ODESSA E KALISTA


   Odessa olhou para baixo com a testa escorada no vidro reforçado da janela do seu quarto. Apesar do caos de entulhos e escombros em que se transformara a sua cidade, ela não queria ir embora. Fizera amizade com Kalista, algo improvável nos tempos de guerra entre máquinas e humanos. Estava disposta a enfrentar os pais para trazê-la a bordo, ao invés de deixá-la para trás naquele mundo destruído todo feito de montanhas de ferro calcinado e gigantescas espirais de fumaça que cobriam o céu.


   Kalista era uma menina boa. Odessa tinha certeza de ela não estar com o vírus mortal. Sabia que a pobre garota jamais lhe faria mal. O embate arrastado por dezenas de anos entre as máquinas e humanos causara a perda da fé nas pessoas, mas Odessa pouco queria saber disso. Não lhe interessava saber quem havia desenvolvido o vírus, ou quem havia deliberadamente fomentado a revolta contra a sua gente. Não lhe interessava saber das circunstâncias que quase haviam destruído a raça humana.


   O golpe só não havia sido fatal por causa das famílias ricas que estavam fugindo em suas grandes naves espaciais para as diversas colônias terrestres. Os milionários se refugiariam nos satélites naturais de Júpter, ou até mesmo em Marte. Mas os pobres estavam condenados. Kalista era uma menina pobre, portanto condenada a ficar para trás.


  Sabia que seus pais não permitiram Kalista embarcar na poderosa espaçonave da família. Não porque ela fosse pobre, mas porque poderia trazer o vírus junto com ela. Odessa havia conversado muito dizendo-lhe que tinha um plano de colocá-la dentro da nave sem que ninguém soubesse. No entanto, para a sua tristeza, a companheira de aventuras se recusara a abandonar os seus pais.


  Eles, os revoltosos, estavam escondidos nas galerias subterrâneas tentando se livrar da radioatividade. Mesmo que o ar contaminado pudesse lhe causar problema, a garota fizera-lhe promessa de lhe trazer uma modesta lembrança, um objeto ou coisa qualquer de sua propriedade, algo para lembrar da amizade delas naquele mundo conturbado.


  Assim que o seu quarto começou a estremecer perceptivelmente com o giro dos motores e a paisagem de entulhos lá embaixo afastou-se mais, ela perdeu a esperança de receber o tal presente. Toda a estrutura da enorme espaçonave da sua família preparava-se para enfrentar a resistência da gravidade terrestre.

 

   Estava muito triste, pois sentiria falta da única pessoa a consquistá-la com uma amizade genuína e verdadeira. Nem sequer poderia receber dela uma última recordação, prova de que a amizade duradoura entre pessoas tão diferentes poderia aflorar naquele caos.


   Um dos guardiões do templo abriu parcialmente a porta do quarto.


   — Jovem Odessa, a Horizon 5 não poderá partir da Terra enquanto a senhorita não se submeter ao teste de detecção do vírus.


   — Ok. Já estou indo.


   Ela já ia se afastar da janela quando, de repente, viu lá embaixo um movimento furtivo de uma garotinha vestida de vermelho, avançando entre o borralho cinza e confuso dos montes aleatórios de escombros. A amiga corria desesperada, pulando os entulhos, galgando os aclives dos destroços, olhando para cima em busca da presença dela em uma das inúmeras janelas da enorme espaçonave. Kalista trazia consigo um balão com cara-de-urso que tanto lhe impressionara no seu último encontro.
   

   Esboçou um sorriso, pois fora criada em um ambiente excessivamente pragmático, que não lhe permitia desfrutar de coisas supérfluas. Quando viu o balão nas mãos de Kalista, ficou intrigada e encantada. Agora, no topo do monte de detritos mais elevado, a sua amiguinha soltava o balão ao sabor dos ventos fortes e gritava-lhe emocionada: “É pra você, ele é todo seu! Adeus, minha amiga”.


   Odessa não chegou a retribuir-lhe o gesto. Queria acenar-lhe com uma das mãos, fazendo ver à outra que havia compreendido a mensagem. De súbito, embora já estivesse esperando pelo processo, ela foi violentamente envolvida por tentáculos robóticos projetados das paredes do seu quarto e arrastada para o centro do compartimento. Em seguida, um dos filamentos mecânicos, de extremidade complexa e fina, penetrou-lhe num pequeno orifício, na parte frontal do seu crânio positrônico.


   O supercomputador da espaçonave conectou-se diretamente com o sistema de programação de Odessa a fim de iniciar a varredura completa do seu banco de dados à procura do vírus que estava transformando os indivíduos de sua raça em carcaças moribundas. Os Guardiões do Templo acusavam a criação do vírus pelos insurgentes humanos daquele quadrante terrestre.


  Queria desvencilhar-se dos tentáculos, queria ir à janela para despedir-se de Kalista, mas sabia que não poderia de modo algum interromper o procedimento da varredura anti-vírus. Depois de alguns minutos o processo terminou. Levou algum tempo para fazer as suas conexões internas.


  Assim que os tentáculos se retraíram, ela caiu ao tentar encaminhar-se às janelas do quarto. Tentou se arrastar lentamente enquanto ouvia o rugir dos motores. Ouviu um alerta de detecção humana no solo. Ouviu, segundos depois, as bombas serem lançadas para baixo. Quando chegou à vigia mais próxima, viu apenas uma imensa coluna de fumaça onde antes estivera Kalista a soltar o balão. Então, Odessa encostou a testa novamente no vidro e emitiu palavras silenciosas através de seus lábios metálicos.


   — Adeus, minha amiga...


 

 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 29/08/2020
Reeditado em 25/10/2023
Código do texto: T7049698
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