TEMPESTADE MAGNÉTICA

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No início do ano grupos de terroristas islâmicos ativos na Líbia conseguiram se infiltrar na região ao norte da depressão de Qattara, próxima à fronteira ocidental do Egito, e famosa pelos combates travados em 1942 entre tropas Britânicas e forças do Eixo.

Uns meses depois, em consideração da grande importância estratégica da área, o Conselho de Segurança da ONU, visando prevenir ataques aos terminais petrolíferos e, ao mesmo tempo, manter a estabilidade naquela conturbada região, resolveu enviar uma Força de manutenção da paz composta, principalmente, por soldados italianos conhecidos por sua imparcialidade, profissionalismo, e sempre bem recebidos pelas populações locais.

Foi assim que um pelotão de 18 militares, liderados por um tenente, recebeu a tarefa de patrulhar uma área desértica em proximidade da depressão de Qattara. Cada homem estava equipado com um fuzil de assalto com mira noturna a raios infravermelhos, uniforme mimética do tipo “desert camo”, capacete em kevlar, além de bússola, localizador GPS, lanterna LED, walkie-talkie, e outras geringonças eletrônicas.

Em torno das 4 horas da tarde o céu, que até aquele momento havia sido de uma limpidez absoluta, começou a ficar escuro enquanto nuvens ocráceas carregadas de pó avançavam rapidamente em direção do pelotão. Era o famigerado “Ghibli”, uma tempestade caracterizada por violentos ventos meridionais capazes, com suas rajadas, de cegar um ser humano e danificar gravemente qualquer tipo de equipamento mecânico ou eletrônico. Sem perder tempo o comandante, sabendo da presença de várias grutas naturais, deu ordem que os soldados descessem pelo íngreme despenhadeiro que levava ao fundo da depressão.

Um sargento localizou logo a entrada de um abrigo e a unidade conseguiu se amparar antes que as primeiras lufadas os dispersassem. Devido a urgência, não foi possível entrar em contato com o comando portanto o grupo estava temporariamente isolado do resto do mundo. O ambiente era obscuro e misterioso, mas representava um refúgio seguro onde as forças da natureza não haveriam prejudicado a ninguém. A gruta, no início estreita, levava a uma espécie de pátio mais amplo onde os militares tiveram como se deitar e consumir uma refeição quente enquanto a noite começava a descer. Um dos soldados, estudante de arqueologia, reparou que havia vários grafitos nas paredes, mas não conseguiu estabelecer a época: apenas constatou que o estilo era anterior ao dos hieróglifos do Antigo Egito. Outro especialista do grupo, incumbido de detectar a presença de eventuais poluentes radioativos, mediu um índice de radiação gama expressivamente alto e não conforme àquele tipo de rocha. As bússolas estavam enlouquecidas e alguém observou a presença de numerosas partículas de magnetita misturadas ao quartzo da areia. Apesar dessas anomalias, os homens acharam de ter tido a sorte de escapar duma terrível tempestade de areia que, às vezes, pode levar a consequências dramáticas.

Cerca de duas horas depois, no silêncio irreal em que a tropa estava mergulhada, alguém afirmou ter ouvido uma nênia indistinta oriunda de um dos numerosos corredores que, igual os tentáculos dum enorme polvo, se estendiam da sala central em todas as direções. O tenente ordenou que os soldados se calassem, pegassem suas armas e, de mansinho, tentassem ir na direção donde provinha o som. Provavelmente havia, naquele conjunto de grutas, uma base de terroristas islâmicos e era necessário aproveitar da circunstância para pegá-los de surpresa e neutralizá-los sem demora. Os militares, mesmo procedendo com extrema cautela, não conseguiram avançar no silêncio total e, com efeito, a nênia parou de repente enquanto uma tênue luz que havia sido avistada no fim dum túnel apagou-se totalmente. Os homens, perfeitamente treinados para atacar na escuridão, ligaram seus equipamentos de visão noturna e continuaram avançando. O jovem tenente Errani, visando cercar os terroristas, teve uma brilhante intuição tática: dividiu o pelotão em três grupos: um liderado por ele mesmo, que teria continuado o avanço naquele mesmo túnel e dois, chefiados respectivamente pelos sargentos Lucci e Osvaldi, que teriam atacado por outros dois túneis quase paralelos.

A ação, bem planejada, teve sucesso e, em menos de dois minutos, os três grupos convergiram simultaneamente num ambiente mais vasto onde, com seus visores noturnos, enxergaram, sem serem vistos, uma dúzia de rebeldes encostados nas paredes e com seus rifles nas mãos. Os italianos lançaram granadas de atordoamento que deixaram temporariamente cegos os seus inimigos os quais, surpresos e assustados, largaram instintivamente as armas para proteger olhos e ouvidos. Seguindo as regras de engajamento, um cabo ordenou, em árabe, que se deitassem no chão sem opor resistência, mas os rebeldes não obedeceram. Então o cabo repetiu a mesma ordem em inglês e, imediatamente, os homens levantaram as mãos, mas sem se deitar. Potentes lanternas foram ligadas enquanto uns militares se apossavam das armas inimigas e outros, após terem empurrado os prisioneiros contra as paredes da gruta, ataram suas mãos atrás das costas continuando a solicitar, em inglês, que ninguém tentasse reagir e que, em contrapartida, teriam sido tratados sem violência, de acordo com as Leis internacionais.

O oficial congratulou-se com os seus subordinados; no entanto, Osvaldi observou que os terroristas não tinham traços árabes e nem vestiam indumentas típicas daquele povo. Muito pelo contrário, os milicianos, todos bastante magros e desnutridos, eram também baixos, maltrapilhos, tisnados pelo sol e meio desidratados. Um soldado percebeu o estado de prostração dos inimigos e ofereceu água a um prisioneiro o qual bebeu avidamente. Destarte, enquanto segurava a garrafa, ele teve como observar de perto a uniforme dilacerada e empoeirada do homem que, surpreendentemente, lembrava bastante aquelas usadas pelo Exército Italiano durante a Segunda Guerra Mundial. Também os fuzis tinham um quê de familiar e, examinados atentamente, revelaram ser mosquetes Carcano M91. Provavelmente, pensaram todos, esse grupo de insurgentes havia sido equipado com material proveniente de algum depósito secreto de armamentos italianos oportunamente escondido antes da batalha de El Alamein de 1942. Mesmo assim, era estranho que, diante da disponibilidade de armas bem mais modernas, eficientes e baratas alguém tivesse optado por mosquetes que teriam sido dignos de aparecer num museu militar. E também restava o enigma das fardas, pois era costume dos guerrilheiros de vestir à paisana para melhor se confundirem com a população civil.

O sargento Lucci, que tinha o pavio curto, perdeu a paciência e gritou forte, em italiano: “Puta que pariu! Mas quem diabo é esse povo, donde vêm essa matilha de vira-latas?”. O elemento que parecia ser o líder da outra patrulha virou-se e respondeu: “Sou o tenente Herrera, da divisão Pavia, do Exército Real Italiano e esses ao meu lado são os sargentos Izzo e Milani”. Ouvindo essas palavras, uns do pelotão deram uma boa gargalhada, mas outros ficaram pensativos sem conseguir sequer cogitar qual sutil armadilha havia sido armada contra eles. Qual o motivo dessa estranha palhaçada? Quem eram na verdade esses sujeitos que pareciam falar perfeitamente o italiano? Os homens ficaram inquietos como sempre acontece quando algum acontecimento não encontra logo uma explicação racional. Também os prisioneiros estavam preocupados: quem eram os seus agressores que vestiam uniformes nunca vistas antes? Eram tropas de elite americanas? Os teriam fuzilados ou deportados em terras desconhecidas? Felizmente o cansaço prevaleceu e os soldados, com a exceção de duas sentinelas, adormeceram imediatamente. Sonhos esquisitos e inquietantes perturbaram o sono dos oficiais, dos sargentos e da tropa de ambos os pelotões.

Na manhã do dia seguinte o tenente Errani, que era engenheiro, tentou estabelecer, em vão, um contato com a base, enquanto a tempestade de areia continuava com força. Todos sabiam que o Ghibli dura três dias seguidos e, portanto, nada podia ser feito se não ter a paciência de esperar que a tempestade se acalmasse sozinha. Aos poucos, apesar das suspeitas recíprocas, os dois grupos começaram a familiarizar e, assim, foi possível constatar que os supostos insurgentes eram realmente legítimos soldados italianos, embora isso representasse um paradoxo inexplicável. Eles contaram que haviam procurado abrigo nas grutas numa tarde de outubro de 1942 quando, de patrulha, foram surpreendidos por uma tempestade de areia mais intensa que o normal. Ainda afirmavam, fato simplesmente inacreditável, que quando foram capturados, se encontravam na caverna há cerca de três horas. Pelo resto mostraram conhecer bem os lugares de onde vinham, as cidades italianas onde haviam sido criados. Só que, quando questionados a respeito de objetos modernos, como jatos, celulares, Internet, etc. não entendiam do que se falava e quando um deles amaldiçoou Mussolini desejando a morte do ditador que o havia mandado a combater na África, o sargento Lucci falou: “Camarada, você não sabe que o Duce faleceu nada menos que 73 anos atrás?”.

A pergunta que não queria calar era a seguinte: “Mesmo que eles tenham falado a verdade, como podem ter sobrevivido durante mais de 70 anos sem se alimentar e sem envelhecer?” Era uma situação surreal, talvez um diabólico embuste, digno dum conto de Borges, mas que teria sido esclarecido não apenas as comunicações tivessem sido retomadas.

Finalmente, dois dias depois a tempestade terminou e todos correram para fora do conjunto de grutas. Grande foi a decepção quando o rádio não detectou algum sinal no ar. Os GPS ficaram mudos e nem os celulares satelitares deram sinal de vida. Até as bússolas mostraram que o norte magnético não correspondia mais ao norte astronômico. Mas o fato mais impressionante foi que algo de significativo havia mudado na geografia da região: o deserto, agora sem dunas, não era mais árido, mas havia uma discreta vegetação, riachos e numerosos mamíferos e pássaros. O estudante de geologia explicou que esse era o ambiente no deserto do Saara de 8.000 anos atrás, logo após o fim da última Era Glacial. Naturalmente ninguém quis aceitar essa realidade e durante uns dias foram feitas inúmeras tentativas para restabelecer contatos ou avistar aviões. Enfim foi tomada a decisão de iniciar uma marcha em direção da costa na esperança de encontrar alguma cidade ou uma rodovia, mas nada disso apareceu. Apenas feras e, raramente, algum ser humano coberto com pele de animais que fugia não apena alguém tentava se achegar.

Aos poucos, os dois grupos tiveram que se conformar com a perspectiva de que jamais teriam reabraçado os seus familiares. Por outro lado, eram jovens, dispunham de armas possantes e de um grande número de munições; inclusive, os ex-prisionerios, além dos mosquetes, possuíam dois lança-chamas ainda eficientes. Pensaram que não deveria ter sido muito difícil conquistar todo o Oriente Médio, transmitindo regras e conhecimentos àqueles povos ainda primitivos e, como recompensa, viver na abundância pelo resto de suas vidas. Resolveram escolher um nome para denominar o novo grupo com o qual se apresentar aos povos indígenas mas, como não houve acordo, os dois tenentes e os quatro sargentos decidiram compor um acrônimo usando as iniciais de seus respectivos sobrenomes: Errani, Lucci, Osvaldi, Herrera, Izzo e Milani.

Ou seja, ELOHIM.

E é exatamente com esse nome que os antigos e onipotentes senhores do Egito, Palestina, Síria e Caldéia, são ainda lembrados na versão hebraica do Antigo Testamento.

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Richard Foxe
Enviado por Richard Foxe em 18/10/2018
Reeditado em 15/12/2019
Código do texto: T6479718
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