A Morte da Morte

Saiba mais sobre o meu trabalho em: https://www.escritoralexandre.com

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“Você acha que eu estou sendo muito egoísta por pensar apenas em mim mesmo agora e não dar a mínima para a humanidade?” O homem à minha frente faz uma cara de preocupação. De pele clara e cabelo preto curto, ele está com uma vestimenta muito simples que lhe dei a pedido seu: uma camiseta e shorts brancos.

“O mais importante é que você está sendo sincero. Você poderia simplesmente mentir para mim sobre o quanto você se preocupa com os outros e fingir que está tudo certo, o que faria a nossa conversa ser totalmente inútil.”

Ele me lança um olhar de canto de olho e acena lentamente com a cabeça. “Eu até pensei em fazer isso. Porém, é como você diz: faria tudo ser em vão.”

Atrás dele está a cápsula de vidro onde ele morreu, agora vazia e estilhaçada, assim como as demais delas para a direita. Removi todos os corpos e o assassino da cena, exceto pelo homem ainda vivo dentro da cápsula para a esquerda.

Leveus dá um suspiro, por mais que esse ato não tenha qualquer sentido que não seja se expressar, já que ele nem respira mais. Por mais que já tenha me acostumado com a ideia, ainda é surpreendente como os humanos vivenciam suas consciências através do corpo. “Mas e sobre o que eu perguntei? O que você acha disso?”

“Já vi muitas pessoas passarem por esse mesmo conflito, por mais que o seu caso seja muito excepcional, e ele veio se tornando cada vez mais frequente nos últimos tempos. A sociedade humana vem exacerbando a exigência de altruísmo a níveis particularmente danosos, algo que você mesmo expressou diversas vezes durante a nossa conversa. Você tem certeza de que agora se importa mais com a maneira como a sua vida acabou do que com o iminente fim da própria humanidade, não é?”

Ele põe as mãos no rosto e o esfrega. “Mas isso é tão errado. O propósito da minha pesquisa não era salvar a humanidade?” Ele olha para trás, buscando o assassino, mas este não se encontra mais lá. “Pode fazê-lo voltar?”

Considerando que agora ele não está mais naquele desespero e que seu projeto envolvia essas criaturas, é possível que isso seja algo positivo. Assim sendo, faço surgir novamente o monstro: uma criatura de aspecto difícil de definir, que foge a qualquer padrão de ser vivo que os humanos tenham conhecido. Como sua composição não interage com a luz, ele é cem porcento escuro, sendo possível apenas reconhecer a borda do seu formato, como um desenho bidimensional: ele tem um centro irregular flutuante, como uma bola deformada, do qual se projetam cinco membros que têm a flexibilidade de um tentáculo, mas a aparência de lâminas compridas. Três destes estão atravessando a cápsula.

“Ainda é assustador observar a minha própria morte, causada pelo meu próprio objeto de estudo”, o sujeito diz, antes de se voltar para mim novamente, sério. “E, assim, toda a minha vida foi para nada e eu tive uma morte inútil.”

“Ou seja, essa é mesmo a sua preocupação, como você já repetiu algumas vezes, e não o fim da humanidade em si, e não tem nada de errado nisso. Você era encantado por essas criaturas e queria conhecê-las, achava que poderia descobrir os segredos do universo, e salvar os humanos seria apenas uma consequência. E repito: não há nada de errado nisso.”

“Apenas uma consequência?” Ele se espanta, mas depois fica reflexivo, olhando para baixo. “Acho que estou entendendo o que você quer dizer. Se salvar as pessoas fosse o meu objetivo primário, eu deveria estar preocupado com elas acima de tudo, mas o que mais me incomoda é ter morrido sem chegar nem perto de concluir a minha pesquisa.”

“Ainda assim, você trouxe avanços importantes. Quem fez a descoberta que deu origem a esse plano todo foi você.”

“Mas de que adiantou?!”, ele fala em voz alta, franzindo a testa. “Você mesmo disse que as pessoas dessa espaçonave são as últimas pessoas no universo! A única coisa que consegui alcançar foi estender a nossa existência por algumas décadas.”

“E o que mais poderia ter sido feito? O seu plano foi o melhor que todos os seres humanos conseguiram pensar. Era uma aposta: havia uma chance de funcionar ou de não funcionar, e era a melhor probabilidade de sobrevivência. Infelizmente, a chance negativa ainda venceu.”

“Eu deveria ter pensado em algo melhor! Deveria ter estudado mais, investigado mais, discutido mais, até descobrir tudo. Mesmo se eu ainda fosse morrer, eu queria ter resolvido essa questão.” Cabisbaixo, ele põe uma mão no rosto, tentando conter lágrimas.

“Não havia muito mais a ser feito, você dedicou absolutamente todos os seus recursos para isso. A única coisa que poderia ter lhe ajudado é a sorte, mas ela está totalmente fora do seu alcance. É muito comum as pessoas terem arrependimentos assim em seu último momento, mas a verdade é que a maioria delas fez tudo que podia, dentro do que sabia.”

Ele franze os lábios. “Mas você espera o quê? Que eu simplesmente aceite que eu não alcancei meu objetivo e me sinta bem com isso?”

“Imagine se o seu projeto fosse alcançar o final do universo. Você acha que conseguiria fazer isso?”

Balançando a cabeça, ele responde: “Claro que não. Nossa tecnologia nunca chegou nem perto de algo assim”.

“E, infelizmente, também não chegou perto de vencer essa ameaça”, digo.

Leveus se vira para observar a criatura, permanecendo nessa posição por um longo tempo com um olhar triste. “E é simples assim?”, ele finalmente diz. “Devo aceitar que meu propósito era impossível e que gastei todo o meu tempo em algo que nunca daria resultado?”

“Não tinha como saber se o seu propósito se concluiria. Você fez o absoluto melhor que pôde, sei disso após ouvir tantas outras pessoas. Havia até uma chance razoável do seu plano dar certo e ser possível você dedicar o resto da sua vida após sair da hibernação em pesquisar esses monstros. Infelizmente, não aconteceu. Contudo, você chegou o mais próximo que era possível.”

O homem fecha os olhos e respira fundo algumas vezes, tentando se acalmar, por mais que não esteja realmente inspirando nenhum ar. Lágrimas começam a escorrer pelos cantos de seus olhos. “Isso é tão difícil”, ele diz. “Eu já sabia o quanto seria difícil sobreviver. Colocar as pessoas em hibernação e espalhá-los para longe foi um último plano desesperado, mas não discordo que era o melhor que podíamos fazer. Mesmo assim...” O homem hesita, movendo os olhos, antes de continuar: “Você não acha isso muito estranho? Bem, você deve estar acostumado, já que viu bilhões de pessoas passando pelo mesmo. E você não tem o que pensar da própria morte, não é? A menos que...”. Ele estreita os olhos, pensativo. “O que vai acontecer com você quando o camarada ali do lado morrer?”

“Eu...” Como isso não passou pela minha consciência? Estou sentindo algo com essa percepção, mas é sempre difícil saber o que é porque não tenho um corpo. “Vou morrer também. Irei desaparecer junto com a humanidade.” Como esqueci desse detalhe? Não tenho como ter certeza absoluta do que acontecerá comigo, mas acho impossível que eu continue existindo quando o último humano se for.

“E como você se sente quanto a isso?”, ele indaga, colocando a mão no queixo.

“Não sei ainda”, respondo honestamente. “É algo que terei que pensar bastante a respeito. No entanto, será que você não está usando isso apenas como uma distração do seu caso?”

Alarmado, ele se estica todo, piscando os olhos. É tão simples entender os sentimentos das pessoas apenas de observá-las, e elas mesmas podem compreendê-los ainda mais através do que sentem através do corpo, como coração acelerado, respiração pesada, contração muscular, entre outros. Acho que sinto inveja deles por isso, pois o meu autoconhecimento é bem mais difícil.

Relaxando, o sujeito diz: “Talvez. Na verdade, é bem interessante saber da sua existência e tentar entender tudo que você pensa, mas acho que eu não tenho muito tempo, não é?”.

Fico em silêncio e ele continua: “Minha cabeça está tão cheia de pensamentos sobre mim mesmo que eu não consigo me concentrar nessa coisa incrível à minha frente. Se fosse em outro momento, eu estaria imediatamente fazendo o possível pra lhe estudar, mas agora...”. Leveus balança a cabeça.

A coisa incrível a que ele se refere sou eu? Bem, não é hora de pensar nisso. “É perfeitamente compreensível”, digo. “Porém, acho que você já está lidando com a situação de maneira um pouco melhor, aceitando que fez o que era possível. Se sente menos tenso?”

“Menos tenso?” Ele põe uma mão no queixo. “É, acho que dá para dizer isso.”

“E consegue discernir o porquê?”

“Ah, foi por essa conversa. Você me convenceu de que não tem problema me importar com os meus desejos em detrimento do resto das pessoas, além de que verdadeiramente fiz o que era possível, por mais que tudo tenha acabado dessa forma no fim das contas.” O homem dá de ombros. “Eu estive aqui refletindo bastante sobre isso. Mesmo se eu tivesse concluído meu projeto, eu iria criar outro, até que eventualmente eu morreria sem completar algum, não é mesmo?”

“Você desenvolveu bem o que eu disse.”

“Você já deve ter visto milhões de casos como o meu, não é?” Ele esboça um sorriso. “Provavelmente já estava esperando que isso iria me afetar.”

“Obviamente. Muitos humanos realizam alguns projetos e, na velhice, não têm mais interesse de realizar nada, passando os dias apenas esperando morrer, e comumente se sentem tristes e arrependidos quando me encontram. É fácil perceber como você é o contrário disso, certamente sua ambição o seguiria até o fim. Na minha opinião, você levou uma ótima vida, fez muito do que queria, se destacou entre todos as pessoas e chegou o mais próximo possível desse último grande objetivo.”

Leveus lentamente acena com a cabeça, concordando enquanto reflete. “Eu entendo o que você quer dizer. É uma forma interessante de pensar na vida...” Ele faz uma pausa e desvia o olhar, continuando em tom baixo: “Vivemos sempre atrás de alguma coisa, sem essa corrida chegar ao fim... isso pode ser altruísta ou não, mas não tem importância de verdade. Eu devo ter feito tudo que era possível, não é? Hm”. Voltando a atenção para mim, diz: “É um pensamento reconfortante. Sinto que minha vida não foi um desperdício agora, sabe? Antes mesmo dessas criaturas surgirem, eu alcancei tantos feitos científicos. Mesmo que eles não terão mais utilidade para ninguém, não era esse o meu objetivo primário. Me sinto mais leve”.

“Perfeito, Leveus. Eu não sei o que acontecerá com você depois, se há alguma vida após a morte ou se sua consciência simplesmente desaparecerá para sempre, mas você acha que agora está preparado para encarar essa realidade?”

Ele franze os lábios. “É inevitável me sentir ansioso com isso, com medo desse desconhecido, mas pelo menos não me sinto mais desesperado com a vida que levei. Esse é o seu papel, não é? Acho que você fez um bom trabalho, já que tem mais experiência com isso do que qualquer outro já teve. Mas... será que você poderia me dar mais tempo aqui?”

“Não há tempo aqui, não há um mundo material, nem outros seres vivos. Eu e você estamos apenas presos num momento atemporal enquanto for necessário pelo julgamento dos princípios que regem o meu trabalho.”

O homem dá um suspiro. “Eu entendo. Tudo bem. Tem como você ao menos me dar um abraço com esse corpo, mesmo não sendo a Arietta de verdade?”

“Claro.” Ele se aproxima para um abraço, enxergando que meus braços se abrem e então se fecham ao redor dele. Eu não sinto nada, pois esse corpo é apenas uma imagem criada, mas espero que lhe seja útil.

Leveus afasta um pouco o rosto e diz: “Faça um bom trabalho com esse cara ali do lado, está bem? E não sei o que acontecerá com você depois, mas espero que também tenha um final feliz”.

Esse bolsão atemporal se encerra e sou enviado de volta para o domínio imaginário.

Estou novamente em meu lar. É meio difícil chamá-lo assim, não é? Passo apenas alguns momentos aqui antes de ser enviado novamente a um trabalho, ao contrário dos outros arquétipos que realmente habitam esse domínio.

Essa pode ser a minha última vez aqui. Não existe nada material para ser enxergado neste local, mas sinto a última consciência humana, algo tão estranho se comparado às trilhões que estavam por aqui antes. Estranho é um eufemismo para essa situação. Eu deveria saber que um dia chegaríamos a esse fim, porém, ainda assim, parecia algo tão distante, que demoraria tanto que nunca iria acontecer.

Seria essa estranheza a saudade, ou nostalgia? Afinal, parece que queria que tudo voltasse a ser como antes, que a situação atual é ruim. Devo estar querendo fugir da possibilidade do fim.

Se eu tivesse um corpo, tenho certeza que ele estaria sendo bem expressivo das minhas emoções. Acho que o que estou sentindo é uma forma de angústia, pois meus pensamentos são atraídos constantemente para o meu destino, não consigo transferir meu foco para qualquer outra coisa.

Será esse o meu fim? É bem provável, mas não tenho como ter certeza. Sinto os outros arquétipos também por aqui, entretanto, não tenho tempo para me comunicar com eles. Será que eles também estão tensos com o que está logo por vir?

De repente, estou mais uma vez no domínio real, mais especificamente, na espaçonave. À minha frente, o homem na cápsula está com uma lâmina atravessando sua cabeça, a qual fica coberta de sangue. Ele tem cabelos brancos e o rosto um pouco enrugado, o que indica que já viveu mais de cem anos, quando a natureza começa a derrotar a tecnologia humana.

O sujeito está pelado, exibindo membros finos e bem brancos, e o corpo sem nenhum implante cibernético, este detalhe semelhante a Leveus e outros membros dessa tripulação hibernada.

Lembro-me de como fui acompanhando o crescente uso de implantes para resolver diversos problemas biológicos e aprimorar funções, até que eles foram se tornando obsoletos aos poucos, substituídos por nanomáquinas e implantes biológicos.

Aliás, por que é que eu estou pensando nisso agora? Tenho que focar no meu trabalho, não ficar divagando. Me parece uma espécie de saudosismo, trazendo memórias antigas que eu gostaria de poder reviver para evitar o fim iminente.

Ele abre as pálpebras e aparentemente percebe o que está acontecendo. “Ahhh!”, ele grita de espanto, arregalando os olhos e se jogando para trás, sem se dar conta de que começou a flutuar, acertando as costas na parede da nave, que na verdade é o limite do bolsão.

Como de praxe, crio a gravidade, removo o assassino, o sangue e os outros corpos. O homem cai de bunda no chão e parece confuso e perdido até me avistar, quando então ergue as sobrancelhas.

“Como você me vê?”, eu pergunto.

“A sua forma, você quer dizer?” Antes que eu possa responder, ele estreita os olhos e continua: “Você... é um humano em constante transformação, não é? Alternando o tempo todo entre pessoas de formas muito diferentes, mas nenhuma que eu conheça. O que é que está acontecendo?”.

“Essa é a forma que você escolheu para mim. Meu nome é Morte.”

Seus olhos se abrem novamente ao ouvir esse nome, piscando algumas vezes. “Ah.” Ele relaxa, dando um suspiro. “Agora estou lembrando do que aconteceu. Eu estava hibernando aqui, não é?” Ele aponta para a cápsula de vidro. “Tentando sobreviver ao ataque dos seres desconhecidos. Mas parece que fui pego, enfim”.

“Precisamente.”

O homem se levanta e caminha lentamente até mim. “Então esse é o fim? Você veio me buscar?”

“Sim e não. Seu nome é Ashelmon, correto?”

Ele balança a cabeça.

“Eu não vim lhe buscar, Ashelmon, não é esse meu trabalho. Eu fui criado e nomeado pelos humanos há milênios devido ao seu medo de morrer. Com a dificuldade em lidar com essa passagem, que pode ser para uma vida após a morte ou para lugar nenhum, passei a existir para ajudá-los a lidar melhor com esse momento.”

O homem coça o queixo. “E você aparece assim para todo mundo?”

“Isso. Desde que surgi, conversei com todos os humanos que já existiram quando chegaram, cada um, ao seu último momento.” Minhas respostas são robóticas, já que repeti esse discurso trilhões de vezes, mas agora parece que não estou nem um pouco focado nesse momento, estou literalmente apenas repetindo frases decoradas.

O que parece martelar minha consciência constantemente é pensar em mim mesmo, e não nesse humano à minha frente. Aparento ter até uma certa aversão desse humano, como se ele estivesse me incomodando, me forçando a fazer algo que eu não quero em detrimento àquilo que me interessa.

Aliás, eu já senti isso alguma vez antes? É difícil julgar o que me é prazeroso ou aversivo. Nesse caso, estou me baseando na direção em que minha consciência está fluindo naturalmente, que é para longe dele e para dentro de mim. O que acontecerá comigo? O que foi que eu fiz com esses milênios de existência? Será que foi tudo para nada? Eu não sei!

“Isso é... incrível!”, ele diz lentamente, acenando com a cabeça. “Que existência fantástica!” Ele estende os braços, tentando pegar no meu corpo fictício, como se fosse um objeto de estudo. “Eu quero saber tudo sobre você!”

Minha existência é e foi fantástica? Teria eu levado mesmo uma vida incrível? Não é a primeira vez que alguém se interessa assim por mim. No entanto, essa é a única instância em que isso parece me afetar, provocando reflexões. Se milhares de pessoas tiveram essa mesma reação comigo, significa que posso dar valor àquilo que sou e que faço? É uma linha fraca de raciocínio, contudo, não consigo evitar de ponderar a respeito.

“Você acha isso mesmo?”, questiono. É engraçado que sempre ignorei comentários assim antes e apenas me focava em ajudar o humano, enquanto agora estou agindo dessa forma.

Ele para e olha na direção do meu suposto rosto, mas movendo os olhos para cima e para baixo, conforme a minha forma se alterna. “Me parece que você não consegue entonar sua voz, porém, essa é uma pergunta que ainda me parece bem significativa.”

“É? E significa o quê?”

Ashelmon ergue as sobrancelhas. “Que você não parece concordar. Sua autoestima não é muito boa?”

Também não é a primeira vez que uma pessoa fica me questionando, mas eu devo estar muito mais transparente que o normal, o que é compreensível. “Nada má a sua percepção. No entanto, você não acha que tem focado demais em mim nesse momento? Desde que me apresentei, seu foco foi totalmente em mim, como se tentando ignorar a sua própria situação.”

“Há há há. Você é esperto”, ele diz, “mas imagino que você já tenha dito isso milhões de vezes”.

“Correto. É algo que acontece com frequência.”

O homem aponta para mim. “E se eu te devolver a mesma fala? Você não desviou do assunto agora só porque eu atingi um ponto fraco sobre o qual você não queria conversar?”

“E por que eu deveria me importar com isso? Meu papel aqui é facilitar a sua passagem.” Na verdade, eu sei que isso é só uma desculpa. Estou tentando evitar falar sobre mim, não é? Afinal, o que eu quero? Certamente é pensar na minha situação e não na dele, mas, ainda assim, é muito difícil falar sobre o que me aflige, minha consciência tenta fugir disso automaticamente.

Ele estreita os olhos e põe a mão no queixo. “Não sei, talvez isso te ajude mais para frente. Por falar nisso...” Ele faz uma pausa, observando os arredores. “Onde estão os outros dessa espaçonave? Você conversará com eles também?”

“Eles já se foram, você é o último. Não só dessa embarcação, como de toda a humanidade. Os inimigos venceram, Ashelmon.” Costumo ser honesto e direto, mas será que agora não estou apenas querendo observar a sua reação? Afinal, eu nem sei mais o que é que eu estou fazendo aqui. Certamente, realizar o meu trabalho de sempre não aparenta ser prioritário.

O sujeito leva alguns segundos para absorver o que eu disse, e então caminha pelo corredor, analisando as cápsulas quebradas, mas vazias. “Você fez os corpos sumirem, certo?”

“Sim, assim como a criatura das trevas e o seu ferimento.”

Instintivamente, ele passa a mão pelo rosto, sem parecer assustado, apenas reflexivo. “Nada que fuja muito do esperado”, diz, com um olhar distante. “Seria mesmo um milagre se a humanidade sobrevivesse.”

“Você parece estar aceitando isso surpreendentemente bem. Não se importa muito com o fim de tudo?” Talvez eu nem deva me preocupar por não cumprir a minha função corretamente aqui, esse homem nem precisa da minha ajuda. Quem sabe, então, ele tenha algo útil para compartilhar comigo?

“Não diria que é isso. É só que... eu já tinha aceitado o que estava para acontecer, sabe?” O homem dá de ombros, mas seu semblante transparece um pouco de tristeza. “Quando aceitei embarcar nessa espaçonave, eu só queria poder assistir aos últimos momentos da humanidade, saber de tudo que teria acontecido. Chega a ser icônico que sou o último humano no universo: completei literalmente o meu objetivo.” Ele sorri, seu rosto misturando alegria e pesar. “Mas, afinal... o que foi descoberto desde que eu hibernei? O que são essas criaturas?”

Não sei se ele sente pesar por si mesmo ou pelos humanos como um todo. Por algum motivo, isso é algo que atrai o meu pensamento. Estaria eu me identificando com ele de alguma forma?

“Nada mudou”, respondo. “Ainda se acredita que eles sejam alguma forma de defesa do universo para impedir que seres vivos saiam de seus sistemas planetários, já que eles surgiram logo depois que a primeira espaçonave passou pela órbita de Sedna. Aparentemente, eles precisam exterminar as espécies capazes desse feito. E, no fim, a teoria ainda era de que eles são feitos de matéria estranha e energia espacial.”

“É uma pena.” Ele balança a cabeça. “Esperava que a humanidade chegaria um pouco mais longe no tempo em que eu ficaria hibernado.” Voltando a atenção para a cápsula de onde saiu, continua: “Também pensei que, ao menos, eu morreria acordado. As coisas foram um pouco piores que o planejado, mas tudo bem. O fim chegou e tenho que lidar com isso”. Ele dá um suspiro, parecendo triste, mas certamente não desesperado.

Ainda não sei se ele está mais triste por si mesmo ou pelos outros. Será que ele amava os humanos como um todo? Isso explicaria por que ele me vê como uma forma mutante, me transformando em diversas pessoas diferentes. “Afinal, você está mais triste por si mesmo ou pela humanidade?”, finalmente pergunto. Não sei direito o porquê, mas estou na expectativa de conseguir uma resposta útil para mim mesmo.

Ashelmon se surpreende com a pergunta, abrindo bem os olhos por um momento. “É... uma ótima pergunta. Não tenho certeza.” Ele coça a cabeça, dando lentamente alguns passos para os lados. “O que você acha?”, pergunta, focando o olhar em mim.

“Se você não tem a resposta, por que eu a teria, seu imbecil?”

O sujeito se assusta. Espere! Que reação foi essa? Mesmo em tanto tempo de vida, eu nunca xinguei alguém diretamente dessa maneira. Não tenho certeza, mas deve ser a tal da raiva que me levou a essa atitude.

Sua surpresa se transforma em riso. “Há há! Então você é capaz de sentir ódio, não é mesmo? Você costuma se irritar com as pessoas assim?”

“Essa é a primeira vez que isso me aconteceu, nunca xinguei alguém antes.”

Ele ergue as sobrancelhas. “É mesmo? Então eu sou o humano mais insuportável que você já conheceu? Não é possível que o meu caso seja mais difícil que todos os outros bilhões que você presenciou.”

“Não sei ao certo.” Eu não estou me importando muito com ele, na realidade. Seria essa a causa? “Para falar a verdade, eu sequer estou fazendo o meu trabalho aqui. Não consigo parar de pensar em mim mesmo e nos meus problemas, não consigo me focar na sua situação, ela não me interessa.”

“Seus problemas...?” Ele baixa o olhar, reflexivo, antes de retorná-lo a mim. “O que vai acontecer com você daqui para frente?”

“Não sei”, respondo. “Esse pode ser o meu fim.”

“Ah, mas é claro.” Ele vira-se para trás e caminha lentamente, observando o cenário ao nosso redor. “Acho que entendo o que está acontecendo aqui”, ele finalmente continua, se voltando para mim. “Você está tendo que lidar com a sua própria morte, não é? Se a humanidade o criou para nos guiar por nossas mortes, o fim dela acarretaria também no seu fim.” Sua expressão é a de alguém absorto em pensamentos, sem realmente se importar com o que está à sua volta.

“Sim. O penúltimo humano, Leveus, me fez perceber que eu devo desaparecer junto com você, e desde então meus pensamentos escorregam constantemente em direção a essa ideia. Nunca estive preparado para isso e nem sei o que pensar. Tentei um pouco me concentrar na sua situação, mas a verdade é que eu não consigo me importar.”

Eu estou... falando sobre mim? Em todo o meu tempo de existência, eu absolutamente jamais conversei dessa forma. Eu sempre desviei desse tipo de assunto, como agora há pouco com Ashelmon e antes com Leveus, mas não consigo mais. Parece que nada mais importa, então não há motivo para me preocupar com o papel que sempre cumpri de ser um cuidador. Tudo que se dane.

“É um pouco chocante, mas acho que compreensível”, ele responde, dando um sorriso nos cantos da boca e depois desviando o olhar. “Eu mesmo passei por algo assim quando a humanidade começou a ser dizimada.” Ele mantém os olhos fixos, como se enxergando algo distante. “Eu trabalhava como psicólogo, era totalmente apaixonado pela mente da minha espécie e via nessa profissão um meio de viver o altruísmo. Mas... conforme mais e mais pessoas morriam, eu vi que a minha hora chegaria logo. Todos os meus clientes lidavam com esse dilema da morte iminente e eu não conseguia mais me preocupar com nenhum deles.”

Um psicólogo? Então ele realmente passou por algo parecido comigo, já que o meu trabalho também é, ou era, terapêutico, e nesse momento não consigo mais executá-lo. “E como você foi daquele ponto para o seu estado atual?” Curiosamente, estou agindo como alguém tentando aprender com outro mais experiente.

Ashelmon volta a atenção para mim, mais relaxado. “Eu... simplesmente aceitei”, diz, dando de ombros.

Nada que eu já não tenha visto antes. Não só conheci muitos que haviam aceitado a morte, eu mesmo ajudei vários outros a aceitarem, já que é a minha função. Mesmo conhecendo bilhões de casos diferentes e sabendo todos os métodos para esse processo, simplesmente não sei que utilidade isso tem para pensar a respeito de mim mesmo. Afinal, eu quase nunca fui objeto dos meus pensamentos. Mas por quê?

“Passei por longos momentos de desespero”, o homem continua, “achando que eu poderia ser morto a qualquer momento, não importando onde eu estivesse”. Ele olha para baixo, provavelmente revivendo memórias. “Eu não conseguia mais me importar com os outros. Tentei fazer mais alguns atendimentos, todos os clientes trazendo o mesmo pânico, mas eventualmente desisti.” Após uma pausa, ele volta a me fitar, sério. “De alguém que amava tanto ajudar os outros, me tornei alguém que queria mais que os outros se explodissem. Foi isso que a morte iminente fez comigo.”

É exatamente o que está acontecendo comigo agora, não é? Minha função de ajudar as pessoas simplesmente se desintegrou e agora só consigo pensar em mim mesmo. “E como foi aceitar isso? O que você fez?” Estou legitimamente curioso.

Ashelmon respira fundo antes de responder: “Bem, eu tive que deixar o altruísmo de lado e pensar no que é que eu fazia por mim mesmo. Eu concluí que eu tinha um interesse muito grande pelos seres humanos em geral e era ele que eu buscava satisfazer com o meu trabalho, mais que o objetivo de ajudar”. Ele abre um pouco os braços. “E, assim, eu decidi que queria aproveitar o tempo que me restava para ver a humanidade até o fim, para assistir a como ela ainda tentaria sobreviver, o que faria em seus últimos momentos. Por isso decidi embarcar nesse projeto maluco.” Ele gesticula, sinalizando a espaçonave em que estamos.

Um grande interesse pela humanidade? “Deve ser por isso que você me vê dessa maneira: como uma transição constante entre pessoas diferentes. A humanidade é o que lhe conforta e o que você mais queria ver em seus últimos momentos.”

O homem sorri. “Então é assim que você funciona? Faz muito sentido. Mas que ser espetacular!”

“Você realmente acha que eu sou tão incrível assim? Por quê?”

“Mas é claro!” Ele bate uma palma na outra. “Você vem há milênios fazendo um trabalho extremamente difícil e complexo, cheio de recursos inacreditáveis para tal. É muito complicado lidar com pacientes à beira da morte, imagino que seja mil vezes pior com aqueles que acabaram de morrer. E, mesmo assim, você vem executando essa árdua tarefa.”

Não consigo me satisfazer com essa maneira de pensar, mas por que, exatamente? De repente, estou respondendo: “Porém, tenho eu qualquer mérito nisso? Os humanos me criaram dessa forma, eu não escolhi absolutamente nada. Toda a minha longa existência foi dedicada a cumprir o meu trabalho, assim como uma máquina programada para tal”.

Então é isso que estou sentindo? Seria essa questão a raiz do problema? Entendo. Aparentemente, não me sinto criador da minha própria história, mas apenas como um robô dos humanos. É por isso que meu pensamento fica se voltando para mim mesmo o tempo todo? É essa a origem da raiva que tinha agora há pouco?

Ashelmon coça o queixo, franzindo a testa. “Não tinha pensado por esse lado. Sendo a sua existência tão diferente, não consigo perceber facilmente as coisas como fazia com meus clientes. Você acha que não fez nada por escolha própria, é isso? Como você se sente quanto a isso?”

“É difícil identificar meus sentimentos. Nesse momento, você ainda consegue sentir o seu corpo nesse bolsão temporal, por mais que ele seja uma simulação feita em cima do real. E o seu corpo lhe passa informações sobre o que você está sentindo, através delas você pode identificar se está ansioso, irritado, com medo. Você existe tanto no domínio real quanto no imaginário, por isso é um corpo-consciência, enquanto eu existo apenas como consciência. Para compreender minhas emoções, tenho que voltar-me apenas para a minha própria consciência e tentar perceber seus comportamentos, como focar demais em algum pensamento ou falar de alguma certa maneira.”

“Domínio imaginário?” Ele franze os lábios, fazendo uma pausa para pensar. “Ah, sim, claro. Conheço essa teoria. Então ela está correta e vejo como explica muito bem o que você é: uma pura consciência.” Ele fala essas últimas palavras devagar, como se tentando absorvê-las. “Nunca havia pensado em como uma existência assim poderia ter dificuldade em desenvolver autoconhecimento através das emoções, é algo bem fascinante. Porém, que tipo de resultado isso teve para você?”

“Acho que é o que você disse: a dificuldade em desenvolver autoconhecimento. Eu aprendi algumas formas de refletir sobre minhas emoções, mas acabaram sendo situações raras. Até pouco tempo atrás, eu dificilmente tinha motivo para me preocupar comigo mesmo, eu estava mais concentrado nas pessoas com quem eu conversava, tentando ajudá-las. Mas e agora? Que bem isso me fez? Estou prestes a morrer e tudo pode ter sido para nada.”

Eu estou sentindo alguma coisa agora, não é? O que é essa emoção? Minha consciência parece estar tendo pensamentos bem negativos. Seria isso a tristeza? Se for, isso chega a ser cômico: estou vendo em mim mesmo o que eu observei em bilhões de humanos ao enfrentarem suas próprias mortes. Talvez eu seja mais parecido com eles do que eu imaginava.

“Entendo”, ele diz, acenando lentamente com a cabeça. “Entendo até bem demais como é sentir que levou a vida toda apenas ajudando os outros para nada. Porém, sua situação tem peculiaridades extraordinárias com as quais eu nunca lidei.” Ashelmon começa a andar ao meu redor, observando minha forma em constante metamorfose. “Por exemplo, imagino que você não consiga sentir exaustão?”

“Não. Os humanos se sentem, ou se sentiam, exaustos por conta do seu cérebro no domínio real. A consciência do domínio imaginário não tem essa propriedade: mesmo conversando incessantemente por um tempo incalculável, eu nunca me senti esgotado.”

“Faz todo o sentido”, diz, parando de caminhar. “Bem, a exaustão foi o primeiro fator que me fez me perguntar o que eu estava fazendo. Se eu poderia morrer a qualquer momento, de que adiantava tanto sacrifício a vida toda?” Ele dá de ombros, com um sorriso nos cantos da boca. “Comecei a refletir sobre o que me levou a esse ponto, e fui aos poucos descobrindo melhor.”

“Não sei se tenho muito no que me basear. Não me senti exausto, triste ou feliz com a vida que levei, simplesmente fiz o meu trabalho: conversei com cada pessoa para ajudar com o fim do seu tempo por aqui e a passagem para seja lá onde for. Mas e agora? Será que eu desperdicei todos os meus milênios de existência nessa tarefa que me foi imposta? Eu não deveria ter a liberdade, assim como os humanos, para escolher o rumo que iria tomar? Você diz que me acha incrível, mas talvez seja o contrário e, por viver como um robô, eu seja um ser inferior, apenas um produto da consciência humana.”

São palavras estranhas. Apesar de não sentir nada, reconheço que elas soam como de alguém muito deprimido, com desprezo pela própria existência. É a esse ponto que cheguei?

Colocando a mão no queixo, o homem abaixa os olhos, pensativo e com aparente pesar. “É complicado.” Fazendo uma pausa, ele então continua: “Entendo que você agora ficou extremamente triste ao ser confrontado com a própria morte e se perguntar para que viveu, sem a chance de poder fazer uma escolha diferente para o futuro”.

“É uma boa descrição do problema, acredito eu.”

Ele coça a testa, voltando a atenção para mim. “Precisamos de um ponto de partida. Sabe me dizer como você se sentiu a cada ajuda que prestou? E a cada vez que ela não deu certo?”

É tão difícil falar de emoções. Talvez eu tenha sentido algo, mas não sei muito bem, refletir sempre foi algo raro para mim. Por mais que eu tenha aprendido aos poucos como identificar meus sentimentos, essa ainda é uma tarefa árdua e na qual eu nunca investi muito.

O que eu sinto quanto a isto? Estou me concentrando no que deixei de fazer e que poderia ser útil agora: esse é o tal do arrependimento, não é? “Parece que não há como recuperar todo o tempo perdido, que agora já é tarde demais e que só fui pensar na vida quando ela acabou”, digo. “Não é uma resposta direta à sua pergunta, mas é o que ela levou a passar pela minha consciência. Reconheço que arrependimento é o que estou sentindo agora, mas era raro eu refletir sobre minhas emoções em outros momentos. Eu deveria ter feito isso muito mais. Afinal, como eu experimentava as falhas e sucessos no meu trabalho? Não tenho certeza, apenas sei que eu fazia tudo que era possível para obter sucesso. Porém, quando falhava, aceitava que não havia mais o que fazer.”

Ashelmon me ouve atentamente, concordando com a cabeça em alguns momentos. “Entendo”, ele finalmente diz, colocando uma mão no queixo. Ele então se senta no chão e fecha os olhos, reflexivo.

Afinal, o que está acontecendo aqui? Estou passando por uma sessão de terapia? Eu, que ajudei bilhões de humanos, agora estou sendo ajudado por um, numa inversão total de papéis.

Porém, o que isso significa para mim? O que eu sinto quanto a isso? Sei que estou surpreso com tudo que está acontecendo: minha angústia, minhas reflexões, eu falando sobre mim mesmo. Mas e o fato de eu estar sendo aparentemente ajudado por um humano? Será que devo me sentir mal por isso, talvez curioso ou mesmo alegre? Considerando o rumo atual da conversa, eu não estou mais irritado como estava momentos atrás.

Estou, no mínimo, empenhado em participar dessa suposta terapia. Avalio que tenho respondido honestamente e parado com mecanismos de defesa, o que significa que o diálogo me interessa. É possível que eu esteja me envolvendo com a mesma intensidade que tinha durante meu trabalho, senão maior. Estaria eu ficando satisfeito em conversar sobre minhas questões pessoais? E isso pode significar alguma coisa sobre o que fiz durante minha vida?

“Já sei!”, o homem quebra o silêncio, abrindo bem os olhos e a boca.

“O quê?” Devo estar interessado.

“Você era obrigado a cuidar das pessoas?”

“Como assim obrigado?”

Ele se levanta e gesticula com as mãos. “Você enfatiza tanto que estava apenas cumprindo o trabalho que os humanos determinaram, mas me parece claro que você tem liberdade o bastante para escolher o que fazer. O que aconteceria se você simplesmente parasse de se importar e começasse a fazer outras coisas, como zombar dos humanos à beira da morte?”

“Imagino que eu...” Hesito, sem ter certeza do que responder. Devo ter pensado nisso em algum momento, mas qual era a conclusão? “Talvez iria desaparecer? Eu fui criado para cumprir esse papel e, se não o seguir, imagino que posso ser destruído da mesma forma.”

“Então você estava agindo por autopreservação? Você queria continuar vivendo? Para quê?” Ele ergue uma sobrancelha.

Ouvir esta fala é meio... aversivo, eu acho. Seria isso repulsa, medo ou o quê? “Estou vendo exatamente onde você quer chegar, eu mesmo já fiz isso diversas vezes. É o que chamam de encurralar contra a parede, não é?”

Sua expressão séria se desfaz em um riso. “Há há há! Sim, é bem por aí.”

“Pois bem, será que pautei todo o tempo de minha existência em um medo de desaparecer? Acredito que não. Eu acho que tinha pronta a resposta para o que aconteceria se eu parasse de ajudar as pessoas, mas não me lembro de ela constantemente invadir minha consciência. Devia ser algo sem muita importância durante esse tempo, tanto que somente agora eu estou enfrentando o medo da morte pela primeira, e provavelmente última, vez.”

O que isso poderia significar? Ficamos em silêncio enquanto eu raciocino rapidamente, dezenas de ideias passando por mim. Após um tempo, digo: “É até possível que eu nem seria destruído nessa situação hipotética. É verdade que os arquétipos desnecessários são descartados, mas a minha tarefa é especial e torna isso difícil. Como os humanos saberiam que eu estou sendo inútil se eu atendo apenas aqueles que estão morrendo? Eu não participo da vida deles de forma alguma, apenas do seu fim”.

Ashelmon me ouve atentamente, com a mão no queixo e concordando com a cabeça. “Essa linha de raciocínio faz bastante sentido. Acho que não temos como ter certeza de nada, mas me parece compreensível que você não viveria com esse medo de ser desintegrado.” Seu rosto fica mais descontraído. “Mas, afinal, como exatamente funcionam esses arquétipos no domínio imaginário? Já vi alguma teoria antiga que usava esse nome, mas não estou compreendendo totalmente.”

“Os humanos existem em sua forma física no domínio real e sua forma consciente no domínio imaginário, sem nunca poder habitar somente um deles. No imaginário, que não possui dimensões espaciais, as consciências não são objetos definidos como o que há aqui no real, elas são puras e constantes relações, tanto com os objetos do domínio real através dos sentidos de seus corpos, quanto com as outras do domínio imaginário, mesmo que seus respectivos corpos materiais estejam distantes. As repetições de determinadas relações dão origem a outras consciências, estas que não possuem um corpo correlato no domínio real.

“Sem essa conexão a este domínio, o que passa a sustentar sua existência são os próprios humanos e a função que eles lhes dão, mesmo que não estejam perfeitamente conscientes de fazerem isso. Esses são os arquétipos. A maioria deles participam das relações entre os humanos enquanto esses vivem, e podem chegar a desaparecer ao longo da história e dar lugar a outros, conforme suas tarefas se tornam obsoletas. Alguns exemplos desses seres são Deus, o Feminino, o Masculino, o Sábio, a Mãe, a Morte, entre outros.”

Ele demonstra bastante curiosidade, com expressão de alguém concentrado. “Entendo. Nesse caso, como você não se relaciona com os humanos em vida, não há como você ser julgado como obsoleto ou não, e sua existência se manteve para sempre”, diz, e esboça um sorriso, “é alguém que pode fazer o que quiser sem consequências, não é? Há há! Só é levado de um lado para outro pelo trabalho que lhe atribuíram.”

“Possivelmente. Porém... seguindo essa lógica, vários outros questionamentos se levantam. Afinal, por que eu realizava o meu trabalho diligentemente? Se não fosse o medo de morrer, poderia ser algo muito pior: a mais pura inautenticidade.” Paro de falar por um tempo porque minha consciência se esvazia e tenho que forçá-la a voltar para o raciocínio. “Teria eu tomado para mim esse papel de cuidador com todas as minhas forças e o desempenhado apenas porque era o que queriam de mim? Pensar nisso deixa meu pensamento estranho. Eu acho que isso é... tristeza, talvez, ou então medo. Ela está tentando fugir desses pensamentos a todo custo, parece um retorno ao meu estado no início dessa conversa. Acho que era exatamente isso que estava me deixando tão triste: o medo de ter sido inautêntico, de ter optado por agir como os humanos queriam, sem ter me dado a liberdade de ser diferente.”

Estou identificando tão intensamente essa emoção que eu consigo imaginar vividamente como seria ter um corpo humano agora: os músculos do meu rosto se contraem, a visão fica turva, as lágrimas escorrem pelo meu rosto, deixando uma sensação estranha na pele desde os olhos até o queixo.

Mas nada disso é real: eu sou uma pura consciência. Não tenho, não tive e nunca terei um corpo. A forma metamórfica que Ashelmon enxerga agora é apenas uma projeção da sua mente.

“Eu te entendo.” Com um olhar de compaixão, ele estende a sua mão para encostar em mim, numa tentativa de prover conforto, porém, ela não encontra nada material. Ele fica confuso por um momento, até entender o que está acontecendo. “Minha situação nunca foi tão excêntrica e extrema quanto a sua, mas também me questionei muito se aquele meu trabalho era autêntico. Bem, eu encontrei uma resposta otimista, então quem saiba haja algo assim para você também.”

“Será? É tarde demais para escolher algo diferente. Essa é a vida que vivi, e agora só resta aceitá-la.”

Recolhendo a mão, o homem esfrega o rosto com ela. “Sim, mas será que ela foi uma vida ruim? Sabe me dizer se agora você sente raiva dos humanos por terem decidido a sua vida por você?”

Raiva? Sei que senti a fúria contra esse sujeito momentos atrás porque eu não queria saber de seus problemas, mas dos meus. No entanto, sinto o mesmo de todos os demais nesse exato momento? Estaria o ódio escondido por trás da tristeza? É uma ótima pergunta.

“Acredito que sei onde quer chegar com isso”, digo. “Se eu vivenciar a raiva como a de pouco tempo atrás, significa que eu desprezo a vida que fizeram me levar, não é mesmo?”

“Correto”, ele afirma com um sorriso e acenando com a cabeça.

Esse assunto me traz uma lembrança recente: após a morte de Leveus, quando voltei para o domínio imaginário. “Me parece que eu não culpei os humanos em momento algum. Possivelmente, eu poderia sentir ódio de mim mesmo por ter aceitado o papel e vivido de maneira inautêntica. Mas... não acho que esteja acontecendo qualquer uma destas hipóteses. Quando eu vi aquele vazio no domínio imaginário, aquele lugar que antes era habitado por bilhões de humanos... eu poderia ter me sentido livre ou satisfeito pelo fim deles, ou então triste pelo meu fim. Mas o que eu senti foi uma nostalgia, uma vontade de que as coisas voltassem a ser como eram. Foi um breve momento antes de começar a ficar cada vez mais triste ao pensar na minha morte.”

O sujeito ergue as sobrancelhas e arregala os olhos. “Isso é tudo muito interessante. Aparentemente, estamos conseguindo organizar bem as ideias, que começaram como uma bagunça causada pela tristeza. O que você acha que foi o ponto mais importante nessa transição?”

“Provavelmente foi perceber que eu tinha mais liberdade de escolha do que eu acreditava. Quem sabe eu gostava do que fazia, porém, era muito difícil identificar devido à minha falta de um corpo e à mínima reflexão que realizava.”

“Há há há!” Ashelmon demonstra muita alegria com seu riso. “Somos realmente muitos parecidos, Morte, por mais que seu caso seja bem mais extremo em todos os sentidos. Será que compartilhamos do mesmo amor pela humanidade?”

“Possivelmente.” Fico em silêncio por um tempo enquanto dezenas de memórias passam pela minha consciência: tantas pessoas diferentes, tantas histórias, tantos contextos em constantes mudanças. Começo a falar sem realmente ver o homem à minha frente, apenas diversas cenas correndo rapidamente: “Estou aqui relembrando tantas coisas... Eu estive aqui desde quando os humanos criaram a linguagem. Pude acompanhar eles vivendo como animais, apenas mais organizados e inteligentes. Assisti a eles criando formas novas de viver, as culturas, a escrita, a arte. Eu pude conversar de perto com cada figura que mudou o rumo da história da espécie para sempre, como Sócrates, Siddhartha Gautama, Alexandre Magno, Jesus Cristo, Galileu Galilei, Albert Einstein e tantos outros. Eu estava tão absorvido nisso tudo que deixei a mim mesmo de lado, quase nunca refletindo. Só a morte iminente pôde me fazer me voltar para dentro. E, curiosamente, eu presenciei esse mesmo processo ocorrer com milhões de humanos, mas, mesmo assim, não consegui enxergar o óbvio acontecendo comigo.”.

“Chego a invejá-lo”, o homem comenta, coçando o queixo. “Acredito que era o sonho de muitos acompanhar toda essa história.”

Teria a minha vida sido tão boa que muitos a cobiçariam? Tem coerência, se eu considerar as pessoas com projetos como os de Ashelmon. E se eu for semelhante a ele, eu não apenas recebi todas as ferramentas necessárias para seguir meu projeto, como o fiz com muita diligência. Se nada disso me interessasse, eu poderia simplesmente ter abandonado tudo e tomado outras atitudes cada vez que era invocado para conversar.

“Tudo começa a fazer sentido agora”, digo. “Aquela sensação de nostalgia não era apenas uma negação da morte, mas um desejo de continuidade por um projeto que vinha sendo realizado. É... muito interessante mudar minha percepção dessa forma a respeito de tudo. Eu assisti a tantas pessoas passando pelo mesmo, e agora me dou conta de que devia ser algo muito prazeroso, mas que, infelizmente, só pude me dar conta agora.”

“Sei exatamente como é isso”, Ashelmon diz, dando de ombros. “No fim das contas, acho que fiz tudo que eu podia da minha vida. Mesmo de frente para o fim iminente, decidi estar aqui hoje, presenciando os últimos momentos de tudo.” Ele se vira ao redor, observando a espaçonave. “Você pode fazer os corpos aparecerem novamente?”

“Tem certeza de que é essa a última visão que quer ter da humanidade?”

Com um sorriso, ele diz: “Bem, eu queria ver ela em seus últimos momentos, não é? Obviamente, a visão do fim seria essa”.

“Como quiser.” Em um instante, as cápsulas de vidro estão preenchidas por cadáveres mergulhados em sangue, este que também se esparrama ao redor delas. Todos têm um grande corte bem visível em alguma parte do corpo, como o peito ou a cabeça.

O corpo de Ashelmon continua onde estava quando cheguei, com a lâmina de matéria estranha fincada em seu rosto, a qual desponta da entidade negra ao seu lado.

O homem caminha pelo corredor, observando atentamente cada pessoa por alguns segundos, até finalmente chegar em si próprio. Ele analisa o ente assassino e o seu próprio cadáver. Durante todo esse tempo, seu rosto não demonstra tristeza, medo ou desespero, mas uma espécie de reflexão, a qual demonstra uma certa nostalgia. Conheço bem esse sentimento.

“Nós, humanos, surgimos do nada e acabamos chegando muito longe”, ele diz, sem tirar os olhos de si mesmo. “Infelizmente, acabamos por encontrar um inimigo invencível. Se essas coisas forem obras do próprio universo, acho que era inevitável que acabássemos assim.” Ashelmon finalmente volta a atenção para mim, com um sorriso nos cantos da boca. “Eu pude atingir meu objetivo, dentro das possibilidades que esse universo delimitou para mim. Talvez seria legal poder viver mais um bom tempo, seguindo com a mesma vida de sempre, mas eu sabia que essa opção tinha acabado. Ressignificando tudo e procurando novas saídas, cheguei até aqui.” Ele abre os braços e observa os arredores. “Observei a humanidade em seus últimos momentos, a acompanhei até onde era possível. Eu fiz tudo que podia”, ele completa, então me lançando um olhar.

“Entendo. Acredito ser algo assim que estou sentindo agora também.”

“Então nos despedimos como iguais.” Ele estende a mão para um cumprimento e enxerga minha mão retribuindo o gesto.

“Não sei se haverá algo depois daqui, Ashelmon, mas eu lhe sou eternamente grato. Mesmo se esse for o fim de tudo, ele é o melhor que eu poderia querer para mim. Levei uma longa e incrível vida, a qual muitos queriam ter a oportunidade de viver, e levo meu projeto até suas últimas consequências nesse momento.”

O homem sorri, aparentemente satisfeito com nossa conversa.

E, então, tudo desaparece.