ali existentes, e a filha depositou sobre o jazigo uma travessa de mikans - tangerinas - e outra de sanma-no-nitsuke, as frutas e o prato favoritos do falecido. Seison então, acendeu bastões de incenso e os colocou num recipiente próprio no túmulo. Finalmente, os adultos (menos Hasselblad) envolveram as mãos com seus terços budistas, e, de mãos postas, fizeram uma oração de agradecimento pelo falecido e por todos os ancestrais que o haviam precedido. Fim da cerimônia.

Para surpresa de Hasselblad, Ruriko recolheu as tangerinas e a travessa de peixe. Notando a curiosidade dele, comentou em voz baixa:

- Não achou que íamos deixar aqui, não é? Os corvos iriam fazer uma festa...

Hasselblad apenas balançou a cabeça, admirado.

* * *

Os Umebayashi convidaram Hasselblad a almoçar com eles no confortável apartamento em Takayama onde ainda residiam a viúva e Ruriko. Enquanto a mesa era posta, Seison aproveitou para mostrar ao inspetor fotos do tempo em que ele havia sido orientando do professor Noritoshi, e de algumas vezes em que tinham se encontrado fora da Terra, à serviço da Pesquisa Colonial.

- Saudades dessa época... devo muito do meu conhecimento prático de exobiologia ao período em que convivi com seu pai - declarou Hasselblad.

- Mas acabou não seguindo a especialidade dele - ponderou Seison.

- Não nasci para ser pesquisador... tampouco sou um homem de ação - reconheceu Hasselblad. - Seu pai me disse certa vez que eu era um "resolvedor de problemas", e me sugeriu entrar para a Pesquisa Colonial, não para o Corpo de Monitores, que era meu objetivo inicial.

- Embora o Corpo de Monitores também trabalhe para a solução de problemas...

- Sim. Mas não dispõe da autonomia que possui a Pesquisa Colonial. Esse foi o argumento que seu pai levantou, e que influiu na minha decisão final.

O almoço havia sido servido numa shokutaku, uma típica mesa baixa japonesa. Hasselblad fez o seu melhor, sentando-se no tatame de pernas cruzadas e pensando em como elas iriam amanhecer no dia seguinte. Esforçou-se para lembrar-se de todas as regras de etiqueta à mesa, e até surpreendeu agradavelmente seus anfitriões ao fazer o agradecimento protocolar, "itadaki-masu", antes de começar a comer. Para sua não surpresa, um dos pratos servidos foi o mesmo sanma-no-nitsuke que havia sido levado ao cemitério, devidamente requentado. Hasselblad declinou comê-lo. Tudo estava indo muito bem, os Umebayashi e Hasselblad sorridentes, quando o inspetor resolveu ser cavalheiresco na hora errada. Percebendo que Ruriko tentava erguer um avantajado rolo de futomaki, Hasselblad virou a parte traseira dos pauzinhos para a travessa e pegou na outra extremidade do mesmo rolo.

- Deixe-me ajudá-la - declarou, com um sorriso.

A reação dela foi de horror. Largou imediatamente os próprios pauzinhos e começou a gaguejar:

- Nanite kotoda... nanite kotoda...

Os Umebayashi o estavam encarando com expressões que iam do pesar - caso de Seison - até dor, caso da viúva. Ela ergueu-se imediatamente, os olhos cheios de lágrimas.

- Gomennasai - sussurrou, antes de desaparecer no próprio quarto.

- O que foi que eu fiz? - Perguntou atônito Hasselblad.

- Um momento, Hasselblad-san... - interrompeu-o Seison.

Seguiu-se uma rápida discussão em japonês entre os presentes, do qual ele só pescou algumas palavras. Hasumi abraçava Ruriko, que soluçava. Yumako parecia esforçar-se para não tomar o mesmo rumo. Finalmente, pareceram ter chegado a um consenso. Yumako saiu da sala e voltou em seguida com a viúva, que enxugava os olhos com um lenço.

- Sumimasen - ela sussurrou para ele, ao sentar-se novamente.

Por falta de clima, o almoço acabou pouco depois. Seison Umebayashi foi levar Hasselblad de volta ao hotel, e no caminho, explicou o que havia ocorrido:

- Você fez o correto ao pegar a comida com a parte oposta dos pauzinhos, aquela que não se leva à boca, para colocá-lo no prato. O problema foi que tentou ajudar minha irmã, no momento em que ela estava segurando o mesmo alimento.

E foi então que Hasselblad soube: no Japão, o único momento em que é tolerado que duas pessoas segurem o mesmo objeto com pauzinhos, é quando removem fragmentos de ossos para colocar numa urna funerária, após a cremação de um corpo. A reação de horror ao seu gesto inocente não fora desproprositada.

Tarde naquela noite, chegando em Tóquio, Hasselblad ligou para a mãe antes de pegar o voo suborbital de volta à Estocolmo:

- Confesso que é mais fácil entender algumas culturas alienígenas do que certas culturas terrestres.

- E aquela jovem, a Ruriko? - Quis saber Gunilla Hasselblad.

- Continua bonita, mãe... mas não é mais tão jovem - resumiu o inspetor.

- Para quem se casou com uma trazwuu, você anda muito seletivo, filho - provocou ela.

E, em tom imperativo:

- Venha para casa. Vou fazer "makrill fillet" para o café da manhã.

- [20-05-2018]