O depósito de lixo

O DEPÓSITO DE LIXO
Miguel Carqueija


Marvel chegou para mim com a novidade:
— Erasmo, consegui uma grande concessão, você nem imagina!
— Imaginar como? Não nasci com esse dom.
— Não faz nem ideia?
— Vamos ver... instalar coletores solares na órbita de Mercúrio?
— Nada de tão perigoso assim. Olha, detesto suspenses por isso vou dizer logo: nós vamos cuidar do Depósito de Lixo.
— O que? Você ficou biruta?
— Como assim? É um trabalho como qualquer outro!
— Mas, homem, você está se referindo àquele depósito de lixo?
— É claro que sim! É o único que interessa!
Marvel cofiou os bigodes e, de pé, aguardou que eu me pronunciasse. Eu não me acostumara ainda com a ideia:
— Nunca lidei com lixo antes...
— Os robôs farão o serviço sujo, não esqueça.
— Sim, sim... Diga, Marvel, a Gorda e a Magra já sabem disso?
— Ah, sim. Uma dela deu até pulos de alegria. Você já sabe qual.
— Sim, claro — evidente, pensei, que a Gorda, com seus cento e dez quilos, não vai dar pulos.
Dias depois, com todo o cadastramento já feito e o primeiro carregamento acertado, nosso quarteto se reuniu no salão da Estropício para discutir o primeiro serviço: dez toneladas de lixo fornecidas pela Prefeitura de Phobos.
— Estamos cobrando tão pouco... — observei timidamente.
— É preço de inauguração, não esqueça — lembrou Suzana, a Gorda. — Temos concorrentes e não podemos ser careiros, gananciosos.
— Pelo menos não de saída — acrescentou Júlia, a Magra.
— Mesmo assim... — eu não estava de todo convencido — Manter dez mil créditos por tonelagem durante três meses... e as nossas dívidas? Só a reforma que tivemos de efetuar na Estropício...
— Vale a pena, Erasmo — disse Marvel. — Em três meses já teremos freguesia fiel.
— Nossos robôs vão ter que trabalhar bem.
— Eles estão bem lubrificados.

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No dia 3 de outubro do Calendário Solar pousamos no Espaçoporto de Phobos, conforme fôra combinado. O intendente François já nos esperava e apontou os “containers” que guardavam o lixo.
— Nunca pensei que um satélite produzisse tanto lixo — observou Júlia.
— Recebemos tantos mantimentos e materiais que geram muito detrito e sucata. Mas é que acumulou, estávamos sem contrato há meses — explicou o Intendente.
Eu não quis falar muito. Estava ansioso para liquidar o primeiro serviço; aí, acreditaria mais naquela nova especialidade da nossa nave de operações.
A tarefa, porém, tinha de ser feita cuidadosamente. Nosso robô-chefe, Estácio, era programado para ser meticuloso. Ele orientou esmeradamente os demais autômatos que foram transportando os blocos de material descartado como se estivessem despachando uma mudança — acreditem, com mais zelo do que seria realizado por seres humano. Robôs bem programados são insubstituíveis, inclusive por sua excepcional força física.
Afinal, com a Gorda e a Magra fazendo uma dancinhas de comemoração (e tendo em vista a diferença de biótipos, foi Hilário) e o Marvel cofiando furiosamente o bigodaço, nossa nave Estropício estava pronta para cumprir a sua missão.
E assim, já com o pagamento do serviço em nossa conta conjunta (pois a retirada do lixo era o mais importante), iniciamos a nossa longa jornada para desovar a carga no Grande Depósito de Lixo do Sistema Solar, o Planeta Terra.

Rio de Janeiro, 16 a 21 de agosto de 2019 (ideia anotada em 18/8/2009).


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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 25/01/2020
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