Contos do inverno nuclear - Os mísseis de outubro e o inverno de 74
(Por Jota Alves)




 
UM DESENHO NA NEVE

O corte em sua garganta era profundo e por ele saia uma quantidade imensa de sangue que manchava a neve em torno do corpo.

Ainda segurando a faca uma mulher olha para o homem barbudo morto aos seus pés, percebe que o sangue escorre fazendo um desenho estranho no solo nevado. Isso faz com que se lembrasse de uma época em que amava desenhar, em que bastava papel, lápis e canetas e o mundo estaria em suas mãos.

Olhando para o homem que acabara de matar lembrou-se do seu juramento de que nunca mais seria violentada por ninguém. Não seria aquele desgraçado infeliz quem iria fazê-lo.

Ela afastou-se lentamente do homem com a garganta cortada. Limpou o sangue da faca em um pano velho que trazia dentro de sua mochila. Enquanto fazia isso ficava pensando até quando sua vida iria durar nesse inferno em que o mundo se transformou.

Eleonor foi embora sem olhar para trás uma única vez. Em pouco tempo o cadáver seria engolido pela neve.

DIAS DE OUTUBRO DE 1962

Dentro de dois anos ela terminaria a Escola Normal e seria professora. Eleonor não queria ficar o resto de sua vida dando aulas para um monte de crianças chatas e remelentas, mas era o que lhe restava. O que ela gostaria mesmo era ir para uma faculdade e estudar para ser arquiteta, poder desenhar casas, prédios, praças, cidades.

Isso nunca iria acontecer pois seu pai não permitiria uma filha sua estudando e morando sozinha em outra cidade. Seria tão bom se um dia uma garota como ela pudesse entrar para uma universidade ...

Aos dezesseis anos sua vida se resumia a ir para a escola, estudar, ajudar nas tarefas de casa e passear com suas amigas na praça central da pequena cidade onde morava. Os passeios eram, de longe, a coisa mais legal e interessante que ela fazia, lá sentia-se mais livre para conversar e rir, recebia olhares dos rapazes e já tinha percebido que pelo menos dois deles manifestavam desejo de ter algo a mais com ela.

Certa manhã estava comendo uma fatia de bolo de milho com café e leite quando sua mãe ligou o rádio grande que ficava na sala. Imediatamente a voz meio metálica de um locutor começa a noticiar que mísseis haviam sido disparados contra o território americano. Inicialmente não prestou atenção até ver seu pai se levantar abruptamente da mesa e ir aumentar o volume.

O que se seguiu nas próximas semanas foi uma escalada de surpresa, medo, correria, confusão e violência, muita violência ...

O MUNDO DE CABEÇA PARA BAIXO

Meio mundo destruído pela potência dos artefatos nucleares, centenas de milhões de mortos logo nas primeiras horas, outro tanto nos dias seguintes em função da radiação. E o pior ainda estava por vir.

Em poucos meses o clima do planeta mudou. O céu aos poucos começou a apresentar uma coloração estranha e todos perceberam que o tempo foi ficando cada vez mais frio. Isso pegou a todos desprevenidos. De uma hora para outra as pessoas tiveram que providenciar roupas adequadas.

Em pouco tempo as pessoas começaram a perceber que o mundo não iria voltar a ser como era antes. Muitos procuraram refúgio em igrejas. Louvores, orações e preces eram dirigidas inutilmente aos céus.

As pessoas começaram a estocar comida e água. Armas de fogo e tudo aquilo que pudesse gerar calor passou a ser de vital importância.

Em poucos meses todos perceberam que os caminhões que traziam mercadorias para a cidade deixaram de chegar. A escassez dos mais variados produtos começou a se fazer notar.

O cenário perfeito para o caos estava armado ...

O MELHOR E O PIOR

O hálito fedorento de bebida e a violência daqueles homens que a violentaram jamais sairiam da sua mente. Os hematomas em seu corpo, o sangue escorrendo por entre suas pernas e seus pais mortos de maneira violenta iriam marcá-la para sempre.

Tudo o que restara a Eleonor foram uma dor incomensurável pela perda dos pais e uma criança gerando-se em seu ventre.

Um mundo sendo destruído e ela gestando uma nova vida.

Pessoas a acolheram, limparam suas feridas e deram-lhe de comer. Ajudaram-na a enfrentar uma gravidez indesejada. Levaram-na com eles para uma outra cidade onde acreditavam encontrar melhores condições de sobrevivência.

Ela não estava mais sozinha agora, mas também não era mais a mesma garota que sonhava em ser arquiteta.

O melhor e o pior do ser humano surgem nas adversidades. Em meio a fome, frio e violência Eleonor havia descoberto essa verdade.

COTIDIANO

Um mundo em que convenções sociais foram literalmente explodidas, o certo e o errado muitas vezes, tornam-se coisas tão relativas e aleatórias quanto o voo de uma borboleta.

O grupo de Eleonor sobrevive em um galpão que um dia serviu como depósito de materiais de construção. Todos os dias a preocupação resume-se a buscar comida e procurar por tudo aquilo que pudesse ser útil: mantas, roupas, gasolina, alimentos enlatados, instrumentos perfuro-cortantes, qualquer coisa que pudesse servir para comer, gerar calor ou ser usado como arma.

Todo dia é dia de sobreviver. Esse é o cotidiano de Eleonor.

Algumas vezes enquanto se agasalha para dormir, sentindo o leve calor que emana do corpo de seu filho, ela lembra do mundo de antes. Há muitos anos que não vê o sol em sua plenitude, que não sente o aroma que exalava das rosas que sua mãe plantava. Tantas coisas ficaram para trás perdidas na poeira dos tempos.

Lembrando de coisas que não existem mais Eleonor adormece.














 
Taverna do Escritor
Enviado por Taverna do Escritor em 09/02/2019
Reeditado em 19/05/2019
Código do texto: T6570520
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