Domínio Astronômico

O som que chega aos seus ouvidos não é de nenhuma de suas canções favoritas. Não existe uma guitarra destilando notas grudentas, não é uma voz melodiosa que canta letras capazes de arrepiar os pelos do corpo. Ao invés disso o que ele escuta é uma voz de comando transmitindo-lhe as últimas instruções antes do lançamento.

Em poucos segundos ele será lançado ao espaço. O primeiro ser humano a viajar em um artefato capaz de dobrar o tempo e o espaço. O sonho de gerações inteiras de aficionados por ficção científica transformado em realidade. Em um átimo de tempo ele estará em algum lugar próximo a Gliese 832. Mais de 16 anos luz de distância será percorrida em um piscar de olhos.

O único problema é que é uma viagem experimental. Se algo der errado não haverá volta.

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Ele não sentiu nada, nenhuma trepidação, nenhum som. É como se não tivesse sequer saído de sua base na Lua. O tempo de um simples pensar durou a sua viagem. Suas angústias, alegrias, decepções, projetos, sua casa, seu jardim mal cuidado, um beijo não dado. Tudo isso está agora a mais de 150 trilhões de quilômetros distantes.

A ansiedade e curiosidade fazem-no respirar descompassadamente. O que haverá lá fora?

Um comando verbal e a IA de sua nave abre as escotilhas.

Em algum ponto da Via Láctea ele se encontra olhando para um planeta de coloração levemente azulada, apenas um pouco maior que a Terra e possuindo dois satélites dando voltas em torno de si. Seus instrumentos mostram que ele orbita uma estrela anã vermelha.

Dentro de seu traje ele se pergunta finalmente o que está fazendo ali. Seus olhos veem uma beleza indescritível. Nesse momento ele se sente como Deus ao admirar a sua criação. Sua razão tenta processar o que seus sentidos percebem. Ele poderia reduzir tudo a classificações estelares, magnitudes, paralaxes, mas porque faria isso agora? Os instrumentos a bordo de sua pequena nave já estão fazendo isso e analisam tudo a uma velocidade inimaginável, proporcionando, em segundos, dados para uma vida inteira de pesquisa. Tudo o que ele faz nesse momento é admirar a formosura daquele mundo.

Ele sabe que dispõem de pouco tempo para permanecer ali. Ele será o primeiro de muitos. Com a nova tecnologia a humanidade ampliará os seus horizontes e haverá uma nova casa para os homens e mulheres que queiram arriscar uma empreitada em outro mundo. Pensando na beleza do novo planeta ele aciona o comando de volta.

Não funcionou! Algo deu errado. O que houve?

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Nada aconteceu e ele continua no mesmo lugar. Sua passagem era só de ida e agora ele tem que encarar o fato de que provavelmente ficará vagando para sempre entre as estrelas. Enquanto olha para o planeta azulado ele se sente o ser mais solitário de todo o universo, mas também certa felicidade por ser o único a contemplá-lo daquela maneira.

A vida transcorre na Terra e ele contempla o próprio infinito. Talvez consertem tudo e enviem alguém para levá-lo de volta. Ele sempre se considerou uma pessoa comum, nunca foi de ter arroubos heroicos, mas por que só ele se ofereceu para essa jornada?

Milhares de coisas passam por sua mente ao mesmo tempo. Ele sabe que em algum momento o sistema de suporte de vida irá falhar. Mesmo sabendo disso, tudo o que ele faz é dirigir um olhar embevecido para o que está a sua frente. Fatos de sua vida passam em flashes por sua mente, seu primeiro dia de aula na universidade, o rosto bonito de certa moça, um sorvete de chocolate...

Calmamente pede que a IA coloque suas músicas favoritas.

Um novo domínio astronômico está sendo posto aos seus olhos e ele escuta músicas que embalaram todos os seus sonhos e paixões.

No limiar do século XXII uma nave de formato esférico flutua em meio à poeira estelar. Em seu interior um solitário astronauta escreve as suas memórias ao som de um variado repertório musical. Quem sabe um dia elas não serão encontradas?

* Este pequeno conto surgiu após escutar as músicas Astronomy Domine, Pink Floyd (1967), Space Oddity, David Bowie (1970) e Rocket Man, Elton Jonh (1972).

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 27/02/2020
Código do texto: T6875848
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