Vampira Zero

Dia 1

Eu sei que sou um pouco fora dos padrões da sanidade só que nestes últimos dias com certeza tenho me tornado muito mais. É tão difícil explicar o que sinto quando olho pela janela sabendo que não posso mais olhar. O ano começou até bem, as coisas pareciam estar finalmente se ajustando.

Até que de repente... As pessoas começaram a ficar doentes e isso foi se espalhando muito rápido, no começo não me importei muito afinal uma criatura da noite como eu não precisava se preocupar com muitas coisas. Sempre houve problemas como esse assolando o povo humano, o último que tinha visto com essa intensidade foi em 1648. Naquela época podíamos nos alimentar normalmente e continuar nossa vida noturna como sempre.

Mas, aquilo me pegou de surpresa, estava como sempre a vagar por vielas escuras esperando algum desleixado para me aproveitar e foi quando aconteceu. Mordi uma pessoa infectada, uma moça desafortunada que cruzou meu caminho. Só que eu não imaginava que o infortúnio seria na realidade meu. Poucos dias depois comecei a sentir essas dores no corpo e no estômago. Como já você deve imaginar eu que me considerava o auge da evolução fiquei doente após aquela mordida.

Então, comecei a vomitar um líquido viscoso e escuro quase todos os dias ao tentar me alimentar. Foi quando começou a quarentena e os humanos começaram a se trancar em suas casas, tudo fazia sentido agora... Como poderia isso ser real? Estou em confinamento como todos os outros, também fomos estranhamente infectados alguns de nós pelo menos.

Isso apenas me faz pensar muito mais que o normal, pois, observo todas as eras que vivemos neste mundo, costumava me perguntar se eu era realmente imortal e se algo poderia me destruir um dia. Tudo sempre pareceu tão fácil e tão simples quando se tratava de poder, agora me sinto igual a eles nada menos do que um ser assustado e indefeso tentando sobreviver.

Soube de outros como eu que também pegaram a doença recentemente e estão aos poucos definhando como eu estou. Sei de uma coisa, só nos infectamos se tomarmos o sangue infectado, e a comida está escassa demais ultimamente por conta do isolamento nos restando os animais ou pessoas de rua.

Sempre evitei me alimentar de pessoas de rua... Não sei se conseguirei passar dessa noite na verdade. Meu coração está cada vez mais pesaroso e posso observar com relevância a semelhança de nossas existências, me pergunto se existe realmente essa superioridade que acreditávamos. Não tenho certeza do que dizer essa é a verdade.

Nas histórias somos conhecidos como seres inóspitos e sombrios quando na verdade não é bem assim, a mística que nos envolve é totalmente preenchida pela imaginação humana. Vejo-me no espelho sem entender o que realmente sou e o silêncio profundo das ruas me invade cada vez mais.

Sei que já tive a paciência de criar antes anos atrás e isso era arte para mim. Sinto que este mero exercício de escrita em meu diário serão as únicas lembranças que alguém poderá ter de que estive aqui. São palavras que também serão esquecidas, jamais iluminadas pelas ideias de um leitor. Essas palavras são a arte de algo considerado aterrorizante sendo aterrorizado.

Isso sou eu no fundo do poço da existência sou igual a eles. Um ser escondido nas sombras apenas. É como se eu tivesse bebido sangue morto e estivesse morrendo junto com ele. Gostaria de sentir o sabor do vinho uma última vez em minha boca. Eu busquei o presente da noite e por ele serei levado essa é a verdade que sempre soube.

No entanto, esses momentos de silêncio me fazem pensar muito além de mim. Como se a todo tempo me lembrassem do que somos e me refiro aqui ao conjunto de tudo. Sempre vemos a vida como ela realmente é? Tenho vivido (ou morrido) não importa a tantos séculos, vi tantas espécies de animais belas e exóticas... O que é a existência para mim? O que somos para estarmos aqui?

Olho pela janela sem saber o que esperar encontrar mesmo sabendo que não tem nada lá fora. E se o que tem lá fora é algo além dos meus olhos? Preparo-me para a morte sem crer que ela realmente exista para mim. Sempre fui assim e sempre estive só nas vielas da cidade. Nunca vivi de verdade, nunca amei e nunca me aventurei em algo que me desconectasse do que quer se objetivasse a me prender.

Só desejo olhar para fora com novos olhos mesmo sabendo que o sangue em minhas veias nunca vai se recuperar por inteiro, é como se o mundo estivesse morrendo. Essa morte poderia ser um tipo de renascimento se os outros quisessem que fosse... Se conseguirmos suportar este peso.

Sinto como se um câncer envolvesse meus órgãos o sangue já não tem gosto de sangue, meus ossos parecem fracos e meu corpo é como uma casca que se racha do topo ao meio. Já não posso respirar direito como se uma pedra estivesse posta sobre o meu peito, ainda assim consigo me mover. Logo estaremos como os humanos, mascarados nas ruas.

Infelizmente é como se a minha antiga depressão tivesse se apoderado de mim fisicamente, essa é a grande façanha vampiresca na cidade. Não sei se devo esperar isso passar como em um efeito placebo já que não matei aquela que me infectou. No final sou só mais ALGUÉM enlouquecendo com a própria presença... Espero sobreviver a minha própria companhia por mais um século, essa é a verdade.

No entanto, o fato de estar praticamente em uma prisão sem a opção de livremente sair em busca dos meus desejos é enlouquecedor. Não sei quem vai ganhar primeiro se é a loucura ou a doença. Não sei se conheço bem a esperança só que estou achando que o que reluz em meu peito nesse pálido momento é um feixe dela, apesar de tudo o que consigo fazer desde que levantei hoje é apenas me mover do sofá para o banheiro, e colocar para fora esse vômito escuro que parece sair pelos meus olhos também...

Júlia Trevas
Enviado por Júlia Trevas em 12/04/2020
Código do texto: T6914931
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2020. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.