LONGE DE CASA

A fraqueza já dominava seu corpo, suas pernas pareciam-lhe dormentes e incapazes de sustentarem seu peso, mesmo assim ele insistia em caminhar. O frio era intenso e a neve lhe incomodava muito. Era estranho andar sempre afundando naquela coisa. Jamais ele se acostumaria com aquilo.

Não sabia dizer onde estava e suas lembranças eram vagas acerca do que havia ocorrido. Uma dor de cabeça terrível parecia querer consumir-lhe a alma. Seu uniforme encontrava-se sujo de sangue. Seus pensamentos estavam um tanto quanto desordenados contrastando com seus sentidos em alerta.

A M1 Garand era insuportavelmente pesada. Sentia vontade de abandoná-la, mas jamais faria aquilo. Ele amava aquela arma e dera-lhe o nome de Detinha em homenagem a sua irmã caçula. Nunca soube dizer porque fizera isso. Talvez fosse porque sempre se lembrava da irmã lhe pedindo para contar uma história: “Carlinhos, conta uma história. Mas eu quero uma história bem grandona”.

O vento gélido parecia cortar seu rosto. À sua frente descortina-se uma paisagem onde o branco da neve contrastava com a sua ruína física. Ainda se lembrando da irmã que não via há muito tempo prosseguiu em sua sofrida jornada.

Em pouco tempo iria escurecer. Enquanto aguardava pela chegada da noite lembrou-se de um fato ocorrido há muitos anos. Ainda estavam nascendo os primeiros fios de barba em seu rosto quando o pequeno e miserável vilarejo onde morava foi assombrado várias noites por alguma coisa. Todos que lá moravam ficaram terrivelmente assustados com os gritos horrendos, as pedradas e a morte dos animais de criação. Nunca se soube o que causou aquilo*.

Já fazia muito tempo que tinha saído da casa de seus pais. As lembranças todas que lhe assomavam agora eram coisas do passado. O que importava era que ele estava perdido em algum lugar da Itália, longe de seus companheiros de armas e com um desespero que começava se insinuar lentamente.

Sentou-se em cima de uma pequena rocha e abriu a última lata de ração K. Achava aquilo de um gosto horroroso, uma coisa gordurosa que os pracinhas comiam a contragosto. Aquela porcaria americana enlatada nunca chegaria aos pés da comida que a sua mãe fazia.

A dor de cabeça era intensa. Deu-se conta de que estava sem capacete. Onde ele tinha ido parar? Em um gesto rápido passa uma das mãos na cabeça e sente o profundo sulco deixado pela bala nazista. Foi um tiro de raspão. O projétil arrancou-lhe parte do couro cabeludo deixando uma espécie de vala em seu crânio. Ele teve muita sorte. Aquela bala tinha uma intenção assassina. Se acertasse em cheio teria feito sua cabeça em pedaços. Será que pensaram que havia morrido e o deixaram para trás?

Sentia saudade da sua casa. O que diabos ele foi fazer ali na Itália? O que seus pais e irmãos estariam fazendo agora? Tinha mais de dez anos que não via ninguém de sua família. Aos dezoito anos resolveu conhecer o mundo e depois de muitas andanças terminou cruzando o Atlântico em um navio apinhado de soldados.

Terminou perdendo a noção do tempo enquanto andava em um campo gélido e cercado por uma paisagem que parecia se repetir a cada metro percorrido. Com o coração batendo acelerado e os lábios rachados pelo frio ele se depara com uma pequena placa de madeira fincada em uma encosta. Com certa dificuldade consegue ler o que está escrito: LUOGO DEI DIMENTICATI

*****

Ele não entendia nada de italiano. O que estava escrito naquela maldita placa? Terminou achando que era o nome de alguma vila e seguiu em frente.

Debilitado, sentindo seu corpo muito cansado, mas com a M1 Garand em posição de tiro ele se aproximou de um pequeno aglomerado de casas.

Ao aproximar-se das primeiras casas sentiu as forças finalmente lhe abandonarem e desfaleceu. Sonhou que estava em uma estradinha de terra batida e que borboletas multicoloridas esvoaçam ao seu redor. Ele estava a caminho de sua casa e sentia-se muito feliz com o sol do norte do Brasil a lhe queimar a pele.

Quando acordou estava deitado em uma pequena cama. Sentia um leve desconforto nas costas, mas a terrível dor de cabeça havia passado. Estava sentindo-se melhor e o sangue que havia ressecado em parte do seu rosto tinha sido limpo. Alguém havia colocado em sua cabeça um pano de linho para cobrir-lhe o ferimento.

Procurou por sua arma, mas não a encontrou em nenhum lugar. Revigorado e sentindo a confiança retornar resolveu sair assim mesmo e explorar o lugar, afinal se fossem inimigos já o teriam matado há tempos.

A casa onde estava era pequena e feita de pedras envelhecidas. Percebeu que o vilarejo era composto por umas poucas casas que tinham um aspecto de decadência e tristeza. Muitos diriam que era um lugar de grande pobreza.

Andando por entre as casas que compunham o pequeno povoado não percebeu qualquer tipo de atividade. Nenhum som sequer se fazia ouvir. Um estranho silêncio dominava o ambiente. Não sentia frio e isso era muito reconfortante, apesar de saber que iria sentir-se bem melhor se encontrasse quem lhe salvou.

Afinal onde estavam as pessoas que moravam naquele fim de mundo? Continuou a sua busca já sentindo uma ponta de desconfiança se insinuando, uma vez que até então não havia visto ninguém.

Próximo ao lugar que imaginou ser o centro do vilarejo encontrou um grupo de pessoas ao redor do que parecia ser uma espécie de obelisco. Deveriam ser os moradores. Com cautela aproximou-se delas.

Enquanto andava em direção das pessoas não pode deixar de sentir que havia algo de diferente ali. Não conseguia definir o que era. Não sentia medo ou apreensão. Só havia uma sensação de tristeza e profundo estranhamento a atravessar-lhe o pensamento.

Próximo às pessoas dirigiu-lhes algumas palavras em português. Não obteve resposta alguma. Experimentou as poucas palavras em inglês que conhecia. Nenhum resultado. Elas apenas olhavam para ele e nada falavam. Olhavam-se entre si, mas nenhum som saia de suas bocas. Não pode deixa de perceber o tom de pele do rosto daquelas pessoas. Todas elas eram muito brancas, de uma palidez como ele jamais havia visto anteriormente, nenhum alemão capturado pela sua tropa tinha uma cor sequer parecida com aquela. Seriam aquelas pessoas portadoras de alguma doença estranha? Elas não pareciam estar doentes, mas havia algo de diferente nelas.

Gritou a plenos pulmões alguns bons palavrões. Nada aconteceu. As pessoas apenas olharam para ele, não um olhar que demonstrasse raiva ou incômodo, A ele pareceu que estas apenas o tratavam como às vezes os adultos tratam as crianças, sem ligar muito para elas.

Irritado e decepcionado afastou-se indo encostar-se à parede rachada de uma velha casa. Ele estava cansado daquela guerra e de ficar correndo mundo como dizia a sua mãe. Olhando aquelas pessoas estranhamente brancas em volta daquele obelisco ele sentiu saudade de sua casa. Lembrou-se do café cheiroso e quentinho que sua mãe preparava todas as tardes, das camaradagens com os amigos e até da fumaça que as lamparinas deixavam todas as noites em sua casa. Ele precisava voltar para sua gente.

Ainda imerso em pensamentos ele observou algo que despertou um alerta em seu coração: o obelisco começou a brilhar. Não um brilho intenso capaz de causar um grande incômodo aos olhos. Percebeu que a luz ganhava tons multicoloridos e em um dado momento um pulso de luz subiu aos céus. Isso pareceu gerar alguma agitação nas pessoas em volta dele. Ficou com uma forte impressão de que elas estavam felizes com aquilo.

Assustado com aquilo tudo resolveu se afastar daquele lugar. Dirigiu ainda um último olhar para as pessoas e viu que estas permaneciam exatamente onde estavam. Olhavam em sua direção e algumas levantaram o braço. Seria uma espécie de saudação? Sem saber o que fazer repetiu o gesto delas..

Enquanto se afastava do estranho povoado sentia o frio aumentando e os barulhos naturais da natureza retornando. O vento gelado voltava a se fazer presente e suas botas tornavam a afundar na neve. Sentia seu corpo cansado, mas não debilitado. Ajeitou melhor o pano de linho que haviam colocado em sua cabeça e, subitamente, desfaleceu.

Mãos fortes agarravam-lhe. Escutou distante o som de vozes em português. Era a voz grave do seu sargento.

Encaminharam-no para um hospital de campanha. Recuperou-se plenamente a tempo de participar da Batalha de Montese e perder alguns bons camaradas.

Pouco tempo depois a guerra na Europa terminou. Era hora de voltar para casa.

Muitos anos depois quando já estava perto dos setenta anos viajou com sua filha mais velha para a Itália. Passou vários dias procurando pelo estranho vilarejo onde estivera. Conversou com moradores idosos da região, consultou antigos mapas militares, procurou indícios em velhos livros empoeirados de igrejas. Nunca encontrou nada. Ninguém jamais tinha ouvido falar de um vilarejo com aquele nome. Luogo dei dimenticati, Lugar dos esquecidos, existia apenas na lembrança daquele velho soldado.

Já idoso de vez em quando levava a mão à cabeça e sentia a cicatriz. Nunca se sentiu muito à vontade para falar sobre o que havia ocorrido Ele nunca havia esquecido aqueles três dias em que foi dado como desaparecido na Itália. Jamais esqueceu as pessoas estranhas e silenciosas que tinham salvado a sua vida.

Durante toda a sua existência guardou o pano de linho que colocaram em seu ferimento. Era tudo o que restara daqueles dias na Itália. Era a sua relíquia de guerra.

O velho pracinha de vez em quando abria uma pequena caixa que guardava com carinho e se pegava olhando para o pano de linho que, mesmo depois de tantos anos, parecia não ter envelhecido um único dia.

*Referência aos eventos descritos no conto HISTÓRIA PARA DORMIR COM MEDO

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 07/03/2021
Reeditado em 07/03/2021
Código do texto: T7200892
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