O farol

"Sou uma Sombra! Venho de outras eras,

Do cosmopolitismo das moneras...

Pólipo de recônditas reentrâncias,

Larva de caos telúrico, procedo

Da escuridão do cósmico segredo,

Da substância de todas as substâncias!

(Monólogo de uma Sombra - Augusto dos Anjos)

Estávamos caminhando numa das beiradas de um açude perto da cidade, eu e meus amigos, todos bebíamos segurando nossas cervejas nas mãos. Aquela deveria ser uma noite inesquecível. As garotas chegariam dentro de poucas horas não havia lua cheia, mas a noite estava linda afundada em sua escuridão.

Fazíamos uma algazarra enquanto caminhávamos chutando algumas pedras, um de nós cinco quebrou uma garrafa de Montila nas pedras por querer. Intrigado eu sugeri que tivéssemos cuidado, tínhamos acabado de chegar ali, não queria que uma das moças que viriam se machucassem nos vidros e nem um de nós. Por alguns momentos apreciei o ar frio da noite e o vento úmido que soprava em nossos rostos, a água parecia emitir um som que eu desconhecia.

Em minha pele aquele som gerou um arrepio seguido de um calafrio por um instante, meus olhos se arregalaram ao encarar o escuro vazio. Não soube dizer na hora, até agora não compreendi aquele sentimento. Foi como um preludio de algo. A única luz que nos alcançava era a de um poste nos fundos bem por trás de onde estávamos em alguns pontos tínhamos apenas a escuridão e as lanternas dos celulares conosco. Um de nós atendeu o celular, as meninas estavam próximas e não conseguiam nos encontrar.

Passados alguns momentos nos reunimos ao redor de algumas pedras, fizemos a fogueira e começarmos a curtir a noite ao lado das moças. Uma mais bela que a outra, observei pensativo qual delas eu iria tentar conquistar e uma em especifico chamava minha atenção por conta dos olhos dela na escuridão. Ao redor alguém tocava violão, risos e gargalhadas estridentes eram emitidos. Aos poucos me aproximei daquela figura encantadora, baixinha e magra com olhos da cor de mel. Naquele ambiente aqueles olhos pareciam queimar e eu senti-me encarado por chamas.

Sentamos em uma pedra de costas para a água, sorri e a olhei pensando no que diria. Alguns de meus amigos já estavam mais avançados na conquista do que eu, entretanto, quando estava um pouco sem esperanças e perguntei seu nome ela me beijou. Respondeu-me depois dizendo: Gabriele. Foi como um torpor único de momentos não sãos ouvir sua doce voz e sentir os seus lábios nos meus.

Em questão de segundos aquela noite se tornou perfeita. Depois de alguns momentos envolvidos no nosso entrelaço ouvimos alguém gritando, era Douglas um garoto gorducho e muito inconveniente, não tinha conseguido nem mesmo um abraço de uma menina durante todo o período. Enfurecido levantei e fui questioná-lo o motivo de todo seu alvoroço. Ele voltou a apontar para o lado mais escuro dizendo que um bêbado estava vindo em nossa direção, rimos e dissemos que ele teria mais bebida se quisesse.

Assim, todos se ergueram das pedras e o som do violão parou. Alguém se levantou e pisou nos cacos de vidro de uma garrafa quebrada ao redor. Os estilhaços de vidro pareciam ter voado por todo lado e só percebemos depois. De repente a tranquilidade se decepou no ar e as meninas estavam gritando e xingando o suposto bêbado que apareceu. Ele se mexia estranhamente como se estivesse abaixado procurando algo, pudemos ver nitidamente que ele vasculhava o chão com uma lanterna, aparentemente de um celular um pouco acima da cabeça.

Confuso com tudo eu segurei minha companhia pela mão e pedi que fossemos para longe do tumulto, ela não me deu ouvidos e disse que era apenas um bêbado. Diante daquilo vendo toda a cena se seguir entre todos gritando e se aproximando da figura na escuridão para infernizar o pobre coitado, fiquei quieto e desconfiado pedindo para que o perdessem de vista.

Avançamos ainda mais, garrafas de cerveja continuavam a serem quebradas afinal a maioria de nós estava fora de si. Eu era o único sóbrio e o mais amedrontado, a visão que comecei a ter por momentos parecia embaçada e irreal, comecei a crer que não estava em mim. Meus companheiros não paravam de se esgoelar indo em direção àquela visão que parecia distanciar-se com nossa aproximação.

Depois de algum tempo percebi que corremos bastante, porém, não tive a noção do quanto. A moça que estava comigo havia parado a alguns passos longe de mim, o silêncio finalmente resguardou nossos ouvidos. Enxergávamos o que parecia ser uma criatura atordoada que se movia destrambelhada.

Ao observar melhor o local que nos encontrávamos percebi que a noite não estava mais tão escura. Aquilo que estava bem perto da água, inclinado e sorrateiro visto bem de perto não parecia com nada que eu já tivesse visto durante toda a vida, meu coração silenciou dentro do peito, o mundo emudeceu enquanto encarei um ser que parecia viscoso e molhado de pernas curtas e braços longos demais, era encurvado como se a coluna fosse torta, sua face era desprovida de um rosto como o nosso.

Possuído pelo terror não pude gritar ou fazer qualquer ruído, a luz que críamos ser um celular estava no topo da cabeça daquela criatura. Era uma luz forte, ele não se mexeu por alguns segundos ao nos encarar, pareceu correr assustado. Um de meus colegas inoportunos começou a jogar pedras na figura, senti um calafrio horrendo ao presenciar aquele feito.

A luz no topo do que parecia ser uma cabeça ovalada e de textura gelatinosa tornou-se forte como um farol e começou a girar ao redor do corpo da criatura. Dando um salto para trás pedi que parassem, o pânico estava nítido nos olhos de cada um. Jamais senti aquilo em toda minha vida e ao registrar essas palavras volto a sentir aquele horror denso que tomou conta de meu corpo.

Todos estavam espantados e atordoados com aquela sinistra e inquietante visão. O corpo molenga de cor que não consigo descrever afastou-se cambaleante de nós pelas pedras, foi ai que percebi que nós é que erámos os intrusos ali. Eu não podia conter os outros que não paravam de atirar pedras e vociferar palavras repugnantes contra aquele ser diante de nós.

De repente aquilo nos encarou por uma última vez, não possuía olhos de fato ou um rosto que eu possa explicar o formato. Mesmo assim senti que seu olhar foi dirigido a mim quando a luz inebriante apagou-se. Ouvimos o barulho de algo entrando na água apressadamente, foi quando eu soube que a criatura tinha sumido. Um clarão havia se formado sobre nossas cabeças, não era o nascer do sol e muito menos algo do tipo.

Finalmente corremos para longe dali, encontrei a moça com que eu estava antes no meio da fuga, nos separamos no meio da confusão. A agarrei pelo braço. O clarão no céu parecia crescer em nossa direção, minha respiração estava cada vez mais pesada e sem forças. O horizonte parecia infindo e negro ao nosso redor, amenos quando olhávamos para o céu, por alguns instantes tudo se iluminou acima de nós até o caminho de volta na mata entre as pedras foi possível avistar.

Entretanto, todas essas cenas se seguiam entrecortadas no meu campo de visão e por alguns momentos um som agudo demais penetrou nossos ouvidos. Era como uma onda sonora incompreensível, o tempo pareceu parar quando o clarão começou a distanciar-se aos poucos e sumir. Vi meus colegas aliviados ao mesmo tempo em que estavam tomados pelo pânico da situação.

Gabriele estava desesperada agarrada ao meu braço, toquei seu rosto aflito na tentativa de acalma-la. Estávamos perdidos novamente na escuridão. Iluminamos o caminho com as lanternas do celular novamente, retornamos para a cidade paralisados pelo medo e em total silêncio. Nenhum de nós disse uma só palavra sobre o ocorrido desde então, estávamos em choque e completamente abismados. No fundo algo me dizia que aquele acontecimento jamais seria compreendido por ninguém que o presenciou.

Júlia Trevas
Enviado por Júlia Trevas em 06/04/2020
Código do texto: T6908809
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