- FLUTUAÇÃO -


Comemorando as 50.000 leituras e agradecendo aos amigos leitores.
Homenagem à colega Lianatins. Pessoa maravilhosa de quem todos gostamos.



Não lembrava para onde estava indo, ou mesmo de quem era, apenas de como a chuva caia aos baldes sobre o para-brisa, e da pista escorregadia pela estrada sinuosa. Não sabia porque dirigia tão rápido naquela tempestade, mas recordava nitidamente do momento em que perdeu a direção e o carro se projetou sobre o despenhadeiro numa flutuação em câmera lenta, da luz dos faróis iluminando o céu de piche, do baque de mil e oitocentos quilos sobre o oceano, e depois, nada.
 
Acordou sufocando com a água que entrava por todos os lados. Batia no vidro com a trava metálica ao mesmo tempo que se atrapalhava tentando liberar a fivela do cinto de segurança.

Passou com dificuldade pela janela, nadou, já quase sem ar, em direção à superfície, e então sentiu um tentáculo enrolando-se pela perna esquerda e a puxando para baixo. Os pulmões lutavam por ar, e a consciência ia falhando. Agora o corpo todo estava tolhido, e algo pesado comprimia seu peito. Estava morrendo.

Mergulhou num entorpecimento de morte e se deixou arrastar por um sono morno, confortável, até perceber um fio de luz e um ruído leve, mas constante, como um zumbido de máquina atingir seus ouvidos. A luz foi tomando conta do espaço e o som foi ficando mais presente.

Abriu os olhos.

Estava em um quarto estranho. Tentou se levantar mas sentiu dor nas pernas e nos quadris, além de uma cefaleia leve.  Ouviu vozes e depois passos. Logo, um homem apareceu trazendo um copo de água.

-Beba devagar. - Falou, enquanto a ajudava a se erguer na cama. Depois deu-lhe um comprimido.

O rosto do homem era familiar, mas não conseguia sequer lembrar o próprio nome. Pediu um espelho. Ficou surpresa com a imagem. Apenas um corte superficial na testa, nada mais. Porém aquele rosto que a olhava de volta pelo espelho, aquele rosto não era o seu.
 
Jogou o espelho sobre a cama, e passou os dedos pelo rosto estranho, horrorizada, como se quisesse arrancá-lo.

- Onde estou? Que lugar é este? Cadê o meu carro? Quem é você?
- Calma. Fique tranquila. De que carro está falando?
- Meu carro! Caí no mar com meu carro. Onde está?
- Não havia carro. Você foi encontrada na rua, desmaiada perto da praça da cidade, e a levamos ao hospital.
- Por que não estou no hospital? Que lugar é esse?
- A senhorita passou um mês lá. Quando acordou e fez todos os exames, teve alta, e nos oferecemos para ficar com você até que recobrasse a memória. Somos de um grupo da igreja...
- Mas eu acabei de acordar! O acidente foi ontem!
- Moça – falou o homem estendendo um copo com um comprimido rosa – beba isto.
- Não quero beber nada! – Falou mas acabou engolindo o comprimido que o homem oferecia, talvez ajudasse a lembrar.
 
O remédio que o homem deu a relaxou e fez a dor incomodar menos.Dormiu e sonhou com o acidente. No sonho dirigia muito rápido, sem saber para onde estava indo. No carro, pendurado no espelho um enfeite balançava. Um brinquedo de couro costurado, com penas coloridas. Sabia o que era aquilo, mas não lembrava do nome. Acordou em seguida, ou, pelo menos, imaginou isso.
 
Conseguiu tomar banho e saiu do quarto. Tudo na casa lhe dava uma sensação de familiaridade, de conexão.  Na sala simples, uma mesa posta, o homem e a mulher com um bebê nos braços.
 
Sentaram-se para o almoço. A comida a fez lembrar de sua infância. Purê de batata com arroz e carne moída. Sorriu. Lembrara que tivera uma infância, que já havia comido aquelas coisas. Mas não lembrava do próprio rosto.

O bebê era inquieto. Até um pouco irritante. A mulher colocou o bebê sobre a mesa e ele bateu na travessa da salada espalhando a verdura por todo canto. A mulher continuava sorrindo como se nada estivesse acontecendo.

Achou aquilo tudo muito esquisito. Pediu o telefone do homem e ele o mostrou prontamente, mas ela continuou olhando para o disco do aparelho sem saber para onde ligar. Era desesperador. Sentia-se presa num mundo aleatório onde era uma espécie de extraterrestre. Não tinha nome, ou rosto, lembranças e estava entre estranhos.

Não sabia o que fazer, para onde ir, ou quanto tempo ficaria naquele limbo. Resolveu permitir que o tempo mostrasse a realidade para ela e se adaptou à rotina da casa.

Ao fim do almoço recusou o suco. Queria dar um passeio pela cidade. Havia um jardim do lado de fora, algumas árvores, e uma trilha por onde chegaria ao portão, conforme o homem lhe dissera. Depois era só descer seguindo a estrada e logo encontraria a vila. Não dava para ver a saída porque o caminho fazia uma curva e a vista estava coberta por um morro baixo que se via em boa parte do terreno da propriedade.  

Pensou que o portão estaria logo após a primeira curva, mas, para a sua surpresa, a trilha se estendia e se estreitava à medida em que seguia em frente. A vegetação se fechando de acordo com que ela avançava, começou a arranhar suas pernas. Até que chegou a um ponto em que não conseguiu mais prosseguir. Olhou em volta e não distinguiu mais a trilha para voltar.   Não entendia como aquilo havia acontecido, mas a trilha simplesmente sumira.

Apesar de ser pouco mais de uma da tarde, o dia começou a escurecer como se estivessem passando da hora do crepúsculo. Ouviu um barulho de folhas sendo movidas, olhou para trás a tempo de ver um vulto se movendo muito rápido, bem perto de onde estava.   
 
Assustou-se. O que teria sido aquilo? Pouco tempo depois o sol voltou a brilhar. Havia uma trilha onde antes só se via mato e árvores. Mesmo tendo andado bastante, de onde estava conseguia divisar a casa. 

O dia seguinte foi como uma repetição do anterior. O mesmo casal sorridente com o bebê, o mesmo comprimido rosa, a mesma trilha estranha. Desta vez, todavia, a noite não caiu antes da hora. Foi fazendo o trajeto ensinado pelo homem até chegar no ponto em que a trilha desaparecia e ouviu outra vez o barulho das folhas. Com a luz do sol conseguiu ver o que estava na mata, era um cão pequeno, peludo e amarelo olhando-a com olhos castanhos e curiosos e com a sua longa e rosada língua para o lado de fora.       
                                                                                                                                             - Ralph! – Falou sem saber porque lembrava do nome. O cachorro ouviu e veio balançando o rabinho.Os seus olhos embaçaram com as lágrimas. Ajoelhou-se e o cãozinho se lançou em seus braços. Lembrou do cheiro, da maciez do pelo fofo, das lambidas. Não conseguia saber de que forma, mas aquele corpinho quente e peludo já estivera muitas vezes junto ao dela.

Voltou para a casa com o cachorrinho. O homem o recebeu com alegria.

- É o Ralph, estava perdido.

Ralph pulou por todo lado, lambendo as pessoas, subindo no sofá. Depois foi até os potinhos de água e comida na cozinha.  Estavam vazios. Foi até a despensa para procurar pela lata de ração, mas quando olhou de volta o cachorrinho já havia corrido em direção às árvores.

Naquela noite bebeu o remédio sem dar trabalho. Até bebeu antes da hora porque queria dormir.  No sonho que teve viu a si mesma quando era criança em um barco. O dia estava quente e quando tentava olhar para o rosto das outras pessoas a luz do sol a ofuscava. Estavam não muito perto da costa, e dava para ver toda a parte sul da ilha onde moravam. A noite caiu de súbito e já não estava mais no barco, mas sentada no banco da frente do carro, com o cachorro.  O cãozinho se agitava tentando pegar um brinquedo O pai dirigia em alta velocidade e estava chovendo muito. A mãe atrás com o irmão nos braços, pedia ao marido que fosse devagar. Numa curva o cachorro se soltou e foi para o colo do pai para pegar a peteca que a menina havia pendurado no espelho.

Acordou aos prantos pela manhã. Quis ter de novo os pais ao seu lado. Tentou dormir outra vez para voltar a sonhar. Mas não podia. Estavam perdidos para sempre, todos eles.

Passou o dia mais calada do que o normal. Foi dar sua costumeira volta pela trilha, pensando em encontrar o cachorro, desta vez sem sucesso. Queria entender tudo aquilo. O que estava fazendo naquela casa com aquelas pessoas? Sentia que, de alguma forma, estava tudo conectado, mas não conseguia seguir o fio da meada.
Pediu para tomar o comprimido rosa duas vezes por dia. Ele parecia ativar suas lembranças. Na tarde seguinte o homem saiu e a mulher sorridente pediu para que ela ajudasse a arrumar o guarda roupa do casal.

A mulher ia tirando os objetos e entregando à moça para que os colocasse em caixas. Eram roupas, lençóis, álbuns, livros... Entre as coisas encontrou um velho aparelho de vídeo cassete. Fazia muito tempo que não via um como aquele. Antes de guardar em uma das caixas, perguntou se podia ligá-lo.

- Sim, querida. – Respondeu a mulher com um rosto sério pela primeira vez.

Na cena, o casal e uma menina brincavam na praia. Junto a eles o cachorrinho corria para a água e voltava. Sorriu ao ver a cena. Usavam roupas de banho já há muito fora de moda. A mulher estava esperando um bebê. Em um determinado momento a menina se afastou para ir atrás do cachorro e entrou na água. O homem gritou seu nome:

- Liana, volte aqui!

Então a câmera focou bem no rosto da criança.

Sentiu um impacto no cérebro. Não sabia se por causa do nome ou pelo rosto da menina. Teve um “déja vù” instantâneo. Aquelas lembranças de uma outra família estavam instigando as suas.

Ficou com aquilo em sua cabeça até o homem anunciar que ia fazer uma visita à vila. Pensou em ir com ele, mas se sentiu sem ânimo e acabou não indo.

O homem não voltou naquele dia, nem nos seguintes. Não tendo com quem conversar, tratou de se aproximar da mulher e da criança: um menino. Pediu para ver os álbuns, saber mais sobre a família.

Achou estranho a dona da casa ter, no máximo, uns trinta anos, e as fotos terem uma qualidade bem inferior às fotos atuais. Conversavam enquanto passava as páginas. A mulher ia apontando para as pessoas e falando seus nomes: Vó Juliana, Tia Fernanda, Madrinha Cristina, o patrão do marido, as crianças... levou um choque ao ver uma das fotos. Entre outros brinquedos sobre uma prateleira, o objeto de couro e penas com o qual havia sonhado logo após se recobrar do acidente. Ficou olhando para a peteca e seus olhos se encheram de lágrimas. Sentia que a qualquer instante as lembranças voltariam todas à sua cabeça.

Ouviu um barulho e correu até a janela para ver quem chegava, mas quando olhou para o vidro ao invés de enxergar a paisagem do lado de fora, havia uma tela escura. Depois, em flashes viu uma sala cinza com luz indireta bem tênue e pessoas vestidas com jalecos brancos.

Tomou um susto e foi andando para trás enquanto se afastava da janela. Foi quando sentiu a picada fina e profunda de uma agulha em seu braço direito.  Em poucos segundos as suas pernas foram ficando moles. Olhou pela janela novamente e viu o jardim lá fora piscando como se fosse uma imagem em uma televisão com defeito. Que estranho. Tentou se soltar das mãos que a seguravam, mas uma fraqueza enorme ia fazendo seu corpo todo pesar. Foi nesse momento que o homem entrou.

- Pai! – Falou baixinho finalmente reconhecendo o homem que se aproximava.
- Liana! Minha filha!  - Correu para abraçá-la mas a sua imagem começou a se desfazer em pequenas partículas.

Liana olhou espantada para as próprias mãos e, com horror, viu que ela se desfazia também. Antes de sumir de vez ainda ouviu a voz do pai falando, mas não teve tempo de decifrar a mensagem antes que seu cérebro deixasse de existir.
 
                                               XXX
 
- Filha, papai perdoa você...
- Senhor. A conexão caiu, senhor.
Gabriel olhou a filha dentro da bolha, adormecida em uma geleia vital. Sem acordar desde o acidente.
- Papai ama você.
O técnico levou o homem relutante até o escritório do diretor.
- Boa tarde! Fomos mais longe desta vez. Estou muito satisfeito. Talvez na próxima ela se lembre antes do tempo acabar.
- O senhor acha que ela despertará?
- Quem sabe? Vamos esperar para tentar novamente daqui a um ano, ok?