Os que chegam com a noite

A noite chega trazendo com ela o medo. Ninguém sai mais quando a luz do dia vai embora. Vivemos todos acuados e sem grandes perspectivas que não seja a de sobreviver por mais um dia.

I

O mundo seguia seu ritmo normal quando eles chegaram.

Sentia-me só. Muitas vezes me refugiava em algum medicamento para dormir e assim não ver a minha própria solidão. Há mais de dois anos que não falava com minha mãe, uma briga idiota que eu mesmo causei e que por teimosia recusava-me a pedir desculpas. Havia também os sete anos de um casamento fracassado. Precisava retomar a minha vida. Eu não queria mais estar sozinho ...

Eu estava em meu quarto assistindo um filme antigo de Hitchock, “Pássaros”, na verdade eu apenas olhava para as imagens na televisão quando um apagão tomou conta da cidade. Estava na passagem que eu mais gosto do filme, aquela que os personagens estão cercados dentro de casa por uma infinidade de pássaros, quando tudo ficou às escuras.

Sempre tive muitas velas e lanternas, algo que aprendi com minha mãe que sempre falou que nunca se pode ficar sem luz em casa. O tempo passou e as luzes não voltaram. As luzes não voltariam nunca mais.

Quando amanheceu todos perceberam que nenhum sistema de comunicação funcionava: celulares, televisão, rádio, internet, todos estavam mudos e sem sinal. Mais tarde percebeu-se que qualquer máquina ou mecanismo simplesmente deixou de funcionar, não importava se era do tipo mecânico ou digital. Nada funcionava. Em segundos fomos atirados na idade das pedras.

Dez dias após aquilo que chamamos de “grande apagão” um início de caos se estabelece, já escutávamos rumores de grande saques e violência que se alastravam pela cidade. O medo começa aos poucos a rasgar ao meio aquilo que chamamos de civilização humana.

Com o passar dos dias a vida se tornou algo muito mais difícil. Comidas estragavam porque não havia eletricidade que fizesse funcionar uma mísera geladeira, as distâncias se tornaram imensas porque não havia um único automóvel circulando. Enlatados eram disputados a socos, pauladas e facadas. Pessoas se organizavam em grupos para pilhar, atacar ou se defender de outros grupos.

Em pouco tempo as autoridades constituídas perderam a capacidade de decidir ou de intervir naquilo que rapidamente ganhou proporções pandêmicas. Tudo aquilo que chamávamos de sociedade organizada virou de ponta-cabeça.

Ninguém sabe dizer o que gerou o caos que vivenciávamos. O que existe são especulações e teorias variadas acerca do que possa ter acontecido. Alguns acham que houve um ataque terrorista com uma arma misteriosa, muitos falam em punição divina por vivermos em um mundo de pecados, existem aqueles que acreditam que aconteceu algum tipo de acidente envolvendo uma tecnologia desconhecida. Eu não tenho nenhuma explicação para tudo o que houve. Eu só quero sobreviver a essa loucura.

Todos nós tínhamos medo de sermos atacados. Nosso bairro não era muito grande e com relativa facilidade conseguimos praticamente fechar ele. Montamos um sistema de distribuição de água e comida, iniciamos um plantio de algumas verduras e legumes e começamos uma criação de frangos. Organizamos um pequeno exército armado de paus, porretes, facas e terçados.

Todas as noites fazemos vigilância com vários grupos espalhados pelas ruas do bairro.

A vida de todos ganhou um leve ar de segurança e uma certa rotina já se insinuava aos poucos.

II

Três meses já haviam transcorrido e estávamos mais ou menos adaptados a esse caos social quando eles surgiram.

Foi meu vizinho quem falou-me pela primeira vez deles. Depois seria só o que se falaria por muito tempo.

- Ontem à noite aconteceu algo muito estranho ...muita gente jura que viu umas coisas altas e escuras.

- Como assim? Não entendi.

- Não sei direito. Várias pessoas viram algo ... um tipo de criatura entrando nas casas, sei lá. Elas simplesmente chegavam e entravam. No dia seguinte só os corpos eram encontrados, ressequidos como se algo tivesse sugado a vida deles.

III

Mais de quatro meses já se passaram. Nós os chamamos simplesmente de vampiros. Acho que não são vampiros clássicos do tipo que chupam o sangue. Alguém certa vez disse que eles se pareciam com o vampiro do filme Nosferatu, só que bem mais altos. Quando a noite chega eles aparecem do nada.

Eles nunca foram registrados em fotos ou filmes. Tudo o que nós temos são desenhos meio toscos feitos por quem viu eles de longe.

Eles vêm de onde? Quem são essas criaturas? Eles vieram de outro planeta? Essas são as perguntas que todos se fazem. A única coisa que sei é que eles são malignos e parecem se alimentar de nós! Eles se parecem um pouco com a gente, mas não são humanos.

Todas as noites eu me pego pensando que uma maldição se abateu sobre a humanidade inteira. Onde andará minha mãe? Porque eu tinha que morar tão longe dela? Será que minha ex-mulher ainda está viva? Queria tanto poder voltar no tempo e corrigir um monte de bobagens que fiz. Só me resta o imponderável agora ...

Nós não sabemos nada sobre eles. Nós não temos como nos defendermos deles. Eles chegam sempre a noite e aí ocorre algo que ninguém consegue explicar ... só achamos corpos ressequidos no dia seguinte. Nunca encontramos alguém que tenha sobrevivido a um ataque deles.

Quando o dia vai terminando começa o terror. Nunca sabemos se no dia seguinte quando o sol surgir nós estaremos vivos. Os mais religiosos fazem círculo de orações. Todas as noites o medo gruda em minha pele ... perdi a conta de quantas noites passei em claro esperando a morte.

Durmo sempre sobressaltado e muitas vezes sonho com a minha própria morte. Acordo sem nunca me lembrar com detalhes do que acontece nos pesadelos. Sei apenas que a sensação de medo fica grudada em mim por muito tempo.

Todas as manhãs encontramos corpos ressequidos nas casas do bairro. Famílias inteiras são encontradas mortas. Os corpos ficam em tal estado que muitos chegam a esfarelar totalmente quando os recolhemos.

Aos poucos percebemos que o bairro vai ficando mais esvaziado. Começo a achar que o mundo inteiro está sendo despovoado ...

IV

O medo do desconhecido faz as pessoas dormirem amontoadas em qualquer lugar. Pode ser dentro de uma igreja, casa, loja ou no meio da rua, não importa, ninguém quer ficar sozinho quando a noite se aproxima.

Todas as noites eu durmo cercado de pessoas em um local que já foi um pequeno armazém. Solidão, medo e tristeza se misturam fazendo-me novamente buscar refúgio em medicamentos para dormir.

Sonho correndo em uma noite escura. Existe algo atrás de mim, não consigo ver o que é. Sinto que serei pego ... a morte chegará para mim.

Acordo com o corpo entorpecido e um gosto amargo na boca. Olho ao redor e o que vejo causa-me um horror indescritível: corpos ressequidos estão espalhados por todo o local. Quase grudado em mim está o corpo de um menino ainda agarrado a sua mãe. Mais adiante alguém que morreu sentado. Eram dezenas de pessoas. Todos estão mortos. O chão está repleto com farelos que se despregam dos corpos e eu estou com a roupa cheia do pó que se solta deles.

Porque apenas eu não morri? Tem que haver uma explicação. Estamos desaparecendo da face da Terra e, no entanto, eu consegui sobreviver a um ataque. Porque os malditos não sugaram a minha vida? Tenho medo de nunca saber a resposta para essa pergunta.

Uma outra noite. Em algum momento eles chegarão. Não sei se quando o dia amanhecer eu ainda estarei vivo. Decido que vou novamente me esconder em uma sedação química.

Encho um copo com água, procuro nos bolsos o medicamento. É uma pílula levemente amarelada que tenho entre os dedos. Ao olhar para ela algo estala em minha cabeça: e se houver algo na composição química deste medicamento que impeça ... seria algo formidável.

Com um movimento rápido eu engulo a pequena pílula ...

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 05/06/2018
Código do texto: T6356162
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