LEGIONÁRIOS - Parte I

A chuva que caia era fina, intermitente e gelada. Para os três sobreviventes encolhidos dentro da apertada barraca parecia que nunca ia parar de chover naquele maldito planeta. Enquanto dividiam as poucas rações existentes eles pensavam sobre o que fazer pelas próximas horas.

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A pequena nave-escaler surgiu de repente no horizonte. Diminuiu sua velocidade de descida, mas não conseguiu evitar um pouso desastrado no topo de um platô. Um dos seus flancos ficou inteiramente destruído com o impacto. Dentro dela três assustados soldados ainda tentavam entender o que havia acontecido com a Nona Legião.

- Agora que a gente conseguiu pousar em segurança alguém pode me dizer que merda foi que aconteceu? – a voz de Lacínio ainda estava entrecortada pela emoção de ter escapado com vida apenas um minuto antes da explosão total da Juno.

- Não sei dizer o que houve. Eu vi o que todos vocês viram. Um incêndio vindo do nada varreu tudo. Eu mal tive tempo de correr para me salvar – Quintus era o mais velho dos três sobreviventes e guardava no corpo as cicatrizes de muitas batalhas – Mal consigo acreditar que ainda estou vivo.

- Eu acho que foi sabotagem. Alguém instalou algum dispositivo incendiário de alto poder de destruição, uma bomba de tempo, sei lá – Tiberius era o mais jovem e se alguém perguntasse o motivo dele ter entrado para as legiões ele não saberia dizer.

- Você está dizendo que um maldito sabotador causou tudo isso? Um maldito sabotador acabou com a Nona em um piscar de olhos? – os rostos de vários camaradas seus passavam pela mente de Lacínio enquanto falava – Você tem certeza disso?

- Não sei – respondeu secamente Tiberius.

Juno era um dos mais modernos cruzadores da Grande Frota Romana, capaz de levar com rapidez e segurança mais de quatro mil legionários e equipamento completo de combate. Ela representava a projeção do poder de Roma para muito além das fronteiras do Império. Nunca nenhum inimigo de Roma havia conseguido sequer chegar perto de um deles e agora seus pedaços caiam como pequenos meteoros brilhantes inundando a atmosfera do planeta.

Sentindo um forte cheiro de fumaça e gás Quintus desafivelou-se rapidamente de sua poltrona e começou a vasculhar o interior do pequeno e muito avariado escaler.

- Acho que não tem muita coisa aqui – disse Quintus – Ninguém teve tempo pra nada, acho que também não foi enviado nenhum pedido de socorro, mas agora, com certeza, já sabem que fomos destruídos...

Uma rápida consulta ao computador, antes que esse deixasse de funcionar em definitivo, confirmou o que já desconfiavam: lá fora havia uma atmosfera com 79, 084% de nitrogênio e 21, 087% de oxigênio mostrava-se favorável à sobrevivência humana.

Os dados informavam que o planeta em que haviam caído dava uma volta em torno de uma estrela anã em um tempo mais curto do que o da Terra em torno do Sol. Os dias tinham aproximadamente dezesseis horas de duração, sendo a metade desse tempo sem iluminação solar. Em pouco tempo a escuridão da noite chegaria...

Após terem esgotado as possibilidades de comunicação radiofônica com outros possíveis sobreviventes os três soldados romanos passam a discutir o que fazer agora que estavam sozinhos ali naquele planeta.

- É melhor darmos o fora daqui antes que isso exploda – propôs Tiberius.

- Tudo o que temos é só o kit de sobrevivência do escaler: uma pistola térmica, uma barraca inflável, rações para alguns dias, água potável, uma lanterna, respiradores portáteis, um par de rádios. Ou seja, estamos na merda – a raiva de Lacínio estava se transformando em algum tipo de pessimismo – Vamos morrer nesse lugar desgraçado e ninguém nunca vai ficar sabendo que três idiotas escaparam da bola de fogo que um dia teve o nome de Juno.

- Você bem que poderia calar essa boca ou dizer alguma coisa positiva em vez de ficar cacarejando como uma galinha histérica – Quintus falou com desprezo enquanto tentava olhar alguma coisa pela escotilha do escaler.

O soco desferido por Lacínio acertou-lhe em cheio na boca. Quintus deu dois passos para trás já sentindo que seus lábios tinham se partido.

Pressentindo um desfecho pior Tiberius colocou-se imediatamente entre os dois contendores.

- Vou perdoar você por essa infâmia, mas fique sabendo que se a gente não estivesse nessa merda toda você já seria um homem morto – Quintus falou enquanto cuspia uma pequena bola de sangue.

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A paisagem que se descortinava a frente do trio de soldados não era muito diferente da terrestre, mesmo assim eles estavam tensos e assustados. Observaram que as árvores eram bem mais altas que na Terra e que de vez em quando escutavam estranhos barulhos, mas nunca identificavam a origem deles.

Enquanto exploravam o platô onde haviam pousado, pensamentos e lembranças variadas atravessavam-lhes a mente. Tiberius imaginava-se nos braços de alguma mulher, sussurrando palavras de desejo, tudo isso ao sabor de uma boa música. Quintus perguntava-se se não era melhor ter morrido na Juno em vez de estar ali ao lado de dois sujeitos que não lhe inspiravam a menor confiança. Lacínio tentava lembrar quando foi que esteve na casa de sua mãe pela última vez, certamente já fazia muito tempo, sequer sabia se ela ainda era viva.

Enquanto os três legionários sobreviventes perdiam-se em elucubrações variadas uma chuva fina começou a cair.

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Os três sobreviventes estavam receosos de explorar um lugar desconhecido e os barulhos esquisitos que de vez em quando escutavam os deixavam assustados. Decidiram armar a barraca. Não dava para ficar se arriscando em um lugar desconhecido e ainda tendo que andar debaixo de uma chuva estranha.

Já dentro da barraca Quintus retira de dentro de sua mochila um pequeno crucifixo. Com os olhos fechados e agarrando fervorosamente o objeto sagrado ele formula uma oração.

Tiberius e Lacínio em silêncio ficam se entreolhando.

O cristianismo era a religião oficial de Roma a mais de duas décadas, mas ainda parecia algo estranho para a maioria dos legionários. Muitos não se sentiam à vontade para expressar publicamente a fé cristã. Alguns não gostavam da cruz desenhada nos trajes de combate, outros não entendiam direito porque era proibido adorar os antigos deuses. Mas o que todos sabiam é que Roma estava aos poucos impondo a nova religião e era cada vez maior o número de romanos que abraçavam a nova crença.

- Espero que esse seu Deus pregado na cruz ajude a gente a sair daqui – falou Lacínio.

A ironia ferina de Lacínio não passou despercebida por Quintus.

- Foi esse Deus pregado na cruz que me manteve vivo lá em Calixto 5 quando os Bretãos atacaram. Aquilo foi um inferno. Tenho certeza que um frouxo como você iria morrer logo no primeiro minuto de combate. Pode pensar o que quiser, mas só estou aqui inteirinho por causa dele.

Temendo outra confusão Tibérius sutilmente intervém.

- Já tive uma mulher que era cristã. Meus camaradas, que mulher linda ela era. Venília era o seu nome, uma mulher pra gente ter a vida inteira. Uma pena que terminou me trocando por outro, mas pelo menos foi um ano de muita paixão... Ei, eu trouxe meu jogo de cartas de estimação. Sempre o tenho em mãos para alguma emergência. Que tal um joguinho para desatrapalhar as ideias e passar o tempo?

Lacínio e Quintus riram da proposta de Tiberius, mas terminaram aceitando, afinal não havia nada a fazer naquele exato momento e, de repente, um bom e velho carteado ajudaria a organizar o pensamento deles.

A chuva havia passado e o dia seguinte encontrou os três legionários mais descansados e relaxados após a jogatina da noite anterior.

Lacínio foi o primeiro a sair da barraca e tomou um susto com o que viu. Seus olhos se estreitavam tentando entender o que havia acontecido.

- Rápido, deem uma olhada nisso aqui – gritou para os demais.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 04/10/2020
Código do texto: T7079247
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