LEGIONÁRIOS - Parte II

O que antes era uma ampla planície com árvores muito altas agora havia se transformado em uma paisagem que mostrava uma extensa relva amarela. Não se via outra coisa que não aquele cansativo tapete amarelo.

- Que porra é essa já? Alguém sabe me dizer o que é que está acontecendo? – um exasperado Lacínio perguntava quase aos gritos.

- Pelas barbas de Cristo Rei... Juro que não estou entendendo nada. Dormimos no meio de um monte de árvores... O que houve? – Quintus tentava manter-se calmo mesmo sabendo que isso era impossível.

- Para onde foram as árvores? Tem alguma coisa errada aqui... Tem alguma coisa muito errada – era só o que Tiberius conseguia falar.

- Sim, tem algo de muito estranho aqui – Quintus falava isso pensando o quanto ele gostaria de estar com seu equipamento completo de combate. Armados com uma mísera pistola térmica eles não tinham muita chance contra... Seja lá o que fosse que tivesse feito aquilo.

- Vocês repararam que nós ainda não vimos nenhuma espécie de animal, nem um simples inseto? Que lugar é esse onde a gente caiu? – Pergunta Tiberius aos demais.

Os três soldados romanos iniciam uma discussão, muitas vezes áspera, sobre o que fazer. Eles estavam em um planeta muito parecido com a Terra, mas distantes de qualquer socorro. Quem iria se lembrar de três legionários perdidos após um poderoso cruzador romano ter virado poeira estelar? O que adiantava haver um localizador implantado em seus pulsos se o alcance destes era limitado a apenas um pequeno quadrante? Que lugar era aquele onde não se via animal ou inseto de espécie alguma?

Enquanto o dia ia se esvaindo e a noite se aproximava os três soldados perceberam que a chuva fina e gélida começou novamente a cair. Decidiram que montariam guarda a noite toda. O primeiro turno seria de Tiberius.

Enquanto seus companheiros de infortúnio dormiam Tiberius ficava pensando o quanto o barulho da chuva sob a lona da barraca era algo monótono e entediante. Para contrabalançar isso ficou lembrando-se de fatos engraçados de sua vida, como da vez em que quase se afogou em meio metro de água só porque não estava conseguindo se levantar com os mais de trinta quilos de equipamentos nas costas.

Mesmo com receio de ver alguma coisa maligna Tiberius, de vez em quando, abria a barraca e jogava um facho de luz da lanterna lá fora, mas tudo o que ele conseguia ver era somente o mesmo gramado amarelo.

Tiberius sentia-se aliviado quando fechava a barraca e ficava olhando a tênue iluminação propiciada pelos spots no teto do pequeno abrigo.

Lacínio acariciava lentamente a ponta do seu púgio. Aquela adaga sempre foi seu talismã, ele nunca embarcava em uma missão sem ele. Todo soldado romano ganhava um de presente quando terminava o treinamento e era incorporado em alguma legião. A maioria dos soldados terminava esquecendo-o em algum lugar, mas não Lacínio que sempre tinha o seu em mãos. ROMANA LEGIO OMINIA VINCIT estava grafado em caracteres dourados nela. A legião Romana a tudo vence dizia a inscrição em sua adaga, mas ali, perdido naquele lugar estranho, Lacínio não tinha muita certeza se aquela frase fazia algum sentido ainda.

O que será que está lá fora? Quem causou essa loucura toda de árvores que somem? Quintus segurava firme a pistola térmica enquanto formulava essas perguntas. Ele nunca se considerou um homem covarde, mas ali naquele lugar esquisito se sentia perdido sem saber o que estavam enfrentando. Entrou para as legiões por falta de maiores oportunidades, demorou um pouco a se acostumar com a rotina de soldado, mas depois terminou gostando e a legião passou a ser a coisa mais importante da sua vida até o dia em que lhe contaram sobre as façanhas e as ideias luminosas daquele que ele considerou o maior homem da história: o Cristo crucificado, o filho encarnado de Deus. Agora o vazio de sua vida estava preenchido pela coisa mais maravilhosa do universo.

Os turnos de vigilância seguiram-se sem que nada de anormal fosse visto pelos três soldados. O dia amanheceu trazendo com ele uma nova mudança na paisagem.

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Seis pares de olhos contemplavam as belas e bonitas dunas que desenhavam ondulações que lembravam vagamente o mar quebrando em uma praia. Um vento agradável varria o ambiente balançando algumas poucas árvores muito semelhantes aos coqueiros da Terra.

Quintus agachou-se e juntou um punhado de areia.

- Isso é areia mesmo. É igual a areia de qualquer praia que eu já tenha visto.

- Sim, isso é areia, mas alguém sabe me dizer em que maldito lugar a gente está? – sem esperar uma resposta dos seus companheiros Lacínio aproximou-se de um dos coqueiros e disparou um tiro com a pistola térmica.

Um pequeno jato de luz azulada acertou bem no meio do tronco atravessando-o e deixando um buraco onde era possível introduzir o punho de um homem.

O cheiro de madeira queimada impregnou por um breve momento o ar.

- Muito bem, legionário! Parabéns! Agora nós só temos nove tiros para se defender de alguma merda que eu não sei o que é – um enraivecido Quintus falou meio entredentes – Eu fico com essa arma agora. Ninguém mais toca nela.

- Aqui só tem soldado. Não vejo nenhum centurião para dar ordens e...

- Depois vocês decidem quem tem aquilo maior, deem uma olhada aqui – falou Tiberius interrompendo Lacínio.

Não havia mais buraco na árvore.

Por um interminável minuto os três legionários ficam sem saber o que falar. À sua frente estava uma árvore que havia levado um tiro térmico capaz de amassar um colete tático. Ela não tinha marca nenhuma...

Um estranho medo apoderou-se dos três romanos. Um medo que vinha do fato de estar em um lugar completamente diferente de tudo o que já tinham visto, de não entenderem o que estava ocorrendo e de não disporem de nenhum recurso que o Grande Império Romano pudesse ter que servisse para explicar aquilo.

Quintus lamentava muito não ter estudado ciências o suficiente. Como ele queria que estivessem ali aqueles professores que viviam falando de coisas como xenobiologia e mecânica quântica. Ele nunca entendeu nada disso e agora não tinha a menor ideia do que estava acontecendo ali. Mais do que nunca ele teria que triplicar suas orações.

Uma cerveja preta gelada e espumante. Claro que Tiberius sabia que pensar nisso agora era uma completa estupidez. O prazer de uma taverna, as músicas, as risadas junto aos seus camaradas. Lembrar-se de coisas boas e divertidas de sua vida sempre lhe ajudou a resolver os problemas, como se ao fazer isso sua mente relaxasse e achasse as respostas, mas facilmente.

A ponta afiada do púgio tirava lascas da árvore. Em pouco tempo a parte retirada era reposta. Aquilo era incrível, quase uma mágica, mas Lacínio percebeu que se ficasse mais tempo fazendo aquilo logo o encantamento perderia a graça.

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O tempo passava e os três náufragos do Juno começavam a contemplar a sede e a fome como únicas perspectivas. Decidiram explorar com mais afinco a região onde haviam caído na esperança de encontrar água ou algum animal que pudesse saciá-los.

Sentados em baixo de uma frondosa árvore e com uma brisa suave a lhes massagear o corpo os três sobreviventes da Juno passavam o tempo.

- Por que você olha tanto esse púgio? Está esperando que ele lhe diga alguma coisa? – perguntou Quintus

- Eu olho para ele e fico pensando que esse planeta parece estar além do poder de Roma. Nem sei se ele consta dos mapas estelares. Vamos, me digam que lugar é esse que muda toda uma paisagem de um dia para o outro? – Lacínio perguntou sem sequer levantar os olhos do punhal em suas mãos.

- Como é possível transformar uma árvore em uma montanha de um dia para a noite? – insistia Lacínio.

- Será que é um tipo desconhecido de tecnologia que está fazendo tudo isso? De repente esse planeta é habitado por alguma inteligência extraterrestre...

- Não, Quintus - respondeu Tiberius – Roma nunca encontrou nada além de vida unicelular e alguns tipos de mamíferos e repteis pequenos. Nunca foi encontrado nada em nenhum planeta. Eu mesmo já estive em lugares para lá de Alfa Centauri e de Sirius e nunca nos falaram nada de seres extraterrestres dotados de inteligência.

- Vocês já repararam que aqui tem árvores, vento, montanhas, relvados, tem areia, tem morros, mas nunca vimos uma única mosca, uma simples formiga? Será que a máquina desses extraterrestres não consegue criar algo vivo?... Ei, legionário, esse punhal aí já deu alguma resposta? – provocou Quintus.

- Estava lembrando-me daquelas aulas de ciências... Aquelas células que a gente via através do microscópio.

- Você está querendo dizer o que com esse negócio de célula, legionário? Desembucha logo – insistia Quintus.

- Não sei. Só fico pensando em células e que tem células de todo tipo. Nem sei dizer ao certo porque estou pensando sobre isso.

Tiberius que assistia a tudo em silêncio achou ter tido uma compreensão súbita sobre aquilo.

- Você disse que tem células de todo tipo. Até onde me lembro, as células são seres vivos e podem ser de todo tamanho... E se esse lugar fosse uma célula imensa? E nós estivéssemos andando esse tempo todo em cima de uma célula gigantesca?

- Hum, eu gostei dessa sua ideia. Uma célula pode evoluir para algo maior. A gente pode estar em um planeta que é vivo como uma célula. E ele ainda está se desenvolvendo já que tudo aqui se parece com as coisas da Terra, só que são defeituosas.

- Mas que porra é essa que vocês estão dizendo? Planeta feito de células e que ainda está crescendo? Tenho certeza que se tivesse um bom vinho tinto aqui vocês teriam dado uma resposta melhor que essa – a gargalhada que Quintus deu foi forte e contagiou aos demais.

- E se fosse um vinho acompanhado de música boa, garotas bonitas de olho em mim e... Ah, temos que dar um jeito de sair desse lugar maldito – Tiberius falou rindo, mas também deixou escapar um quase imperceptível ar de tristeza.

******

A última cota de ração havia sido comida há quase dois dias. Cada vez ficava mais difícil raciocinar quando o corpo pedia mais e mais calorias.

- Porra, eu estou com fome. Vamos morrer de fome aqui nesse planeta desgraçado – disse Lacínio.

- Desse jeito a gente vai terminar comendo um o fígado do outro. Aviso logo que o meu fígado está com cirrose hepática de tanto vinho que já tomei na vida.

Ninguém riu da piada de Tiberius.

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Os últimos legionários da desaparecida Nona Legião estavam sem comer a quatro dias e o desespero já se fazia presente em cada um deles.

Os três sobreviventes estavam andando sem direção ou referências geográficas, já que toda manhã o relevo e a paisagem mudavam. Contemplavam a morte por inanição e sede como únicas certezas que tinham.

Tiberius experimentou comer a folha de uma árvore que tinha uma estranha coloração azulada. Por algum motivo lhe pareceu que ela poderia conter algum nutriente.

- Essa merda tem gosto de areia.

- Isso, soldado! Coma esse manjar dos deuses e morra. Posso lhe garantir que pelo menos os abutres não vão comer a sua carcaça. Nós mesmos vamos nos banquetear com essa sua carne já amaciada pelo vinho – Lacínio ao dizer isso não esboçou nenhum sorriso...

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 07/10/2020
Reeditado em 07/10/2020
Código do texto: T7081853
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