Comércio silencioso

[História anterior: "Dials"]

Era uma bela noite de verão e estávamos os três, eu, Kate e Vera, sentados à mesa da cozinha depois do jantar, tomando chá e conversando banalidades, quando Kate, sem prévio aviso, fez uma declaração que pegou a mim e à Vera de surpresa:

- Estou grávida.

Eu e Vera a encaramos em silêncio. Ela não parecia constrangida, e continuou falando:

- Bem... isso é embaraçoso. Eu não sou virgem, vocês sabem... mas a questão é que não tenho relações há mais de seis meses!

Vera estendeu a mão direita e segurou a dela sobre a mesa.

- Quando soube?

- Eu estava desconfiada faz um tempo... - recordou Kate, olhando para cima. - Minha menstruação é muito regular, e não desceu o mês passado. Depois, comecei a enjoar...

- Disso bem me lembro - atalhou Vera, acariciando a mão de Kate que estava segurando com sua mão esquerda.

- Então... ontem fui à farmácia, e comprei um desses testes rápidos. Deu positivo.

Vera estava sorrindo; eu também. Não me contive.

- Parabéns, Kate! - Exclamei.

- Parabéns? - Ela olhou de mim para Vera com as sobrancelhas erguidas.

- Você não é a primeira a passar por isso... - comecei a falar.

- Bem... imagino que deve haver milhões de mães solteiras pelo mundo neste exato instante, mas isso não me serve de grande consolo - ponderou ela. - Acredito que, fora casos de estupro, estas mães devem ter pelo menos alguma ideia de como a concepção aconteceu. E com quem.

- Sim... mas o que Sasha quis dizer é que você não é a primeira, na sua condição, a engravidar - explicou Vera, apertando a mão de Kate entre as suas.

- Na minha condição? - Kate apontou para o próprio peito com a mão livre, um ar de incredulidade no rosto. - Eu sou uma moça solteira, sem namorado, sem relacionamentos eventuais, e que, do nada, apareci grávida!

- Foi pelo seu trabalho, Kate - consegui finalmente falar.

- O meu trabalho... para o Ministério da Defesa? - Indagou ela cautelosamente.

- Isso mesmo - aduzi. - As especificações do Ministério para quem faz esse seu trabalho de levantamento fotográfico, são bem estritas. Nunca parou para se perguntar o porquê?

- Imagino que pela natureza confidencial do trabalho... pela necessidade de raciocínio rápido, bom nível intelectual, excelente forma física... - começou a enumerar ela, e sua expressão ia mudando à medida em que se dava conta do que eu quisera dizer. - Sem histórico significativo de doenças hereditárias... mente aberta...

Parou de falar e nos encarou em silêncio.

- Vocês sabiam que isso poderia acontecer? - Indagou finalmente.

Vera balançou a cabeça afirmativamente, e soltou a mão dela.

- Sempre soubemos. O nosso trabalho é lhe dar suporte quando você descobrisse... se acontecesse com você.

- Não acontece com todas as garotas recrutadas para o programa - acrescentei.

Ela continuava a nos encarar com os olhos arregalados.

- O que está acontecendo? O que houve comigo?

- Você já ouviu falar em "comércio silencioso"? É uma expressão utilizada em sociologia para descrever um tipo de troca comercial entre duas culturas, quando elas não dispõe de um meio de comunicação comum - expliquei. - A cultura A deixa seus bens expostos num local público, e a cultura B vai até lá e deposita os bens que imagina terem valor equivalente aos da cultura A. Se a cultura A concordar com isso, ela retira os bens deixados pela cultura B. Caso contrário, retira seus próprios bens. Nesta última hipótese, a cultura B deve aumentar a quantidade ou o tipo de itens oferecidos, até que um acordo seja atingido.

Kate balançou a cabeça em concordância.

- Uma troca comercial... os artefatos alienígenas abandonados pela cidade...

- Isso mesmo - aquiesci. - Não era um "primeiro contato" na acepção da palavra... talvez por nos acharem primitivos demais para isso... talvez porque não tivéssemos nada, agora, que realmente lhes interessasse... os objetos que recuperamos têm sempre uma aparência usada, desgastada. Quase como se fosse lixo descartado, equipamento obsoleto de que não precisam mais.

- Mas que para nós possuem imenso valor, embora nem sempre consigamos compreender para o que servem - ponderou Kate.

- Precisamente. E o que tínhamos para oferecer em troca? O melhor de nós mesmos!

Kate suspirou e baixou brevemente a cabeça.

- Por isso os testes rigorosos, como se eu fosse uma cosmonauta treinando para uma expedição lunar!

- Você foi aceita - redarguiu Vera. - Pelo que quer que seja que esteja do outro lado.

- E... o quê eu estou esperando? - Indagou ela, apreensiva.

- Tecnicamente, é um clone seu; portanto, já sabemos que será uma menina... - disse Vera em tom tranquilizador. - A mais velha do programa, está hoje com quatro anos de idade.

- E quanto ao desenvolvimento? Alguma coisa... anormal?

- Física e intelectualmente, não - prosseguiu Vera. - Mas suspeitamos que serão capazes de entender e operar os artefatos melhor do que nós. Talvez, a partir daí, possa haver uma verdadeira comunicação entre nós e eles...

Kate apoiou os cotovelos na mesa e pôs a cabeça entre as mãos.

- Por que não me avisaram que isso poderia acontecer?

- Só iria assustá-la - redarguiu Vera. - Não acontece com todas as garotas, talvez com um terço delas.

- E você foi escolhida - reforcei.

- Nós vamos cuidar muito bem de você e da bebê - Vera estava sorrindo. - É bom começar a pensar desde já qual nome vai lhe dar...

- [03-10-2018]