Contos da agenda Max - conto 2/ A oficina.

Henrique limpava o suor de sua testa ao ler mais uma vez uma formula em seu tablet, suspirou profundamente como se desistisse de algo, o cansaço era grande, era o terceiro dia acumulando sono, sua missão era importante, era essencial, sua vida dependia dela.

Olhou mais uma vez o relógio, tirou seus óculos e o repousou na mesa, afundou seu corpo na cadeira, seus olhos pesavam, o sono dava as caras, dias de cansaço se manifestando naquele instante, ele precisava continuar, precisava sobreviver, nessa briga interna terrível o sono venceu. Sua cabeça pendeu para o lado, sua boca ficou entreaberta, sua respiração ritmada marcavam o sono profundo, que se instalara de forma ligeira.

Pequenos sonhos se manifestavam sem nenhuma ligação lógica. Henrique viu sua mãe chegando com as compras em casa, seu pai aparecia na porta, lançando um olhar de reprovação para algo que ele nem sabia o que era, depois sua ex mulher o pegava pelado no meio da rua, sem que ele se desse conta do fato até ela falar com ele, em outra imagem um pedreiro com uma britadeira pedia para ele sair de perto, pois o barulho seria enorme.

As batidas da britadeira se misturaram com batidas na porta de sua casa, a saliva escorria de sua boca. Henrique despertou num susto e percebeu que batiam em sua porta. Olhou rapidamente para o relógio e percebeu que dormira apenas dez minutos, porém seu corpo doía como se tivesse dormido dois dias. Ele se levantou com o corpo ainda se esquentando com o calor interno, pegou seus óculos de grau três, que deixavam seus olhos castanhos mais vivos, deu dois tapas no seu rosto pálido e foi até a porta para ver quem batia.

Sua casa mais parecia um ferro velho, na verdade ele estava na oficina, que ficava num porão, havia uma escada de madeira que levava ao andar de cima, no fim dela uma tampa cerrava o cômodo. Saiu de porão e fechou a tampa redonda de ferro e a escondeu com um tapete verde escuro. Sua quitinete era pequena, de uns quinze metros quadrados, basicamente todos os cômodos se acumulavam naquele espaço, precisava de uma pequena inspeção ocular para varrer todo o ambiente da casa de Henrique. Ele pegou seu gorro para esconder a careca raspada, tinha vergonha dela, mesmo que não tivesse culpa, pois essa era a lei, nenhum homem tinha o direito de ostentar qualquer tipo de cabelo, mas a vergonha era maior, depois de tampar a careca se aproximou da porta.

As batidas continuavam só que agora mais fortes. Ele olhou pelo olho magico e viu que se tratava de Rose, sua antiga amiga de faculdade e que morava próximo. Henrique destranca a porta apertando uma combinação numérica em um interfone, a porta emite em som de vácuo sendo desfeito e se abre.

Rose solta o ar dos pulmões aliviada ao ver Henrique e o abraça. Ela é mais baixa que ele, então fica na ponta dos pés. Seus cabelos escuros eram lisos e bem oleosos, a lei também proibia mulheres de usarem cabelos longos, o máximo era até o queixo, porem ela os deixava até os ombros, uma tolerância aceitável para muitos, mas considerado ofensivo para outros. Seu rosto fino era proporcional ao seu nariz igualmente fino, seus olhos eram castanho escuro e contrastavam com seu rosto branco sem sobrancelhas. Logo ela soltou Henrique e falou.

— O que aconteceu com você Rick? – Sua voz estava chorosa.

— Não aconteceu nada. – Respondeu ele olhando ao redor dela, certificando-se que estava sozinha.

Rose entrou na casa rapidamente e fechou a porta, que emitiu um som de vácuo se fechando. Olhou ao redor e percebeu a bagunça.

— Tento falar com você e não me responde.

— Tentou aonde? – Henrique respondeu desviando o olhar, depois indo até sua pia, onde um bule de café frio repousava em meio a pratos sujos.

— Tentei no seu celular. – Rose sentiu o distanciamento de Henrique e o seguia com seu olhar – Tentei vindo aqui, tentei diversas vezes.

— Você quer café?

— Rick! Para! – Rose segurou a mão de Henrique. – Você não me engana, eu vi os homens da cidade velha entrando aqui, não pense que sou trouxa.

Henrique ficou apreensivo, abrindo levemente a boca, entregando seu nervosismo.

— Do que está falando? – Sua voz falhava, num tom de insegurança, mesmo contra sua vontade

Rose segurou a mão de Henrique e o levou até a cama, os dois sentaram de frente para o outro, Rose olhou para a cama desarrumada e depois voltou o olhar para ele.

— Rick, não pense que sou idiota. Eu sei o que está fazendo. Não tente me enganar.

— Você está maluca Rose. Eu estou bem.

— Está bem? – Ela o questionou indignada. – Se olhe no espelho. Você está mais magro que o normal e acha que está bem?

Henrique desviou novamente o olhar e seus pensamentos e indecisões o absorveram. Ele queria muito contar para Rose o que estava acontecendo, queria se abrir, mas o medo de ser pego e ainda prejudicar uma amiga o consumia, esse conflito era tão grande que causava uma sensação de dor física, pontadas no estomago, lhe causavam micro expressões faciais de dor. Rose percebeu o conflito no amigo e segurou a outra mão de Henrique.

— Se abra comigo Rick.

Ele a olhou como se fosse falar, respirou fundo e decidiu não falar nada. Rose soltou as mãos dele, estava exausta, tentou não olhar diretamente nos seus olhos e fez uma inspeção visual no quarto. A cama desarrumada, os moveis sujos, tudo isso era indicio de desordem mental, papeis jogados para todos os lados, louças sujas tanto na cama quanto na cozinha, era tudo tão tenebroso que por alguns segundos chegou a cogitar a ideia de chamar o governo para internar o amigo.

Sua atenção foi quebrada para uma folha de papel na cama de Henrique, era um rascunho com diversas formulas escritas. Rose conhecia o trabalho do amigo, os dois fizeram juntos o curso de física pelo governo. A mente de Rose era rápida, entendeu que a formula falava sobre cálculos de campo magnético. Henrique encarou o rosto de Rose olhando para a cama desarrumada, não era tão rápido quanto ela para entender o contexto, mas sabia que a amiga já entendera tudo, um frio medonho subiu pela espinha e seu estomago revirou de medo, quando abriu a boca para tentar mudar de assunto, ela falou.

— Você está calculando um magnotril? – Perguntou de maneira seca.

A primeira reação de Henrique foi pegar o papel, dobra-lo rapidamente e colocá-lo no bolso, depois ficou indignado com a rapidez dela de associar a formula ao modelo de bombas magnéticas chamada magnotril. Rose ficou inconformada.

— Responde Rick? – Gritou.

— Rose, acho que é melhor você ir embora. – Falou levantando da cama e se dirigindo para a porta.

Ele apertou os botões e o barulho de vácuo desfeito abriu a porta. Rose foi até ele e fechou a porta com violência, abafando o barulho de fechamento.

— Não mente para mim Rick. – Gritou novamente. – Porque está calculando um magnotril?

— Fale mais baixo Rose. – Henrique fez um sinal de calma com as mãos, enquanto cochichava.

Henrique ficou em silencio novamente, Rose bateu no ombro dele para instiga-lo a falar, sabia que essa tecnologia era devastadora, uma explosão conseguia juntar com violência diversos objetos de metal nas redondezas, causando um efeito monstruoso de caos em quilômetros.

— Rose, me deixa em paz por favor.

— São os homens da cidade velha, não é?

— Rose não se mete nisso. Não tem homem de cidade nenhuma.

Rose o pegou pela mão e o levou até a cama novamente, sentou-se e falou.

— Se o governo te pegar, você está morto.

— Mas se eu não fizer o que eles querem, eu também estou morto. – Henrique Falou em tom desesperado, parecia querer chorar.

— Porque foi se meter nessa merda?

— E a gente escolhe isso? – Devolveu a pergunta desviando o olhar desolado.

Rose se comoveu, não sabia o que fazer, tocou o ombro do amigo, olhou no fundo dos seus olhos e falou.

— Porque não conversa com General do centro?

— Você ficou maluca? – Henrique falou num tom como se ela o pedisse para andar descalço encima de facas. – Se eu falo com o general ele irá me torturar para saber quem são eles.

— Então o que eu posso fazer por você Rick?

— Se afaste de mim Rose, é o melhor para você. Preciso terminar isso logo, eles querem para depois de amanhã, e eu não resolvi o enigma do corpo estático do robô.

— O que? – Perguntou interessada.

Henrique entendeu que essa conversa já tinha ido longe demais e precisava dar um basta.

— Rose, vai embora por favor. – Disse apontando a porta. – Você já está se metendo demais.

— Rick eu já estou ferrada pelo jeito, se eles te observam, com certeza me observam. – Ela fez uma pausa, pensou muito em todas as consequências e o que representavam os homens da cidade velha, entendia as pretensões deles de derrubar o governo e isso era louvável, mas seus atos eram tão pérfidos quanto os daqueles que eles lutavam contra. – Eu não gosto desses homens, mas também não concordo com o governo. – Ela deu um sorriso tímido inconformado com a situação. – Mas de verdade, pouco me importa quem comanda a arma, não sou eu que puxo o gatilho. Num mundo justo eu estaria resolvendo cálculos para barrar a energia radioativa do sol e o enxofre que cai na cidade e estaria recebendo milhões por isso.

Henrique riu.

— Sonhadora como sempre. – Ele sorriu e depois retomou o pensamento. – Esses caras, tanto governo, quanto os da cidade velha, são apenas psicopatas mesmo.

— É sério Rick, deixa eu te ajudar, me diz o que precisa, você sabe que eu posso.

Henrique ficou novamente pensativo, mas desta vez considerava a hipótese como benéfica, realmente sua mente cansada, já não conseguia mais enxergar soluções obvias e ele sabia que Rose era capaz.

— Rose, eu não quero que isso...

Rose colocou a mão na boca dele.

— Cala a boca e só me fala onde está travado.

Henrique olhou zombeteiro.

— Porque acha que estou travado?

— Além de você mesmo me dizer isso. – Ela sorriu. – Eu te conheço. Você sempre trava nos cálculos finais.

Ele se virou para ela de forma bem alarmada.

— Eu vou te mostrar uma coisa, mas não se espante.

Minutos depois eles estavam no laboratório de Henrique no porão, Rose olhava aquele lugar fedido, poeirento, iluminado com luzes opacas e não conseguia sentir nada além de nojo. Henrique apontou para sua mesa de trabalho, iluminada com uma luz fluorescente, nela, vários papeis jogados com formulas rabiscadas e ao lado um manequim sem rosto. Os dois se sentaram.

— Preciso resolver o problema do corpo estático do robô. – Ele a olhou um pouco desanimado. – Entende? – Seus olhos se arregalaram em desespero. – Eu não estou desenvolvendo a bomba, eu desenvolvo o transporte e detonador.

— E qual o problema então?

— A bomba não fixa, ela se adere ao robô e entende ele como detonador e acaba explodindo antes.

— E porque os idiotas não usam um desses fanáticos deles?

— Parece que a bomba causa radiação se exposta próximo ao corpo, o homem não aguentaria chegar no local que querem.

— Mesmo usando a roupa antimagnética?

Ele assentiu com a cabeça.

— Preciso de algo que transporte essa bomba, sem estourar antes, ou matar um fanático. Segundo meus cálculos. – Ele apontou para os papeis riscados. – Não consigo baixar o magnetismo e a energia atômica no mesmo nível, se elas ficarem assim, a bomba não estoura, se aumento um e abaixo o outro, o detonador não deixa nem que se encontrem.

— Robô de plástico? – Indagou Rose, olhando fixamente para os cálculos.

— Não consegue aguentar a radiação, precisa ser metal.

Rose olhou para os papeis, tentou entender o que o amigo escrevia, sempre criticava a falta de clareza nos cálculos dele e odiava ainda mais seus garranchos, ficou perdida com tantos de cálculos inacabados, depois levou às mãos ao queixo e teve uma ideia.

— E se usar o metal 2100?

Henrique pareceu não entender logo de cara, a ideia parecia absurda.

— O metalzinho? Essa droga é do século passado, estamos em 2222 Rose, não precisa...

— Cala a boca Rick e me escuta. – Rose falou de forma tão abrupta que ele se calou, mesmo odiando o tom, ela continuou como se tentasse convencer-se da própria ideia. – O metal 2100 é feito com liga antiga de alumínio e manganês. – Ela pegou uma folha em branco e começou a rabiscar com um lapis, para clarear as ideias. – Ele é poderoso. – Depois fez um gesto de incerteza com a cabeça e continuou rabiscando. É prejudicial? Sim, pois não usa um despoluidor de polônio, mas é o único robô que consegue segurar a amperagem para baixar a estática até zero. – Largou o lápis e virou-se para ele com muita certeza da ideia. – De verdade Rick a solução é mais básica do que você pensa.

Henrique foi iluminado pelo poder da ideia nova e um sorriso abobalhado saiu de seu rosto.

— Matou a charada de novo sua insuportável.

— Agora vai, chama os fanáticos para usar a bomba contra outros fanáticos e quem sabe seremos comandados por fanáticos novos. – Rose terminou rindo de sua frase boba, dita como se fosse um poema.