Despertamos no Eterno um breve adormecer

"Despertamos no Eterno um breve adormecer,

E a morte não será, que Morte hás-de morrer."

- Soneto 10, John Donne

Ethan Barker acordou na escuridão, com a cabeça rodando. Onde estava? Por que seu corpo doía? Obviamente, estava deitado numa cama, provavelmente de hospital. Tentou erguer-se apoiando-se nos cotovelos, mas mesmo sem enxergar, sentiu o mundo rodar e voltou à posição anterior. Havia um sensor de oximetria preso ao seu indicador direito, e ele começou a mexer nele, pois isso certamente iria disparar um alarme em algum lugar.

- Enfermeira... enfermeira... - gemeu.

O socorro não demorou muito. Ouviu uma porta abrir-se e uma voz feminina fez-se ouvir.

- Sr. Barker... como se sente?

- Tonto. Que lugar é esse? Por que não consigo enxergar?

- Os axônios dos seus olhos ainda não foram totalmente interligados, sr. Barker. O senhor está num quarto da MindBuild, em recuperação; não se recorda?

Um raio de luz cruzou a mente de Barker: a MindBuild... claro. Ele requisitara o procedimento há seis meses, quando fora diagnosticado com uma forma rara de câncer de pulmão, em estágio terminal. A MindBuild era uma empresa que prometia fazer a transferência da consciência humana para um novo corpo, clonado a partir do original - e com as falhas genéticas, como as que haviam gerado seu câncer, devidamente corrigidas. Fora a perda de visão, aparentemente temporária, a operação parecia ter sido um completo sucesso.

- Sim... estou começando a lembrar. Quanto tempo estou aqui?

- Neste quarto? Uma semana.

- E quando voltarei a enxergar?

- Cerca de 48 h... provavelmente, irá começar vendo borrões de luz, depois formas... e finalmente irá recuperar sua visão normal. Está com fome?

- Agora que perguntou... uma sopa cairia bem.

- Vou erguer a cabeceira da cama para que possa se alimentar. Se não sentir-se confortável, me avise.

A cabeceira da maca ergueu-se suavemente e ele ficou numa posição semi-reclinada. Passou a língua pelos lábios.

- Tudo bem, sr. Barker?

- Tudo bem - respirou fundo, antes de fazer a próxima pergunta.

- Alguém já sabe que acordei? Layla veio me ver?

- Não, ainda não avisamos ninguém, sr. Barker. E visitas estão proibidas, por enquanto.

Um tilintar de louça. A enfermeira devia estar parada com o carrinho da copa ao seu lado.

- Pronto para comer, sr. Barker? Não se preocupe, basta abrir a boca.

"Como uma criança", pensou Barker. E abriu a boca, resignado.

* * *

Acordou mais animado no dia seguinte. Ao abrir os olhos, conseguiu enxergar borrões luminosos, tal como a enfermeira havia previsto. Havia três pessoas conversando em voz baixa ao pé da cama; não podia ainda discernir feições, mas pareciam estar vestidos com jalecos brancos. Médicos, provavelmente.

- Sr. Barker? Está acordado? - Indagou um dos vultos, aproximando-se.

- Sim... acordei agora.

- Sou o dr. Castaneda - disse o vulto, parando ao lado da cabeceira. Barker pôde apenas vislumbrar um um borrão escuro emergindo do jaleco branco. - Como se sente?

- Melhor do que ontem, doutor. Já estou conseguindo enxergar... formas.

- Isso é excelente! - Exclamou o médico. - Estamos realmente animados com o seu progresso. Qual é a última coisa de que consegue se lembrar?

Barker fechou os olhos e concentrou-se.

- Não me lembro como cheguei aqui, para ser sincero. A última coisa? Eu me deitei para dormir com minha esposa... nós havíamos conversado durante o jantar sobre os procedimentos para a operação na MindBuild. Não sei quanto tempo faz isso...

Os outros dois vultos haviam se aproximado da cabeceira pelo lado oposto ao de Castaneda. Mais dois borrões escuros emergindo de jalecos brancos.

- Eu sou o dr. Foster, sr. Barker. E esta é a minha colega, dra. Martinez.

- Olá, sr. Barker - saudou-o a dra. Martinez. - É uma grande satisfação poder conhecê-lo!

- A satisfação é minha, poder saber que estou em boas mãos - replicou Barker. - Só lamento não poder ainda ver os rostos de vocês...

- Provavelmente amanhã isso já será possível - declarou o dr. Castaneda.

- A sua evolução está sendo bastante rápida - complementou Foster.

- Tenho que confessar que estou ansioso para me ver no espelho também - confessou Barker. - Um corpo de 25 anos, era o que a propaganda de vocês prometia, não é mesmo?

- A propaganda... - repetiu a dra. Martinez num tom monocórdio, virando-se para Foster.

- A propaganda da MindBuild - reforçou Barker.

- Ah, claro... - atalhou Castaneda do outro lado da cama. - Isso foi providenciado! Tudo de acordo com o folder, fique sossegado.

E para os colegas:

- Vamos deixar o sr. Barker descansar, amanhã voltaremos.

* * *

E na terceira manhã, ao abrir os olhos, viu as três figuras paradas ao pé do leito, aguardando que ele acordasse. Os três tinham a pele bastante escura, embora não fossem negros. Os dois homens eram totalmente calvos, enquanto a mulher usava o que obviamente era uma peruca preta, num corte chanel. Os três ergueram-se, e o mais alto, que estava no meio, aproximou-se dele pela direita da cabeceira, um objeto que lembrava uma lanterna portátil prateada na mão direita.

- Bom dia, sr. Barker! Sou o dr. Castaneda. Consegue nos ver bem hoje?

- Bom dia. Sim... hoje a minha visão está totalmente recuperada.

- Ótimo, pois vamos fazer alguns testes. Olhe para este ponto luminoso, enquanto examino seus olhos...

Os outros dois médicos aproximaram-se pelo outro lado da cabeceira, empunhando o que pareciam ser tablets, enquanto Castaneda o fazia piscar dirigindo um foco de luz para seus olhos. Finalmente, deu-se por satisfeito.

- E o doutor Chambers? Não virá me ver? - Indagou Barker.

- Chambers? - Indagou Foster para Castaneda.

- O fundador da MindBuild - informou Castaneda, desligando a lanterna e guardando-a no bolso.

- O senhor é funcionário da empresa e não conhece seu patrão? - Indagou Barker erguendo um sobrolho.

- Bem, sr. Barker... na verdade, não somos funcionários da MindBuild - informou Castaneda. - Tampouco o senhor está nas instalações daquela empresa.

- Mas a enfermeira me disse... - gaguejou Barker, olhando aturdido para todos os lados. A única janela do quarto estava com as persianas fechadas.

- Não queríamos correr o risco de assustá-lo revelando a verdade de imediato - prosseguiu Castaneda. - Não sabemos o que aconteceu com a MindBuild, mas uma das nossas equipes de arqueólogos encontrou as ruínas do complexo de armazenamento deles, com alguns cérebros conservados pelo sistema de preservação em temperatura ambiente desenvolvida por eles. O seu era o que estava em melhores condições de reprodução, portanto, nós o copiamos para um corpo devidamente adaptado à realidade do mundo no qual vivemos hoje.

Barker engoliu em seco.

- Meu cérebro foi encontrado por... arqueólogos? Quanto tempo ficou lá?

- Aparentemente, desde a fundação da empresa - explanou Castaneda. - Centenas de anos, talvez. Teoricamente, eles deveriam destruir os cérebros após copiá-los para novos corpos, mas parece que conservaram alguns por razões desconhecidas. Talvez os clientes tenham pago para manter o cérebro original, caso algo desse errado com o corpo clonado. Não temos como saber ao certo, registros dessa época são raros, pois eram preservados em meios digitais que não existem mais.

- E quanto tempo faz, desde que meu corpo original foi destruído? - Indagou Barker apreensivo.

- Cerca de 3600 anos - retrucou Castaneda. - Tivemos que fazer um curso intensivo para aprender o seu idioma e também recriar um ambiente que lhe parecesse familiar.

- 3600 anos... - murmurou Barker, aturdido.

- Creio que irá querer se ver agora - disse a dra. Martinez, estendendo-lhe um espelho.

O rosto que o encarou da superfície polida, era familiar, embora mais jovem do que ele se lembrava. E também calvo, com uma pele nitidamente bronzeada.

- Não se preocupe com a cor - advertiu a dra. Martinez. - Em breve, estará no mesmo tom saudável que todos nós.

- [25-12-2018]