MEDIDAS DE EXTERMÍNIO

Uma chuva fina e irritante começou a cair no exato instante em que o tumulto começou. Uma explosão de violência estava tendo início e as ruas da cidade pareciam gritar e esmurrar com a mesma selvageria das multidões que invadiam suas artérias. Os berros e os cartazes disputavam a atenção dos que se aventuravam filmar o que estava acontecendo. De repente, do alto de um enorme caminhão anti – gravidade, um homem com um uniforme cinza e um capacete azul manipulava um aparelho pouco maior que uma caixa de sapatos. Quando ele ativou um dos comandos do aparelho que segurava, um ruído agudo e lancinante invadiu toda aquela área e, em seguida, uma estranha onda de luz vermelha cegante atingiu a multidão já estonteada e ferida pelo impacto sônico. O homem olhou com satisfação o resultado de seu ato. Viu vários corpos caídos pelas ruas nas posições mais bizarras, muitos deles já sem vida. Apertou um botão do lado direito de seu capacete e começou a informar:

--Aqui guarda A –23 do setor Alfa Central. O tumulto iniciado quinze minutos atrás já foi contido.

--- Há algum sobrevivente? --- A voz que ecoava nos ouvidos do guarda era grave e fria.

---- Apenas alguns. – Disse o guarda novamente dando uma rápida olhada naquela massa humana dilacerada.

---- Pois então capture um dos sobreviventes e traga – o aqui. Os outros sobreviventes são inúteis..... mate – os.

---- Sim, senhor. Vou providenciar agora mesmo.

O guarda interrompeu a comunicação e ordenou o motorista que parasse o caminhão anti- gravidade. O veículo aterrizou esmagando vários corpos e o guarda saltou para a rua. Olhou em volta apreensivo e percebeu alguns corpos se movendo poucos metros a sua frente. Começou a caminhar lentamente em direção a um deles. Se aproximou de um que estava se contorcendo e gemia de dor . o guarda parou diante dele e simplesmente disse:

--- Levante-se. – O guarda sabia que não conseguiria resposta. Rapidamente, ergueu o homem do chão. Olhou o rosto ainda com expressão de dor do homem :

--- Você agora é prisioneiro do Conselho de Segurança – declarou secamente --- tenho ordens para leva-lo ao Senhor Regente vivo, mas se tentar resistir, será morto imediatamente. Qual o seu status em nossa sociedade?

O homem olhou o guarda como se estivesse olhando para o nada mas conseguiu responder :

--- Markus Koren, pintor. – disse indiferente e ainda com a voz torturada.

O guarda fez uma careta de desprezo e empurrou Koren para o caminhão anti – gravidade e o colocou dentro do compartimento para prisioneiros. Koren ainda estava zonzo quando o veículo alçou vôo. Pairando sobre a massa, o guarda usou mais uma vez o invento com que havia derrubado a multidão. O mesmo ruído agudo e ensurdecedor foi ouvido novamente e o clarão vermelho surgiu em seguida num breve instante que pareceu durar horas. Em seguida, um silêncio frio e incômodo encheu o ar. Não havia mais nenhum sobrevivente naquelas ruas.

O caminhão anti – gravidade sobrevoou a cidade sem encontrar problemas. Muitos dos lança mísseis que alguns grupos rebeldes tinham foram destruídos e os caminhões anti – gravidade das forças de segurança raramente eram atacados. Kolbe, agora de pé dentro do compartimento onde estava preso, sabia que tinha poucas chances de escapar. Começou a pensar que nunca mais poderia pintar o que, para ele, era o mesmo que estar morto. Sabia que se fosse participar de alguma manifestação seria preso ou morto, mas não se importava. Tinha decidido que não valia a pena viver sem praticar sua arte e, por isso, já não se importava mais com sua existência física.

O veículo se aproximava agora de um prédio escuro e sem janelas, com cerca de noventa andares. O motorista disse algo que parecia ser um número de identificação e então, uma abertura surgiu quebrando o negrume aparentemente impenetrável do edifício. O caminhão anti – gravidade fez uma manobra rápida e atravessou a abertura que se fechou novamente em seguida.

Markus Kolbe foi retirado do veículo com a truculência habitual dos policiais. Agora estava em um enorme salão iluminado com uma luz branda porém envolvente. Olhou para a frente e viu que o salão estava completamente vazio, com suas paredes de um branco caído e monótono. Os guardas que o trouxeram tinham se retirado sem que Kolbe percebesse. Não tinha visto nenhuma porta. Kolbe começou a andar pelo salão quando viu uma abertura surgir em uma das paredes. Um homem alto e vestindo roupas escuras apareceu :

--- Senhor Kolbe, peço que me acompanhe. O Senhor Regente o espera – disse o homem.

Kolbe relutou um pouco, mas percebeu que o homem carregava uma arma na mão direita abaixada. Andou em direção ao homem e os dois então passaram para outro salão, inesperadamente maior que o anterior, com a diferença que este estava repleto de equipamentos instalados nas paredes. No centro do salão, havia uma poltrona e o homem que acompanhava Kolbe a apontou sem dizer uma única palavra. Kolbe então sentou-se e viu o homem lhe dar as costas e sair silenciosamente.

A poltrona era confortável e Kolbe pensou em tentar relaxar. Ficou completamente em silêncio. Observou os equipamentos que brilhavam nas paredes do salão e não se lembrava de ter visto aquela tecnologia antes. Já estava ficando cansado daquela espera quando ouviu um leve ruído aumentando de intensidade. Percebeu que algo ou alguém estava se aproximando pela abertura do salão.

Kolbe viu então uma máquina com estranho formato de um cone invertido entrando no salão. Tinha o tamanho de um ser humano adulto e pairava no ar. Possuía painéis frontais luminosos que deveriam ser sua fonte de força motora. A máquina parou bem diante de Kolbe que se sentiu intimidado mas resolveu encarar o aparelho.

--- Você é Markus Kolbe?– a máquina começou a dizer com uma voz estranha e indiferente.

--- Sim, sou Markus Kolbe. – Ele respondeu sem outra alternativa.

---- Markus Kolbe, eu sou o Senhor Regente. Você foi trazido até minha presença para responder pelas acusações de práticas ilegais e danosas contra a nossa sociedade. Seu status social diz que você é pintor.

--- Sim, isso é verdade. Sou um pintor e não me arrependo disso.

--- Senhor Kolbe, sabe perfeitamente que toda atividade artística é vedada aos humanos desde a lei implementada por mim em 2654. Atividades como a literatura, a pintura, o teatro, a música e outras práticas de natureza artística foram banidas da vida humana. As únicas atividades humanas permitidas são servir o Senhor Regente e contemplar as máquinas superiores da Terra e de outros pontos do universo.

--- Sim, eu sei de tudo isso. Ouço essa cantilena desde pequeno.....mas muitos de nós já desafiam sua lei. Temos agora muitos escritores, pintores, escultores, dramaturgos.....todos eles lutando contra você. – Kolbe se conteve para não erguer o tom de voz mas se sentia melhor ao enfrentar a máquina. O Senhor Regente fez um longo silêncio e Kolbe tentava adivinhar o que a máquina estava pensando.

--- O desejo do ser humano de produzir arte deve ser contido. Os que me construíram sabiam disso. – Disse a máquina.

--- Os que construíram você eram fanáticos que temiam a arte como força libertadora. Eles se foram faz muito tempo mas você ficou. Nunca vai conseguir completar sua tarefa.

----- Não entendo o que quer dizer com isso, senhor Kolbe.

Kolbe se mexeu um pouco na poltrona e começou a falar olhando a máquina diretamente:

--- Você vem tentando eliminar toda forma de arte desde que entrou em funcionamento, trezentos anos atrás. Nunca vai conseguir e por uma razão muito simples.

---- Qual ? – A máquina perguntou depois de um breve silêncio.

---- Você não conseguiu impedir o surgimento da maior obra de arte que a mente humana foi capaz de criar.

---- Todas as obras de arte criadas pelos humanos foram destruídas e apagadas de todos os arquivos históricos desde que entrei em funcionamento.

--- Menos uma.....--- Kolbe exibia um tênue sorriso na face – o Senhor Regente. Você foi e é nossa maior criação artística. A máquina perfeita que nos livraria da imperfeição. Você é a obra de arte que produzimos para durar para sempre.

A máquina silenciou novamente e Kolbe continuou olhando para ela.

--- Markus Kolbe – a máquina começou a dizer – o senhor acaba de ser condenado a morte pelos crimes de atividade artística e atacar com argumentos obscenos o Senhor Regente. Sua execução deverá ser realizada na prisão orbital em Urano e deverá ser transmitida para toda a Terra como exemplo.

Um feixe de teletransporte, de luminosidade esverdeada, atingiu Kolbe e o fez desaparecer do salão. O Senhor Regente ficou só, sentindo seus circuitos assimilando o que Kolbe tinha lhe dito. Seu maior inimigo era o desejo humano de produzir arte e tudo que representava a arte produzida pelos humanos tinha que ser inteiramente destruído e banido da história humana. Todas as suas unidades de comando e dados confirmavam sua diretriz sem nenhum engano.

O Senhor Regente, então, decidiu cumprir sua principal diretriz. Provocou uma sobrecarga em suas fontes de força e se desintegrou totalmente.

Não havia mais nenhuma obra de arte criada por seres humanos no planeta Terra. A arte morreu, finalmente.

------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------

Alfonso Moscato
Enviado por Alfonso Moscato em 29/10/2005
Reeditado em 29/10/2005
Código do texto: T65022