Diferentes de nós

- Almirante, a sua presença aqui, me faz pensar que está planejando um genocídio em alguma parte da Via-Láctea.

Wilmer Hasselblad não estava no melhor do seu humor naquele dia, e não fez nenhuma tentativa de esconder isso do seu visitante inesperado em Arapa-IV, planeta onde estabelecera residência entre a resolução de um problema galático e outro. O almirante Gwenaël Fourier, do Corpo de Monitores, viera de longe para conversar com o inspetor da Pesquisa Colonial, e ficou genuinamente surpreso com o comentário.

- Inspetor! Eu sirvo ao Corpo de Monitores da Federação Galática... nós evitamos guerras, não as causamos! - Protestou.

- Pois da última vez em que me chamou para conversar, a primeira sugestão que deu é que deveríamos lançar um ataque preventivo contra halakianos - irritou-se Hasselblad.

A discussão em voz alta atraiu a atenção de duas melkis, habitantes do planeta e que lembravam louva-a-deuses de dois metros de altura e oito patas, servas da assim denominada Rainha dos Amaldiçoados. Elas entraram na tenda onde o civil e o militar estavam reunidos, balançando nervosamente as longas antenas. O almirante ergueu-se de sua cadeira dobrável, apreensivo.

- Tudo bem, meninas. Ele é de paz... por enquanto - alertou Hasselblad, erguendo um braço, mão espalmada. Diante do gesto, as melkis cruzaram em X os quatro membros superiores e deixaram o recinto.

- Mas é claro que eu sou de paz! - Sussurrou o almirante, indignado.

- Pois então, prove - desafiou-o Hasselblad. - O que o fez vir lá de Beha-7854 para este fim de mundo?

Fourier titubeou. Finalmente, declarou:

- É uma emergência médica... de dimensões planetárias.

Hasselblad franziu a testa.

- Eu não sabia que o senhor tinha formação médica.

- E não tenho - admitiu o almirante.

- Então, me desculpe, mas o que diabos está fazendo aqui? - Inquiriu, braços cruzados. - Por que não mandaram um diagnosticador do Hospital Geral do Setor 12, por exemplo? E, se não lhe disseram, eu tampouco tenho essa formação... embora uma vez tenho salvo um TRLH de morrer asfixiado por oxigênio.

- Sim, estou a par dessa história - redarguiu Fourier. - Mas não, não foi por isso que vim... a própria direção do Hospital Geral ficou em dúvida sobre o melhor procedimento neste caso.

Hasselblad levou a mão esquerda ao queixo.

- Almirante, você não viria aqui se não houvesse um planeta prestes a ser incinerado... desembuche! Quem são as vítimas potenciais?

Fourier suspirou.

- Está bem... os habitantes de Huthama-III.

* * *

Huthama-III, no Braço de Perseus, era um planeta habitado por uma civilização com limitada capacidade de navegação interplanetária, e que jamais fizera parte da Federação Galática. Alguns meses-padrão antes da visita de Fourier à Arapa-IV, um cruzador do Corpo de Monitores topara com uma astronave abandonando o sistema de Huthama, e emitindo o que foi reconhecido como um sinal de SOS. Ao serem abordados, o comandante dos cerca de 100 huthamari, contou à tripulação de Monitores que eles eram os únicos sobreviventes de uma pandemia que extinguira mais de 90% da população do seu planeta, e que os que não haviam morrido, transformaram-se em monstros.

- Se eu entendi bem, - ponderou Hasselblad após ouvir a história - os fugitivos querem que o Corpo de Monitores desça ao planeta e, basicamente, liquide todos os eventuais sobreviventes?

- Exatamente - admitiu o almirante. - Segundo eles, isso eliminaria a possibilidade de contágio pelo vírus que provocou a pandemia; como essa é uma doença específica dos huthamari, não haveria nenhum problema para qualquer outra espécie inteligente operar no planeta.

- E ninguém do Hospital Geral sugeriu que seria mais fácil e menos repulsivo encontrar uma cura para a doença, em vez de matar os sobreviventes?

- Claro que sugeriram - apressou-se Fourier em explicar - e na verdade, estiveram em Huthama-III, colheram amostras, examinaram sobreviventes, e produziram um antídoto.

- O antídoto foi testado? - Indagou Hasselblad.

- Naturalmente. E funciona.

- Pelos Nove Infernos! - Exclamou Hasselblad. - Então porque cargas d'água não foi usado?

O almirante abriu os braços, em desalento.

- Bem... basicamente porque os sobreviventes não querem ser curados. Disseram que estão muito melhores agora do que antes da doença os atingir.

* * *

O cruzador do Corpo de Monitores que trouxera Hasselblad até Huthama-III, pousou numa grelha de aterrissagem construída pouco antes da primeira visita dos médicos do Hospital Geral ao planeta. A instalação estava localizada junto a um vilarejo que abrigava algumas centenas de huthamaris, todos vivendo uma vida muito simples e com tecnologia que retrocedera ao equivalente da Terra nos primeiros anos do século XX. Fisicamente, os nativos lembravam cones azuis invertidos, com cerca de 1,60 m de altura, dois braços longos com quatro dedos emergindo da parte superior do corpo, e duas pernas cilíndricas. Não possuíam cabeça, nem usavam roupas, exceto sapatos, e um cinto onde carregavam pertences. O uso do Tradutor Universal, que seus representantes portavam no cinto, possibilitava a conversação com extraplanetários.

- Então, quer dizer que a tal pandemia que quase exterminou a vida inteligente em seu planeta, foi desenvolvida como arma de guerra biológica? - Indagou Hasselblad ao reunir-se com Ziamm Ho, líder da comunidade.

- E aqueles que a desenvolveram tiveram tanto sucesso, que por pouco não eliminaram o seu próprio povo - assentiu o huthamari. - Mas uma pequena parte de nós sobreviveu, e descobrimos que agora possuímos aptidões telepáticas. Isso fez com que, pela primeira vez, todos pudessem sentir-se como os demais e abrir mão de impulsos belicosos. Somos hoje uma cultura de paz.

- Imagino que seja por isso que os fugitivos que resgatamos no espaço, os classifiquem como "monstros" - avaliou Hasselblad.

- O vírus quase nos destruiu como espécie, mas a mudança que trouxe foi extremamente positiva. Não queremos voltar a ser o que éramos... e se eles não quiserem ser contaminados, é bom nunca mais porem os pés aqui.

Dias depois, Hasselblad informou aos fugitivos que nenhuma cura fora encontrada para a doença, e que estava fora de questão eliminarem os sobreviventes para que pudessem voltar ao planeta natal.

- Os técnicos do Hospital Geral fizeram uma análise cuidadosa, e o vírus espalhou-se por toda a biosfera do planeta - explicou. - Não há como erradicá-lo sem destruir a vida em Huthama-III.

Os náufragos tiveram que contentar-se em serem realocados num planeta cujas condições de habitabilidade eram similares às de seu mundo de origem. E Hasselblad deixou instruções claras ao Corpo de Monitores para que fossem vigiados de perto, já que estava fora de cogitação que começassem novamente a desenvolver armas de destruição em massa.

- [06-05-2019]