Monstros do Inconsciente

O mundo deixou de ser do jeito que sempre foi. Algo aconteceu. O caos, a morte, a destruição e a loucura passaram a espreitar cada rua e casa. Ninguém esta a salvo. O que sempre esteve entre nós finalmente emergiu.

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Elisa acabou de rezar e sente-se cansada, tudo o que gostaria agora era deitar-se em uma cama macia e dormir, mas isso é uma coisa quase impossível agora. A qualquer momento algo pode surgir com uma intenção assassina e ela tem que estar alerta. Ela não pode dormir.

Seus olhos pousam sobre a criança pequena que dorme ao seu lado. Ela só tem cinco anos. Ter um filho para cuidar e proteger no inferno que o mundo se transformou era tudo o que ela não precisava. A criança tem os cabelos encaracolados como os do pai e por um breve momento essa constatação a faz esboçar um tênue sorriso.

Um leve barulho e ela pega a velha espingarda em seu colo. O facão nunca sai de sua cintura mesmo. Sua respiração fica suspensa. Ela não sabe o que pode ser. Se for algo maligno talvez não haja uma defesa possível. Apenas quatro cartuchos ela dispõem, dois para se defender e dois para ela e seu filho. Sim, eles não serão pegos vivos. Há muito tempo que ela decidiu que a morte é a melhor saída.

O alivio chega como se fosse pequenas ondas molhando seus pés quando vê o rato andando e derrubando alguma coisa no sótão.

A comida e a agua não vai durar muito tempo. Pensar que em algum momento ela e seu filho terão que sair de seu esconderijo improvisado enche seu coração de terror e desespero.

As horas passam e ela termina adormecendo.

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No limiar do século XXII uma equipe de prospecção lunar encontrou um artefato escondido em uma grande cratera localizada em Mare Imbrium. O tempo que aquele objeto estava enterrado na Lua talvez remontasse a um período anterior ao surgimento da espécie humana.

Essa descoberta causou um alvoroço na comunidade cientifica e era a constatação definitiva de que o ser humano não estava sozinho no universo. Em algum lugar entre as estrelas houve ou havia uma espécie inteligente que havia sido capaz de cruzar a imensidão interestelar e enterrar um objeto em nosso satélite.

O motivo de a estranha máquina ter sido enterrada gerava discussões apaixonadas. Por que uma civilização atravessaria o oceano entre as estrelas para enterrar aquele dispositivo?

Vários anos transcorreram até a ciência humana descobrir qual era a finalidade da estranha máquina. O dispositivo recebeu o nome de Montador Universal e consistia em um artefato capaz de construir átomo a átomo qualquer estrutura.

A máquina seria capaz de, em um passe de mágica, materializar qualquer desejo. Do dia para a noite coisas como pobreza e doença poderiam deixar de existir. A violência e muitas mazelas sociais seriam coisas do passado. Muitos vislumbravam uma era de ouro para a humanidade.

Um mundo em que todos poderiam ter o poder de mudar qualquer coisa de acordo com a sua vontade correria o risco de ser um mundo caótico. Para evitar tal coisa tornou-se necessário a criação de rígidos protocolos técnico-jurídicos que limitassem tal poder. Sendo assim como medida de proteção estabeleceu-se que cada pessoa só poderia materializar três desejos por mês e nenhum deles poderia causar qualquer tipo de mal ou dano físicos a pessoas, propriedades ou instituições.

Um nano dispositivo, com as mesmas especificações do dispositivo extraterrestre, seria implantado no córtex cerebral entre o lobos frontal e parietal. A formulação de um simples desejo geraria uma força de natureza desconhecida capaz de causar um rearranjo na estrutura atômica de qualquer coisa. Em segundos o prazer de saborear um bom Vinho do Porto, mudar a mobília de uma casa ou mesmo remover uma cicatriz estaria ao alcance da vontade de qualquer pessoa.

A criação dos implantes cerebrais representaria a maior revolução cientifica e social da historia humana e suas implicações teriam proporções inimagináveis. A humanidade estaria preparada para isso?

Nem todas as pessoas aderiram ao implante. Muitas não aceitaram por medo e outras por motivações religiosas ou morais. Elisa era uma delas.

O primeiro ano após o Programa Montador Universal ser implantado representou um ganho social impensável para a humanidade. Em pouco tempo as nações experimentaram uma equidade jamais vista em toda a evolução humana. Um estado de bem estar social mundial passou a existir em um tempo recorde. Muitos passaram a achar que finalmente o paraíso havia sido descoberto.

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Nunca se soube em que parte do planeta começou o fim de todas as coisas. Em algum momento temporal impreciso a violência e a loucura tomaram conta do mundo. Pessoas simplesmente passaram a apresentar comportamentos estranhos, inusitados, chocantes ou gritantes. Muitos matavam e morriam das formas mais grotescas.

Criaturas fantásticas surgiam do nada causando morte e destruição. A pequena cidade de Amarante, em Portugal, viu surgir um ser faiscante que a tudo queimava, a populosa Buenos Aires defrontou-se com hordas de criaturas pequenas e vermelhas que matavam qualquer coisa. Em muitos locais as pessoas simplesmente ficavam andando sem rumo verbalizando coisas ininteligíveis ou agindo como se estivessem em um surto psicótico coletivo.

Em todos os cantos do mundo surgiam monstros com os formatos mais estranhos e impensáveis. Suicídios inusitados, incêndios, homicídios, destruições em larga escala completavam o cenário.

Alguma coisa havia dado errado e o mundo agora caminhava para algo que ninguém sabia dizer o que era.

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Elisa não conseguia entender porque seu vizinho passou há ficar o dia todo nu e se masturbando em plena rua. Algo incompreensível para todos que conheciam aquele homem de meia idade conversador e risonho e que nunca havia fornecido nenhum indício de alguma doença mental. As coisas pioraram quando seu cunhado ligou desesperado gritando que sua irmã havia morto o cachorro da família e estava comendo o pobre animal

O marido de Elisa olhava um programa de televisão quando em um dado momento falou algo incompreensível, em seguida dirigiu-se a cozinha pegou uma faca e simplesmente enterrou-a em seu próprio pescoço.

Sempre que se lembrava dessas coisas seu corpo tremia, mas também agradecia aos céus o fato de nunca ter aceitado colocar aquele maldito implante. Tanta coisa havia ficado para trás...

Não houve tempo para muita coisa. Em meio aos seus gritos de desespero, correria dos vizinhos e as sirenes da policia pouca coisa Elisa lembrava-se. Agora ela estava escondida no velho sótão de sua casa aguardando que alguma coisa inominável surgisse.

Não houve tempo para muita coisa. Em meio aos seus gritos de desespero, correria dos vizinhos e as sirenes da policia pouca coisa Elisa lembrava-se. Agora ela estava escondida no velho sótão de sua casa aguardando que alguma coisa inominável surgisse.

Várias vezes Elisa desejou que tivesse aceitado que colocassem aquela coisa na sua cabeça. Pelo menos agora era teria um refugio na insanidade e não seria obrigada a ver o inferno em que o mundo havia se transformado.

Para Elisa aquela máquina, que muitos achavam ser um passaporte para o Jardim do Éden, na verdade era uma força demoníaca que materializava os desejos mais recônditos das pessoas, como se tudo o que estivesse encoberto em algum lugar obscuro da alma humana finalmente pudesse surgir em toda a sua plenitude. Ela não sabia por que pensava isso, mas agora tudo o que ela queria era sobreviver.

Seu velho relógio de pulso lhe diz que é tarde da noite. Seu filho dorme sem sequer saber que as provisões devem acabar em dois ou três dias. Mais uma vez Elisa clama aos céus com as orações que sua mãe lhe ensinou.

Hoje Elisa sente-se um pouco mais forte. Por enquanto é hora de vigiar, mas chegará o dia em que eles sairão daquele sótão escuro. Algo lhe diz que aquele mal um dia irá desaparecer ou voltar para o lugar sombrio de onde veio.

*Inconsciente: em Psicanálise seria a parte da estrutura psíquica formada por impulsos, desejos e pulsões primitivas que escapam à consciência. O inconsciente não seria regido por padrões lógicos, valores morais ou éticos.

**Este conto surgiu como uma pequena homenagem ao filme Planeta Proibido (Forbidden Planet), de 1956.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 26/05/2020
Código do texto: T6959028
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