Livro - A Terra da Esperança

E as estrelas do céu caíram sobre a terra, como quando a figueira lança de si os seus figos verdes, abalada por um vento forte.

E o céu retirou-se como um livro que se enrola; e todos os montes e ilhas foram removidos dos seus lugares.

E os reis da terra, e os grandes, e os ricos, e os tribunos, e os poderosos, e todo o servo, e todo o livre, se esconderam nas cavernas e nas rochas das montanhas

Apocalipse 6,13-15

Não sei com que armas a III Guerra Mundial será lutada, mas a IV Guerra Mundial será lutada com paus e pedras.

Albert Einstein

Tornei-me a morte, destruidora de mundos

Bhagavad Gita

PRÓLOGO

Foguetes espaciais decolaram de suas plataformas de lançamento simultaneamente. Aparentemente, estava ocorrendo uma grande missão espacial. Porém, ao invés de subirem em linha reta e atravessarem a atmosfera em direção ao espaço, começaram a descrever uma trajetória curva. Se observarmos com mais atenção, podemos ver que não são tripulados. Logo, constatamos algo terrível: na verdade não são foguetes espaciais, mas sim mísseis balísticos intercontinentais! E o pior é que todos estão equipados com ogivas termonucleares!

Os mísseis atravessaram os céus tão rápidos quanto jatos supersônicos, deixando para trás um rastro de fumaça e brilho incandescente, provocado pela queima do combustível, como se fossem estrelas cadentes. As pessoas que os viram cruzando as nuvens, e que sabiam de seus poderes destrutivos, pediam apenas que suas vidas fossem poupadas.

As estrelas da morte sobrevoaram os oceanos, em direção aos seus alvos. Os radares e sistemas de defesas dos países a serem atingidos detectam a ameaça e rapidamente ordenam um contra-ataque, lançando também seus mísseis contra os inimigos. Por alguns minutos, os céus de todo o planeta encheram-se de mísseis voando por todas as direções.

Ao aproximarem-se dos alvos, as ogivas nucleares soltaram-se dos mísseis, de modo que pudessem atingir a maior área territorial possível. Então, centenas de ogivas termonucleares explodiram quase ao mesmo tempo em todas as regiões do globo terrestre, formando as nefastas nuvens de cogumelo que destroem tudo ao seu redor.

As pessoas nas cidades viram aterrorizadas as gigantescas nuvens mortais erguendo-se entre os prédios. Os mais próximos do núcleo da explosão simplesmente evaporaram em frações de segundo, devido ao calor emitido pela reação nuclear, de milhões de graus de temperatura. Os que estavam um pouco mais afastados, morreram vítimas da onda de choque, dos escombros dos prédios ou dos incêndios que se alastraram rapidamente.

Nada escapa das bombas do juízo final. As explosões destruíram boa parte da superfície do planeta, queimaram floretas, secaram rios e reduziram cidades inteiras à ruínas. Os gases tóxicos, vapores radioativos, fuligem e fumaça subiram até a atmosfera, criando nuvens tão densas e escuras que bloquearam os raios solares, fazendo com que a escuridão e o frio reinassem sobre toda a Terra.

É o fim. A raça humana se autodestruiu, levando consigo os animais, as plantas e toda a vida na terra. Simplesmente cumpriu seu triste destino como espécie inteligente, e não há mais nada que se possa fazer.

CAPÍTULO I

James acordou em uma pequena enfermaria, sem entender direito o que estava acontecendo. Sentia náuseas e dores de cabeça. A luz ambiente irritava seus olhos. Era como se houvesse acabado de despertar, após ter dormido por vários dias seguidos. Tentou se levantar, porém sentiu uma forte tontura.

– Alô, tem alguém aí?! – Chamou.

Momentos depois, uma enfermeira chegou.

– Fique deitado. Essa tontura é normal, logo vai passar. – Disse ela, enquanto ajudava-o.

– Onde estou? O que aconteceu? – Perguntava ele, aturdido.

– Em breve irá saber, mas não se preocupe. Fique onde está, pois antes tenho que chamar o médico – Respondeu a enfermeira.

Ela saiu do quarto e, logo depois, voltou acompanhada do médico, cujo semblante expressava serenidade, assim como a maioria dos que exercem essa profissão.

– Finalmente acordou e parece ótimo – Disse ele, enquanto examinava os sinais vitais de James. Ouviu os batimentos cardíacos com um estetoscópio e analisou os olhos com uma pequena lanterna – Tudo certo, como já era esperado.

– Podem dizer o que aconteceu comigo? – Perguntou James.

– Sim, podemos. Mas antes deve passar por um pequeno procedimento, que se resume em apenas responder algumas perguntas bem simples – Disse o médico – Sente-se à vontade para isso? – Perguntou ele.

– Claro, tudo bem.

Então o médico fez as tais perguntas simples. Coisas como: qual era seu nome? Onde morava? Comida e cor favoritas? Enquanto isso, anotava todas as respostas em uma prancheta. James no início teve um pouco de dificuldade e percebeu que estava em um estado brando de amnésia, mas aos poucos ia se recordando e as memórias se encaixavam.

– Agora responda: qual a última coisa que consegue se lembrar? – Perguntou o médico.

– Não sei ao certo... – James continuava fazendo um certo esforço mental – Lembro-me de um campo de guerra, tiros para todos os lados... então uma forte explosão e tudo ficou vermelho, logo depois escuro...

– Interessante – Disse o médico, enquanto anotava – Agora você precisa comer, aposto que está com muita fome. Traga algo para ele – Pediu para a enfermeira – Fique à vontade, se quiser pode assistir Tv. Voltamos logo – Completou, e ambos saíram do quarto.

James pegou o controle remoto ao lado da cama e ligou a televisão. Estava passando um seriado de humor com várias risadas ao fundo

***

– Você foi criogenizado. – Disse o médico.

– Crio...criogenizado? Como assim? – James quase engasgou-se com seu sanduíche.

– Isso mesmo. Seu batalhão foi bombardeado e você chegou ao hospital militar em estado muito grave. Ossos quebrados, queimaduras por todo corpo... Por ser um integrante das forças armadas, foi escolhido para participar de um dos Programas Governamentais de Preservação Humana, no seu caso a criogenia.

– Deixe-me ver se entendi – James estava atônito – Me trancaram em uma câmara criogênica sem o meu consentimento?

– Como todo membro das forças armadas, você já estava ciente de que, em caso de internação hospitalar grave, estaria sujeito a participar de um dos programas de preservação de alto risco. Esse lugar é um abrigo antirradiação de alta tecnologia criado para abrigar população militar e civil. A criogenia humana foi incluída em um dos diversos Programas Governamentais de Preservação Humana para o caso dos abrigos antirradiação falhassem, e assim as pessoas pudessem sair das câmaras criogênicas apenas quando os níveis radioativos na superfície já estivessem mais baixos. Para esse experimento, foram escolhidos soldados em estado grave de saúde pois, por motivos óbvios, era difícil encontrar voluntários.

Para que o leitor não fique perdido diante de tantas afirmações e termos estranhos, farei um breve comentário sobre os fatos acima citados. Com a eminência de uma catástrofe mundial, o governo do país onde se passa essa história (que não será especificado, pois após o apocalipse nuclear todas as fronteiras dissolveram-se por completo) desenvolveu uma série de projetos científicos para que ao menos uma parte da população pudesse sobreviver.

Esses projetos foram denominados Programas Governamentais de Preservação Humana. Dentre eles já foram citados os Abrigos Subterrâneos Antirradiação de Alta Tecnologia e as Câmaras Criogênicas. Os outros projetos científicos serão citados mais adiante. Agora vamos retornar nossa narrativa...

James mal podia acreditar no que estava ouvindo.

– Por quanto tempo eu fiquei? – Perguntou ele.

– 120 Anos – Respondeu o médico – Tentamos tira-lo de lá antes, mas não podíamos, pois as câmaras só abrem no tempo pré-programado.

James pensou em seu país, na Guerra e em seus companheiros nos campos de batalha. Então perguntou:

– Então... nós perdemos a guerra?

– Todos perdemos – Respondeu o médico – Descanse um pouco. Em breve vai conhecer nossas instalações, mas antes precisa descansar. – Disse ele, saindo em seguida.

CAPÍTULO II

– Vista isso. É o nosso uniforme padrão. – Disse o médico, entregando a James uma sacola contendo algumas roupas.

Eram uma camisa de manga comprida e uma calça, ambas de cor cinza. Se vestiu olhando-se para um espelho na parede do quarto.

– Um rapaz está te esperando lá fora. Ele vai leva-lo para conhecer todo nosso abrigo. Caso precisar de qualquer coisa, ou se sinta mal, pode me procurar.

James foi apresentado ao outro morador do abrigo, que seria seu guia. Juntos percorreram corredores com vários outros quartos, até chegarem em um amplo salão onde haviam várias pessoas circulando por todas as direções.

– Todos os habitantes do nosso abrigo devem desempenhar alguma função – Explicava o guia – Uns cuidam da manutenção, outros da limpeza, da parte operacional, da fiscalização... Enfim, as mais diversas funções para que nossas instalações continuem operando perfeitamente. Quando alguém exerce corretamente suas tarefas, recebe créditos para serem usados nas máquinas de compra espalhadas por todo o abrigo. Esses créditos são utilizados com mais frequência nas máquinas sintetizadoras de alimentos, localizadas no refeitório.

James viu-se diante da possibilidade de ter que trabalhar para sobreviver. O que não era muito diferente de sua vida antes de ter lutado na Guerra e ter ido parar naquele lugar. O guia continuou:

– No seu caso, por ser um veterano e ter participado de um dos Programas Governamentais de Preservação Humana, ganhou como benefício o direito a uma quantidade mensal de créditos. Ou seja, receberá o suficiente para viver, sem que precise exercer qualquer função.

– Entendo. Como uma pensão para veteranos – Disse James.

– Exatamente.

Após percorreram outros corredores, chegaram em um ginásio com vários equipamentos de ginástica e musculação, onde haviam algumas pessoas praticando exercícios.

– O médico mandou avisa-lo de que você deve praticar exercícios o quanto antes – Disse o guia – Após todo o tempo que passou na câmara criogênica, precisa reativar seus músculos e articulações. Fale com ele quando voltar aqui – Disse, apontando para um instrutor que orientava alguns alunos.

O instrutor percebeu a presença dos dois e acenou de volta.

Saíram do ginásio e continuaram a excursão pelo abrigo subterrâneo antirradiação. Passaram por uma biblioteca, uma sala de projeção, uma sala de jogos, um laboratório, e então chegarem em um corredor onde haviam algumas salas de aula.

– Os moradores mais jovens recebem seus créditos ao frequentarem nossas aulas – Explicou o guia – Aqui também são avaliadas as competências em que se destacam, para que cada um possa escolher melhor sua futura função no abrigo.

– Interessante. Semelhante as escolas antes da guerra – Comentou James.

– Sim. Acredito que já passou por essa etapa da vida – Brincou o guia.

Em seguida, chegaram ao refeitório, que, devido ao horário, encontrava-se vazio.

– Veja como é fácil – Disse o guia, aproximando-se de uma das máquinas – É só inserir seu cartão de créditos, usar o display sensível ao toque, escolher o que vai querer e digitar sua senha.

O guia fez todo o procedimento. Logo em seguida, surgiu uma barra de carregamento na tela, enquanto podia-se ouvir alguns ruídos vindos de dentro da máquina. Então, no display digital surgiu a mensagem “Está Pronto”, e iluminou-se o reservatório em baixo da tela. O guia abriu a tampa do reservatório e retirou um copo de café fumegante.

– Está servido? – Ofereceu a James.

– Obrigado – Disse ele, aceitando a bebida – mas como é possível? – Perguntou ele.

– É um sintetizador de alimentos. Têm armazenado em sua memória o mapa molecular dos mais diversos tipos de refeições e bebidas. Usa apenas energia pura para sintetizar cada átomo e molécula, e organiza-as perfeitamente para formar o alimento desejado. Como já deve saber, de acordo com as leis da física: energia pode se transformar em massa, ou visse e versa.

– Incrível! – James ficou impressionado com aquele mecanismo.

Transpuseram mais alguns corredores, enquanto James sorvia seu café. Por fim, chegarem em um local repleto de aparelhos eletrônicos e portas onde haviam avisos que diziam: “Proibida a entrada de pessoal não autorizado”.

– Essa é a sala de controle – Disse o guia. – Caso tiver qualquer problema, queira fazer uma reclamação ou solicitar a saída do abrigo, pode conversar diretamente com um dos administradores. Por ser um veterano, tem o direito à livre entrada e saída de todos os abrigos antirradiação pertencentes aos Programas Governamentais de Preservação Humana.

– Sinto-me mais tranquilo ao saber que não estou preso neste lugar – Confessou James.

– Ninguém está. Um morador comum, se por um acaso escolher deixar o abrigo, é excluído do sistema e, por uma questão de segurança, não mais poderá retornar. Vamos aos dormitórios, vou te mostrar o seu quarto.

Dobraram um corredor à direita e subiram por um pequeno lance de escadas. Chegaram aos dormitórios e passaram por vários quartos com números gravados nas portas. Pararam diante da porta de um dos quartos.

– Quarto número 92. Aqui está a sua chave – Disse o guia, entregando a ele uma chave em que havia o mesmo número gravado.

James abriu a porta deparou-se com um quarto bem simples, limpo e organizado. Havia uma cama, uma televisão, um armário e uma escrivaninha.

– Ótimo, parece confortável – Disse James, sentando-se na cama e testando a maciez do colchão.

– Que bom que gostou.

Após alguns instantes, o guia disse:

– Seu vizinho de quarto também é um veterano. Seria ótimo que você o conhecesse. Mas antes devo lhe avisar que... Não sei como posso explicar... – hesitou por alguns momentos – Ele não é uma pessoa comum, então não se assuste.

O guia saiu do quarto, e logo depois retornou acompanhado de um ser estranho, meio homem e meio máquina, uma espécie de ciborgue. Sua silhueta tinha uma forma perfeitamente humana, porém, todo o seu corpo era revestido de metal. Era uma visão meio assustadora. Ele também vestia o uniforme cinza padrão do abrigo.

– Prazer em conhece-lo. Me chamo Victor – Disse o ciborgue, estendendo sua mão robótica. Sua voz era idêntica à de uma pessoa comum.

– Prazer, sou James – Que, um pouco hesitante e desconfortável, correspondeu ao aperto de mão.

O guia fez menção de se retirar.

– Vou deixá-los a sós, pois já lhe mostrei tudo o que precisava – Disse ele – Se tiver qualquer dúvida, pode perguntar a Victor.

Após o guia sair, James convidou Victor para se sentar.

– Então... Ele disse que você também é um veterano. O que houve no seu caso? – Perguntou James.

– Fui alvejado em batalha – Respondeu Victor – Fui socorrido em estado grave e me mantiveram vivo através de aparelhos. Acabei sendo escolhido para um dos Projetos Governamentais de Preservação Humana. Enquanto você foi criogenizado, eu tive o cérebro e a medula óssea arrancados do meu corpo alvejado, e inseridos neste corpo robótico. Você quer ver? – Perguntou.

James aquiesceu. Então Victor desencaixou a peça que havia em cima de sua cabeça e revelou seu cérebro humano, protegido por um crânio de vidro transparente. Era possível ver o órgão em todos os seus detalhes: as veias, a massa encefálica e o sangue vermelho vivo!

– Nossa! – James ficou impressionado, assim como qualquer pessoa que visse tal coisa diante de si – Incrível! – Exclamou.

Logo depois, Victor tornou a encaixar a peça que encobria seu crânio e cérebro.

Como dois veteranos que viveram na mesma época e lutaram na mesma guerra, eles conversaram durante um bom tempo e acabaram ficando amigos.

CAPÍTULO III

James acordou com o barulho do despertador. Eram sete e meia da manhã. Presumiu que o antigo hóspede o programara para tocar naquele horário. Desligou o aparelho e tentou dormir novamente, mas não conseguiu.

Ligou a televisão. Estava passando um telejornal e pode perceber que havia sido gravado antes da Guerra. Ouviu uma movimentação de pessoas nos corredores. Todos estavam indo cumprir suas tarefas.

Tomou um banho, saiu do quarto e acompanhou o fluxo de pessoas, que seguiam ao refeitório, para a primeira refeição do dia. Viu como todos eram muito parecidos uns com os outros. O mesmo uniforme cinza com seus nomes gravados na camisa. O que o diferenciava dos demais era a sua pequena medalha de veterano de guerra, colada ao peito.

Foi até uma das máquinas e escolheu seu desjejum: ovos, bacon e uma xícara de café. Pegou sua bandeja e sentou-se sozinho em uma das mesas. Logo em seguida, um rapaz que ele não conhecia perguntou se poderia sentar-se junto a ele.

– Fique a vontade.

– Soube que foi criogenizado. Por quanto tempo ficou na câmara? – Perguntou o rapaz.

– 120 anos.

– Puxa, é bastante tempo! Aposto que passou tão rápido quanto uma noite de sono. Quem dera eu tivesse essa mesma sorte. Uma noite de sono e então, créditos por toda a vida.

O sujeito tinha 20 anos, e havia nascido e crescido naquele abrigo antirradiação. Jamais vira o mundo do lado de fora e ficou fascinado quando James lhe contou sobre como as pessoas viviam antes da guerra. Já havia aprendido sobre isso nas aulas, nos livros e nos filmes, mas não havia nada como ouvir de alguém que realmente vivera naquela época.

Depois, James foi até o ginásio de exercícios e falou com o instrutor. Começou com um aquecimento, correu na esteira, fez abdominais, e levantou barras e alteres. Aquilo para ele não era muito difícil, já que servira no exército.

Saiu do ginásio tão suado que teve de tomar um banho e trocar de roupa. Logo depois, foi a biblioteca, pois sempre fora um grande amante dos livros. Era uma biblioteca pequena, mas continha muitas obras renomadas.

Ao meio-dia, soou um alarme indicando a pausa das tarefas para o almoço. James seguiu novamente para o refeitório, junto ao grande fluxo de pessoas.

Após o almoço, voltou ao seu quarto e tirou um cochilo. Verificou as configurações da TV e descobriu que tinha acesso a vários programas, filmes e seriados gravados antes da Guerra.

À noite, ele e Victor encontraram-se novamente no dormitório e voltaram a conversar sobre suas vidas antes da Guerra. James estranhou não tê-lo visto durante o dia inteiro.

– Estava trabalhando – Disse Victor – No setor administrativo.

– E os seus créditos de veterano? Não está mais recebendo? – Perguntou James.

– Sim, estou. Mas ao cumprir alguma tarefa passo a receber créditos em dobro. Além de ter algo para me distrair, pois a monotonia desse lugar pode deixar qualquer um louco.

***

Todos os dias, a rotina de James se repetia. Exercitava-se pela manhã, lia na biblioteca e assistia algum filme em seu quarto. À noite, Victor o visitava e tinham conversas longas e agradáveis.

Após algumas semanas, acabou sentindo-se entediado. Foi até a sala de controle e solicitou uma função no abrigo. Fez um teste de aptidão e uma entrevista. Foi selecionado para trabalhar na casa de máquinas.

Seus créditos caiam em dobro. Após três meses já tinha-os de sobra.

CAPÍTULO IV

– O que conhece do mundo lá fora? – Perguntou James a Victor, em umas das conversas.

– Muito pouco. Estive em uns três abrigos antirradiação como esse. O que conheço é basicamente a distância que tive que percorrer entre eles.

– E como é?

– Impressionante e assustador. Difícil de descrever. Podemos sair qualquer dia para que você possa ver.

Passaram-se vários dias. Devido a insistência de James, Victor decidiu que finalmente havia chegado a hora de partirem. Porém, antes teriam que fazer todos os preparativos necessários para a viagem.

Foram até as máquinas sintetizadoras que vendiam diversos tipos de equipamentos. Utilizaram seus créditos em abundância e conseguiram comprar os itens indicados por Victor: Um par de mochilas, binóculos, roupas de caminhada, roupas de proteção contra radiação, agasalhos, máscaras de gás, medidor de radiação, cantil para água, equipamentos de camping (barracas, sacos de dormir, materiais para fogo e preparo de alimentos), além de comida desidratada e ração militar.

Victor comprou luvas, uma bandana e um óculos escuro, para que pudesse cobrir as mãos e o rosto e assim esconder sua fisionomia robótica.

Foram até o quarto de Victor. Do armário, ele tirou duas armas de grosso calibre: Um rifle com mira telescópica e uma escopeta. Além de um par de pistolas, munições, facas e coletes a prova de balas. Também tirou um saco de moedas de cobre, do mesmo tipo das que circulavam antes da guerra.

Logo depois, foram até a sala de controle e solicitaram a saída do abrigo. Passaram pelos procedimentos de segurança e pelos portões automáticos. Após atravessarem o último portão, estavam, enfim, do lado de fora.

James contemplou a vastidão da planície. Tudo era completamente inóspito até onde a vista podia alcançar. O solo árido, ressecado e estéril. A escassa vegetação com folhas secas e galhos retorcidos. O céu repleto de nuvens escuras.

Percebeu o tamanho do desastre causado pelo cataclismo nuclear no meio ambiente. O solo e a atmosfera tinham uma tonalidade acinzentada. Era como se toda a terra estivesse morta, ou como se eles fossem uma dupla de astronautas que houvessem acabado de pousar na superfície de um planeta sem vida.

Toda aquela vastidão desértica e inóspita era ainda mais espantosa do que os desertos que James conhecera durante seu período como combatente. Enquanto que os desertos antes da Guerra eram reluzentes e alaranjados, com o céu azulado e sem nuvens, aquela região pós-apocalíptica era acinzentada e repleta de nuvens densas e escuras.

A paisagem era capaz de causar um misto de sensações contraditórias em qualquer observador. Um paralelo entre horror e fascínio, encanto e repulsa.

Puseram os binóculos e fizeram uma observação de toda a região. Logo, avistaram ao longe o que aparentava ser um viaduto desabado. Um pouco abaixo do morro onde estavam, haviam os resquícios de uma estrada de terra margeada por postes quebrados e fios de eletricidade arrebentados. Aqueles eram os poucos indícios de que naquele lugar, que mais parecia um planeta estranho, já houvera qualquer tipo de civilização.

Após tanto tempo vivendo no interior daquele abrigo subterrâneo, era bastante agradável para James estar em um espaço a céu aberto, mesmo diante daquele cenário de devastação. Podia, enfim, sentir o vento roçando em seu rosto e o ar quente entrando pelos seus pulmões.

– Para onde vamos agora? – Perguntou James.

– Tomaremos aquela estrada com os postes quebrados, lá embaixo – Respondeu Victor – Sempre que seguir os postes, vai acabar encontrando alguma civilização.

Começaram a descer a encosta. Era pouco inclinada e conseguiram chegar ao solo sem grandes dificuldades. Pegaram a estrada de terra margeada pelos postes quebrados e caminharam durante toda a manhã. Próximo ao meio-dia, pararam para comer e descansar, ou melhor apenas James comeu. Ele ofereceu a Victor, que, por sua vez, não aceitou.

– É melhor pouparmos o que estamos levando – Disse Victor.

– Não precisa comer? – Perguntou James. – Me Lembro de já tê-lo visto comendo no abrigo.

– Posso comer, mas não preciso. Consigo sentir o gosto da comida, devido aos meus sensores de paladar. Em meu interior, possuo ácidos capazes de dissolver os alimentos. Mas funciono a energia elétrica, gerada por um pequeno reator nuclear abastecido por uma célula de plutônio. Apenas tenho que trocar a célula de vez em quando.

Após descansarem, continuaram caminhando durante toda à tarde e pararam apenas ao anoitecer.

Montaram o acampamento na beira da estrada, em uma área com a vegetação mais densa que o normal. Armaram as barracas, acenderam uma fogueira e James preparou seu jantar.

Logo depois, a dupla sentou-se ao redor das chamas claras e tremeluzentes. Ficaram um certo tempo jogando gravetos nas chamas, enquanto cada um permanecia envolto em seus próprios pensamentos. Ainda podiam ver, a uma certa distância, a encosta onde ficava o abrigo subterrâneo e, na direção oposta, o viaduto desabado.

Ouviam apenas os escassos e desoladores sons do deserto. O crepitar das chamas, o barulho dos grilos e o vento frio da noite. Vez ou outra, escutavam também o uivo distante de um lobo.

– Então, já não está com vontade de voltar? – Perguntou Victor.

– Claro que não – Respondeu James – Ainda não vimos nada. Andamos o dia todo e nenhum sinal de vida. Quando chegaremos ao povoado mais próximo? – Perguntou ele.

– Daqui a dois dias de viagem.

CAPÍTULO V

Despertaram com os primeiros raios de sol. James reavivou as chamas da fogueira e preparou seu desjejum. Continuaram seguindo pela estrada de terra com os postes desabados. Ainda pela manhã, chegaram em uma estrada de asfalto cheia de buracos e rachaduras, ruínas do que antes fora uma grande rodovia interestadual.

O viaduto desabado já encontrava-se bem mais perto.

Enquanto seguiam pela estrada, passavam, vez ou outra, por algumas sucatas de automóveis. Todas desgastadas pelo tempo, carbonizadas, escurecidas e encobertas pela ferrugem. Em algumas, haviam até cadáveres sentados nos bancos. Esqueletos devorados pelos bichos e pelo tempo.

Ao entardecer, quando o sol começava a se esconder no horizonte, começaram a procurar um abrigo para mais uma noite na estrada. Por sorte dos viajantes, havia a sucata de um Motorhome atravessada na estrada. Um micro-ônibus, cujo o interior servia exatamente como uma casa.

A lataria de ferro estava repleta de ferrugem. Após um certo esforço, conseguiram abrir a porta emperrada e desgastada pela ação do tempo. Viram que o interior do veículo ainda encontrava-se em ótimo estado de conservação.

Haviam alguns itens para uma longa viagem e até um pequeno forno a lenha. Pegaram galhos secos na beira da estrada, acenderam o forno e decidiram deixa-lo acesso durante a noite, para que pudessem se proteger do frio. Como precaução, puseram uma tábua na porta do trailer. Embrulharam-se nos sacos de dormir e pegaram no sono rapidamente, devido ao dia cansativo de viagem.

***

Despertaram quando a luz do sol começou a entrar pelas janelas do Motorhome. James reavivou as chamas do forno e preparou seu café da manhã. Seguiram pela estrada para mais um dia de caminhada.

Pouco antes do meio-dia, conseguiram chegar às margens do viaduto desabado. Começaram a subir nele e chegaram até a parte onde suas vigas se partiam. Dali de cima, podiam ver a estrada inóspita e as planícies. Mais abaixo, viam a outra parte do viaduto espatifada no chão.

Quilômetros de terras áridas e cinzentas, montanhas rochosas, nuas de vegetação e a estrada impiedosa, atravessando toda aquela imensidão, até onde a vista não podia mais alcançar.

Puseram os binóculos e conseguiram ver, ao longe, entre as montanhas e rochas, o que aparentava se um pequeno povoado de remanescentes, pois viram algumas tendas balançando ao vento. Com uma bússola, descobriram a direção que deveriam seguir para que chegassem a esse povoado.

Estavam na beira do viaduto, com as vigas e vergalhões retorcidos à poucos centímetros dos seus pés. Mais um passo e cairiam no abismo. Naturalmente, tiveram de dar meia-volta e descer pelo mesmo caminho por onde haviam subido. Então, continuaram seguindo viagem pela estrada cheia de buracos e rachaduras.

Poucas horas antes do anoitecer, chegaram à pequena estrada de terra que levava ao povoado. Na beira da estrada, havia uma placa improvisada, confeccionada de restos de madeira e chapas de ferro. Nela, havia escrito com letras malfeitas a seguinte frase: Bem-vindo a Terra de Lata.

Então, transpuseram as rochas que demarcavam a entrada da pequena cidade. Puderam perceber que ela tinha esse nome porque a maior parte de seus barracos haviam sido construídos de forma improvisada, com componentes de carros, pedaços de ferro e madeira.

Algumas pessoas perambulavam pela única rua do povoado. Todas muito magras, em vestes esfarrapadas e sujas, completamente andrajosas. Alguns vestiam peles de lobos e de outros animais do deserto, como se fossem miseráveis homens pré-históricos.

Haviam, também, algumas vítimas de deformidades genéticas, causadas pela radiação das bombas nucleares. Uns eram cegos, outros tinham membros do corpo de mais ou de menos, e outros eram carecas e tinham a pele repleta de manchas e erupções.

Entoavam lamentos de dor e sofrimento, balançando suas canecas, pedindo esmolas. James jamais vira tamanha degradação humana, nem nas batalhas mais sangrentas em que lutara na Guerra.

Mais à frente, jogado na sarjeta, haviam os restos mortais de um animal estranho e bizarro, semelhante a um réptil e que, aparentemente, sofrera algum tipo de mutação genética. Algumas pessoas assavam pedaços da carne desse animal usando espetos e um tambor de ferro como churrasqueira. Outras, se reuniam ao redor de uma grande panela, dividindo pratos fumegantes de ensopado.

– Excesso de radiação na atmosfera e mudanças climáticas bruscas – Explicava Victor – As espécies tiveram que se adaptar, ou morreriam. Essa espécie de réptil fora uma das muitas que sofreram mutações genéticas.

Por serem uma dupla de desconhecidos naquele povoado, carregando armas e equipamentos, acabaram atraindo a atenção daquelas multidões de miseráveis e flagelados. Por onde passavam, todos os olhavam com uma mistura de curiosidade e receio.

– Devem ter medo de que sejamos salteadores – Sussurrou Victor – Invasões e saques de cidades e povoados são muito comuns nesses tempos.

Continuaram andando e, de repente, ouviram uma voz atrás deles:

– Olá!

Quando se viraram, deram de frente com um rapaz baixo e magro, de cabelos negros curtos e algumas manchas avermelhadas em sua pele clara. Suas vestes não eram tão sujas e esfarrapadas quanto a dos outros habitantes daquele lugar, aparentando não ser tão miserável.

– Sejam bem-vindos – Disse o rapaz – Nosso líder faz questão de conhecer todos os nossos visitantes. Podem me acompanhar? – Perguntou.

– Claro – Respondeu Victor.

Seguiram o rapaz até um barraco um pouco maior e mais caprichado do que os demais. Haviam dois guardas armados na porta que, antes de lhes deixarem entrar, lhes revistaram e guardaram suas armas e bagagens.

No interior do barraco, havia um ciborgue semelhante a Victor, sentado atrás de uma mesa.

– Bem-vindos a Terra de Lata. – Disse ele, levantando-se e cumprimentando os dois. – Me chamo Isaque e sou o chefe desse lugar. Afinal, nada mais apropriado.

– Assim como você, nós também somos veteranos da Guerra – Disse Victor – Vejo que nós participamos do mesmo programa de preservação humana. – Em seguida, removeu a badana e o óculos escuro, revelando sua anatomia robótica.

– Incrível! – Exclamou Isaque – Esse mundo é muito pequeno. De qual abrigo vocês vieram?

– Do 33. Ao Leste. – Respondeu Victor.

– Já imaginava. É o mais próximo daqui. – Disse Isaque – E o que houve com você? – Disse ele, referindo-se a James.

– Estive criogenizado, por 120 anos – Respondeu ele.

– Nossa! É bastante tempo! De qualquer forma, teve um pouco de sorte. Os primeiros anos após a guerra foram bastante difíceis para os que ficaram de fora dos abrigos.

Isaque chamou de volta o rapaz que houvera recepcionado os viajantes.

– Traga um pouco de café e biscoitos para os nossos visitantes – Pediu ao jovem, que voltou para os fundos do barraco.

– Então, para onde estão viajando? – Perguntou Isaque – De qualquer forma, convido-os para passarem a noite aqui no povoado – Completou.

– Estamos indo conhecer os próximos abrigos, e aproveitando para também conhecer os lugares no caminho – Respondeu Victor. – Já estávamos ficando loucos lá no abrigo 33.

– Para nos, veteranos, a rotina de um abrigo subterrâneo pode causar muita angustia. Fazem vários anos que não entro em um.

– O que faz quando precisa de células de plutônio? – Perguntou Victor.

– Tenho meus contatos. Ser líder desse lugar tem alguns privilégios.

O rapaz voltou com o café e os biscoitos. James percebeu como as xícaras e os talheres estavam bem envelhecidos. Evidentemente, haviam sido fabricados antes da Guerra.

Os três conversaram sobre suas vidas antes da Guerra e sobre a péssima situação em que o mundo passou após esse evento infeliz. Logo depois, Isaque mandou que o rapaz os levassem até o local onde iriam passar a noite.

Chegaram ao barraco que fora construído de forma improvisada, como os barracos das favelas de antes da Guerra. Pedaços de ferro e madeira formavam as paredes, e haviam improvisado uma porta, cuja fechadura já havia deixado de funcionar e, no lugar dela, puseram uma corrente com cadeado. O rapaz destrancou o cadeado e lhes entregou as chaves. Os viajantes entraram.

Haviam apenas uma cama de beliche e um armário, ambos bem velhos. O rapaz deixou-os sozinhos e voltou em seguida, trazendo um jarro de água limpa, para que James pudesse beber caso sentisse sede durante a noite.

Na rua, ao lado de fora do barraco, haviam alguns chuveiros comunitários. James pagou algumas moedas para que pudesse tomar banho. Apenas toalhas de plástico impediam aos outros de verem a nudez dos que se lavavam. A água estava gelada e teria sido um banho desconfortável, não fosse o alívio ao se livrar de toda a sujeira acumulada após aqueles dias de viagem.

Como se o rapaz tivesse adivinhado, James acordou com sede durante a madrugada. Bebeu um pouco do jarro e, como já estava acordado, decidiu dar um passeio pela rua deserta. Apreciou o silêncio de todo o povoado que dormia. Vislumbrou os inúmeros barracos enfileirados, iluminados pelo brilho das estrelas e da lua. Viu também, ao longe, a imensidão das planícies e do deserto.

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Estes são os primeiros capítulos do livro A Terra da Esperança, de Wesley Aguiar. A versão completa está disponível em formato digital na loja de ebooks da Amazon (www.amazon.com.br). Também em formato físico no site Clube de Autores (www.clubedeautores.com.br)