UM DE VOCÊS DEVE FICAR



   Como se sabe, todas as formas orgânicas na Terra têm a sua base de existência e sustentação essenciais graças à água. Sem esta substância transparente e inodora não há vida. E água no sistema solar é o que não falta. Ganimedes, por exemplo, uma das luas de Júpiter, tem 34 vezes mais água do que o nosso planeta. Mas você consegue imaginar todo um bioma de formas de vida baseado em outra substância completamente distinta da nossa?   
  Minha imaginação corria solta sobre isso enquanto contemplava a grandiosidade de Saturno e seus inconfundíveis anéis de detritos. Embora a espessa atmosfera de Titã não permitisse uma visão límpida do gigante gasoso, eu gostava de olhar aquele cenário fantástico do qual ainda não me acostumara depois de duas semanas trabalhando naquele território inóspito.
   — Vocês já conseguiram encontrar o local de onde estes sinais de radiação eletromagnética estão sendo emitidos? – perguntou Jota Alves, o Cientista Sênior, através do comunicador interno dos nossos capacetes.
   — Ainda não, chefe – respondeu Gabriel já a demonstrar um pouco de impaciência por caminhar em solo lamacento de metano, com pouca visibilidade. O traje térmico acolchoado, essencial para fazer frente à letal temperatura média de 180 graus abaixo de zero, não trazia o conforto desejado.
   Titã, uma das luas de Saturno, é o único outro corpo celeste no Sistema Solar a reunir semelhanças com a Terra no que diz respeito à atmosfera e líquido em seus rios, mares ou lagos imensos. A superfície é coberta por dunas de hidrocarboneto, parecidos com grãos da cor de café. Aglomerados de Rochas de água congelada são encontrados em meio às grandes vastidões planas.
  Podemos constatar por lá bem menos crateras, ou montanhas gigantes, se comparados às outras luas e planetas. Nossa equipe de cientistas viera até o satélite saturniano para estudar estas características únicas.
   No entanto, assim que a nossa nave pousou e se transmutou na estação de pesquisa, um fenômeno extraordinário ocorreu: um sinal eletromagnético potente, apesar da espessa atmosfera, começou a ser emitido de algum lugar de Titã em direção à vastidão do espaço. No mesmo instante, as nossas comunicações com a Terra foram interrompidas. Depois de muitos debates, chegamos à conclusão de que havíamos, provavelmente, acionado algum tipo de alerta interestelar para “alguém” lá fora.
   A prioridade, concluiu-se, era encontrar e anular a fonte de emissão, fosse ela natural ou tecnológica, porque não tínhamos a menor ideia das implicações daquele alerta. Ademais, precisávamos reaver a comunicação com a Terra.
  Eu e Gabriel fomos os sorteados para resolver aquela encrenca.
   Por isso, depois de um passeio de quase vinte quilômetros a bordo do hovercraft, havíamos estacionado perto da borda de uma cratera de baixo relevo, porém enorme em seu diâmetro.
  — O que você acha disso tudo, Max? - Gabriel me perguntou movendo-se à minha frente como se estivéssemos a andar dentro de uma piscina profunda, porque a pressão atmosférica em Titã era 50% maior do que a da Terra
  — Não sei o que pensar – disse, acionando a visão infravermelha do meu capacete -  é a primeira oportunidade real de se obter provas da existência de vida inteligente fora do nosso planeta, mas isso não adianta de muita coisa se não podemos passar essa informação pra frente, não é?
   — Você acha mesmo que se desativarmos esse dispositivo, poderemos retomar às comunicações?
   — Essa é a ideia.
   Gabriel calou-se por alguns minutos, o que era bem raro. Enquanto subíamos aquela encosta menos acentuada da cratera, de onde julgávamos vir as emissões de radiação eletromagnética, eu não cansava de admirar a paisagem escura de Titã através do visor infravermelho.
  Havia, sempre a germinar em nosso imaginário, a ideia interessante de que na Terra o ciclo da água era geradora de vida, pois a evaporação e a precipitação das chuvas permitiam vicejar formas orgânicas de todos os tipos; naquela lua saturniana o ciclo líquido se repetia também, mas com outra substância: o metano.
   Este composto em Titã, para quem não sabe, desempenha as mesmas caraterísticas hídricas da água na Terra. Chove e evapora metano por lá. Então, era possível conceber um processo químico prebiótico que pudesse gerar formas de vida completamente desconhecidas fora do ciclo da água. Nossa missão tinha como objetivo descobrir quaisquer microrganismos à base de metano ou outros compostos que se apresentassem à nossa curiosidade.
   Só não esperávamos encontrar criatura muito maiores, e inteligentes!
   — Virgem Santíssima, lá está! – disse Gabriel assim que alcançou o cume da borda da cratera e pôde lançar o olhar para o outro lado.
   Senti o nervosismo dele nos fones de ouvido interno do meu traje. Apressei o passo para ficar ao seu lado. Reparei, também perplexo, apesar das temperaturas baixíssimas, um grande lago de metano líquido dentro da cratera. Do centro do lago havia uma enorme torre com terminação côncava virada para cima, semelhante às parabólicas da terra.
   — Max, é de lá que vem o sinal e não é nada natural. – Disse Gabriel informando-me o óbvio.
  — Vamos descer para ver mais de perto. – Sugeri já pulando para as rochas de gelo mais abaixo. Naquele momento, não sei o porquê, não senti medo nem cautela.
   — Tudo bem, mas já te adianto que não vou nadar neste lago não! De jeito nenhum!
  Enquanto descíamos começou a chover metano. Eram gotas enormes de líquido preto e oleoso caindo do céu em câmara lenta devido à baixa gravidade. Liguei os holofotes do meu traje para abandonar a visão infravermelha do capacete.
    Ficamos em silêncio por um bom momento à beira do lago a olhar, fascinados, àquela estrutura alienígena. Há momentos na vida de você não ter palavras para descrever o enlevo de certos acontecimentos. A mente da gente fica enredada em situações ou objetos de modo tão intenso, que nos passa à impressão de não existir mais nada no seu entorno.
   Eu e Gabriel estávamos hipnotizados por aquele artefato a jogar no espaço algum tipo de mensagem não cifrada por nós. O que estava dizendo? E para quem?
   De repente, fui acordado daquele arrebatamento por uma mensagem clara, intensa, transmitida dentro da minha cabeça:
   Titã é nosso. Chegamos primeiro.”
   Imediatamente eu e Gabriel olhamos um para o outro, assustados, e falamos ao mesmo tempo:
   — Você ouviu isso?
   A curta mensagem trazia tons e falas humanas variadas para cada palavra articulada, assim como se fosse um recorte diversificado das vozes de rádio, ou programas de televisão antigos, selecionadas de outros fluxos de áudio para compor aquele.
   — Isso é telepatia! – ponderou o brasileiro amedrontado, dando um passo para trás, pois queria afastar-se da beirada do lago.
   — Parece. – Respondi já sentido um arrepio na coluna e me vi compelido a fazer o mesmo: recuar lentamente do lugar, na verdade a intenção era se afastar da cratera como um todo.
   — Max, vamos embora – sugeriu Gabriel andado de costas sem tirar os olhos da torre.
   Esperem”. A voz de mulher em tom de súplica, em minha cabeça, me impediu o movimento.
   Naquele momento, então, as coisas aconteceram muito rápido, pois não me lembro de como tantas dezenas de criaturas, sob a forma de corpúsculos ovoides negros, menores um pouco do que seres humanos, apareceram fazendo-nos um cerco.
   Ficamos estarrecidos pela emboscada!  
   Não consigo, até hoje, precisar se “eles” emergiram apenas do lago, pois vi alguns saindo de lá, ou revelaram-se em nosso entorno já escondidos pela escuridão natural do satélite. Pela primeira vez senti o medo súbito de morrer ali, distante para mais de um milhão de quilômetros do meu planeta natal.
   Titã é nossa casa. Vocês não são benvindos”, disse a voz entrecortada por tons diferentes de homens e mulheres. A emissão telepática, ou expediente similar, parecia vir de todos eles, de todos os lados.
   Hoje parece incongruente, até absurdo, mas me foi natural naquele momento de medo e incerteza procurar argumentar justificativas à situação na qual nos encontrávamos.
   — Não sabíamos haver moradores neste satélite! As sondas enviadas para cá jamais apontaram qualquer sinal de vida. Mesmo a Dragonfly, pousada aqui em 2034, nada registrou.
   Alguns esporos negros flutuantes, menores e circulares do que os de formas ovoides no chão titânico, se destacaram daquele conjunto aproximando-se um pouco mais para perto de onde estávamos. Percebi o deslocamento deles ser tão fluido àquela gravidade quanto era a nossa movimentação na Terra.
   Não registraram porque não o permitimos”  
   — Quem são vocês? – perguntou Gabriel nervoso, a um passo do pânico.
   Isso não importa. Saibam apenas que viemos de um planeta muito distante com as mesmas características deste maravilhoso habitat. Estamos num paraíso. Retiramos a nossa essência de vida do metano assim como vocês o fazem com a substância abundante em seu planeta que chamam de água”, emitiu uma esfera negra circular pulsante a flutuar a dois metros à minha frente.
   A maioria dos recortes de áudios para compor todo aquele encadeamento de pensamentos traziam as intermitências e chiados de estática das radionovelas de meados do século 20.
   Nossas naturezas não se harmonizam nas mesmas condições planetárias. Vocês, sem estes trajes de proteção, morreriam em poucos segundo neste mundo. Assim como nós da mesma forma pereceríamos em seu planeta. Portanto, o que fazem aqui?
   — Pesquisa – respondi. - Aliviado em constatar o fato de Gabriel não emitir sua opinião de entusiasta da mineração. – E os sinais? – arrisquei perguntar, apontando o queixo para a parabólica alienígena.
   “Eles cessarão assim que vocês forem embora”.
   — E se não formos? – Gabriel teve a audácia de perguntar.
  Vocês teriam muito a perder. Somos uma comunidade pequena neste satélite, todavia as forças imperiais dos meus semelhantes cuidam de todos, mesmo as colônias mais discretas como a nossa. Se o alerta não cessar, em pouco tempo eles estarão aqui no seu sistema solar causando-lhes a morte
   — Como? As comunicações de radiação eletromagnética levariam centenas, ou até milhares de anos, para chegar às regiões mais distante das aglomerações de corpos celestes conhecidos. – Argumentou Gabriel, tendo o cuidado de não imprimir seu tom costumeiro de zombaria quando punha em dúvida o que lhe diziam.
   Temos os nossos meios de acelerar o processo, caso esta conversa não dê bons frutos, assim como a velocidade da luz há muito foi superada pelo meu povo. Eles virão logo, se for preciso".
   — Está bem. Falarei com os meus superiores - baixei a cabeça oferecendo gesto de concordância. O momento desfavorável não permitia outra postura. – Vamos embora -  disse virando-me para o meu companheiro. Gabriel, aliviado, concordou já tomando o rumo de volta para o aclive.
   Um de vocês deve ficar”.
   Aquela sentença foi um baque! Senti um arrepio na base da nuca, porque ela fora pronunciada de um tal jeito que parecia não haver contestação. Os olhos escancarados de Gabriel, de súbito, cravaram-se em mim como a dizer “e agora?”. Olhei para o esporo negro circular à minha frente. Fiquei encarando-o por algum tempo com o semblante bem contrariado como se isso pudesse motivar a criatura a mudar de ideia.
  Não podemos perder a oportunidade de estudar a fisiologia da sua raça”, foi bem isso que aquela coisa me disse, e eu jamais esqueci.
   Às vezes, o instinto de sobrevivência no impulsiona a tomar decisões desesperadoras. Movimentei a cabeça como a dizer sim, sim, contudo não queria entregar os pontos. Não queria não.
   Voltei o olhar para Gabriel.
   O brasileiro me fitou dentro dos olhos e vi as pupilas dele dilatadas de puro horror. Lembro-me bem de suas bochechas começarem a tremer de nervoso. Em questão de segundo cada um tomou uma decisão. Quando pensei em abrir a boca para dizer-lhe “vamos correr destas geleias dos infernos”, Gabriel, para o meu espanto, me empurrou na direção dos “metanóides” e saiu correndo enquanto gritava:
   — Ele é de vocês!
   Não tive sequer tempo de reclamar, pois fui logo envolvido pela elasticidade oleosa dos ovoides mais próximos. A esfera negra pulsante ficou parada acima de mim por alguns segundos enquanto eu lutava por livrar-me do aperto. Logo vi que de nada adiantaria quando outros se aglutinaram na massa ao meu redor. Eu estava perdido!
   Olhei para Gabriel, já distante, uma mescla pequena de luzes nervosas em meio a escuridão a subir desesperado o aclive para sair da cratera. Ainda pude ouvir suas palavras desesperadas nos fones do meu traje “me perdoe, Max. Me perdoe, mas não posso ficar aqui”.
   As decisões precipitadas que tomamos na vida, sem pensar, no arroubo do momento, podem trazer consequências adversas daquela que esperamos. Desconheço os princípios morais de honestidade ou virtude daquelas criaturas negras de metano, porque jamais voltei a me encontrar com qualquer uma delas, mas o “chefe” daquele grupo pareceu não ter concordado com a postura pouco solidária do meu companheiro.
   Diga a seu superior, a fim de não haver retaliação, que foi um acidente” – a esfera disse-me escolhendo falas de tons humanos mais suaves.
   Assim, após a sugestão, toda a massa negra e oleosa afrouxou o aperto em torno do meu corpo. O todo se dividiu em vários enquanto outros já subiam a encosta no encalço do brasileiro apavorado. Levou poucos segundos quando as luzes do traje de Gabriel começaram a desaparecer e ouvi o terror na sua voz reverberar dentro do meu capacete:
   “Não, por favor, não. Eu não! Eu não mereço isso. Max, Max, me ajude”.
   Vá embora”. – Disse-me o líder esférico no uso de um tom grave.
   Levantei-me atordoado, pois perdera o equilíbrio assim que fora libertado. Tentei me comunicar com o traje de Gabriel. O sinal fora cortado. Antes de iniciar à subida daquela ladeira escura e gelada, vi o visor do meu amigo flutuando naquela argamassa de metano, deitado, de olhos esbugalhados a gritar alucinado sem se fazer ouvir. Enquanto era carregado, o aglomerado negro aglutinava-o como se fosse um casulo.
   Levaram-no para as profundezas do lago!
   Nada mais podia fazer por ele!
   Voltei à estação.
   

   
   A expedição em Titã foi cancelada. O cientista-chefe, Jota Alves, depois de relatar o ocorrido, incluindo a morte “acidental” de Gabriel, recebeu ordens para volta à Terra.
   Muitos anos se passaram, não obstante ainda hoje, de vez em quando, eu acordo assustado em meu quarto, lembrando-me daquele pesadelo vivido em Titã. E quando isso acontece, fico introspectivo por dias seguidos, ruminando pensamentos sobre uma mensagem insistente a repercutir dentro de mim, mas proveniente de lá, uma mensagem entrecortada de tons e falas humanas variadas que me suplicam:
   Max, eu ainda estou vivo, venha me buscar, por favor!
 

 

 


Este texto foi escrito motivado por um Desafio Literário interno do grupo de FC Base Lunar,  em que a ideia era eselecionar um corpo celeste  qualquer do Sistema Solar para desenvolver um conto. Escolhi Titã, um dos satélite de Saturno. 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 11/03/2021
Reeditado em 15/12/2023
Código do texto: T7204634
Classificação de conteúdo: seguro
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