Contos da agenda Max - conto 4/ Pensando o futuro.

Amanda descansava sentada numa poltrona velha, de suede cinza claro, estava exausta de tanto trabalhar nos dias anteriores. Tinha uma missão a cumprir perante os lideres do movimento e junto a isso, um dilema moral que dominava inteiramente seus pensamentos. Seu corpo doía intensamente, acabara de voltar de uma detenção por mal comportamento.

Seus olhos estavam cansados. Ardiam ao se fecharem, uma mistura de excitação com cansaço, traziam uma sensação estranha de sono interrompido. Passou a mão em seus curtos cabelos pretos e tossiu com tanta violência, que acabou soltando um gemido de dor. Amanda era branca e as pessoas de pele clara, eram mais afetadas pelos efeitos nocivos da atmosfera terrestre. Era uma cientista voluntaria da causa revolucionaria, sonhava com o fim do governo e de sua tirania. Sua última grande missão no grupo, era o de encontrar falhas no processamento de energia do governo e assim sabotar o coração do sistema; nem de perto tinha a importância da missão original, que lhe atraiu para a causa.

No início, Amanda se dedicava aos estudos de um programa de contenção da radiação solar, e no fortalecimento da camada de ozônio, a ideia era criar; roupas, moradia, projetos de agricultura saudável para a população, pós tomada do poder. Participou de reuniões importantes, inclusive com o cardeal Arivaldo, o grande chefe dos revolucionários, e sua identificação com o movimento só crescia.

Tudo era um grande sonho, uma utopia de um futuro promissor, com as forças revolucionarias devolvendo a liberdade e a esperança de um povo que estava à beira da extinção. Amanda sonhava com a possibilidade de as pessoas saírem as ruas, de engenheiros compartilhando conhecimento sem a tutela de um chefe egoísta; até os pequenos sonhos, como um corte de cabelo a seu gosto, viravam elementos de uma utopia.

Essa ilusão, fez parte dos primeiros anos da vida de Amanda no grupo, mas com o passar do tempo, mudanças surgiram em seu espirito. Percebera o óbvio, não se derruba nada poderoso, sem cometer atos hediondos para a moral humana. O tempo passava e os conflitos se acumulavam; por experiência própria, era melhor não externar o que lhe deixava sem sono. Os atentados aumentavam, as mortes desnecessárias aconteciam, evoluíam as execuções de traidores da causa e algumas delas a sangue-frio, ela entendeu que o paraíso não era um caminho fácil. Os livros expressavam a luta com sua poesia, mas a realidade era feia e Amanda muitas vezes sentia-se indecisa sobre o porquê dessa guerra.

O dilema agora, era um pouco mais sério, colocava em xeque qualquer esquema de futuro; seu cansaço devido ao trabalho, era muito mais mental, que físico; percebeu que suas tosses roucas aumentavam, seus olhos lacrimejavam muito e nesse ponto começava a preocupação maior.

Uma semana antes, relatou para o seu superior, o coronel Bruno, uma preocupação maior que a destruição do governo e a causa revolucionaria; seus estudos chegavam a um ponto onde a humanidade caminhava para a extinção em pouco tempo; fora os problemas físicos causados pela radiação, dentre eles a cegueira, que já começava a se manifestar nela. O coronel Bruno deixou bem claro; "isso poderia esperar", disse com todas as palavras, "conter essa tragédia é sua função, trabalhe mais e todos ganham", mas Amanda foi dura e não cedeu, o que lhe causou uma detenção de uma semana, que chegava ao fim nesse dia.

Ela esperava descansando na poltrona até ser chamada para uma audiência com os líderes da revolução. Temia pelo seu futuro; pelo povo; pelos revolucionários, mas apesar das preocupações, Amanda carregava um ar desprendido, que ela gostava de chamar de “otimismo dramático”, pois, em seu íntimo, pensava, “melhor morrer agora, do que por radiação severa no futuro”.

Quando o sono parecia querer agarra-la, a luz vermelha que estava numa mesa a sua frente acendeu. Amanda deu duas tossidas longas, apertou um botão e uma voz metálica irrompeu pela parede.

— Amanda, venha a sala 40.

Amanda se levantou, suspirou longamente inflando os pulmões e soltou o ar com uma tosse rouca, causando uma dor lancinante no seu peito, apertou-o com as mãos para amenizar o sofrimento e saiu manquitolando.

Fora da sala, havia um corredor longo de paredes escuras, com diversas portas de frente umas para as outras, que se estendia por uns trinta metros. Poucas pessoas transitavam por ali, o corredor era estreito, comumente alguém trombava com outra pessoa, que passava depressa em sentido contrário; ao passar por Amanda, olhavam seu aspecto doente e mantinham uma certa distância; ela fingia não se importar com isso, mas por dentro, sentia-se pestilenta. Chegou à porta, que se abre sem anúncio, entrando em seguida.

Dentro da sala do cardeal, dois homens aparecem com roupas de plástico preto, fecham a porta e iniciam uma revista em Amanda. Mesmo constrangida com os toques dos seguranças em seu corpo, ela tenta manter uma expressão altiva, seu rosto se contorcia de forma tímida, quando era tocada em lugares doentes. A voz do cardeal Arivaldo, aparece no momento que ele vira a cadeira para encarar Amanda.

— Não precisam revista-la.

O cardeal era negro, careca e de uma aparência jovem; tinha, na verdade, quarenta e dois anos. Sua voz era grave; porém, falava de maneira calma e pausada. Também usava a vestimenta de plástico preto, uma roupa revestida com dióxido de titânio, que ajudava na proteção a radiação infravermelha do sol.

— Podem me deixar a sós com ela. – Ordenou o cardeal, que fora prontamente atendido pelos dois seguranças.

Após a saída deles, o cardeal fez sinal para Amanda sentar-se, apontando para uma cadeira a sua frente. Ela caminhou com dificuldade, arrastando o pé e contorcendo a face com dor. Arivaldo lança um olhar curioso para ela; percebeu o desconforto crescente na cientista, pela dor que não conseguia esconder. Depois de sentar-se, ela relaxa, soltando um longo suspiro. O cardeal espera uns segundos e fala.

— Sabe porque te chamei aqui?

— Não tenho ideia senhor. – Disse acomodada com as costas na cadeira, como se estivesse prestes a tirar um cochilo.

Arivaldo baixou os olhos e começou a mexer num globo terrestre em cima da mesa, ele o girava, como se quisesse causar algum efeito dramático naquela cena.

— Uma das coisas que tenho orgulho, é de ter juntado um bom time, nos corredores da nossa luta. – Ele parou o giro do globo e encarou Amanda. – Temos os melhores soldados, os melhores engenheiros e os melhores cientistas. – Deu um risinho debochado. – O governo divulga seus profissionais dizendo que são os melhores, mas, no fundo eles sabem; tremem de medo, pois, sabem que os melhores estão aqui entre a gente; entre os que não se sujeitam às loucuras deles. – Arivaldo parou, girou a poltrona e apontou para um quadro com o seguinte texto;

“É aos escravos, e não aos homens livres, que se dá um prêmio para os recompensar por se terem comportado bem.”

Havia um espaço, e depois outra frase complementar, seguida por uma assinatura.

“Eu lutei contra a lei e a lei venceu. Ass. Sonny Curtis e Joe Strummer.”

Ele apontou para o quadro e disse. – Sabe o que gosto nessa frase? Ela nos leva a pensar, o que somos aqui nessa terra? Escravos ou homens livres? – Arivaldo mostrou-se desdenhoso logo após. – Lógico, que sendo uma frase escrita na língua proibida e cantada nessa língua, por bandas que não fazemos a ideia da entonação, deixa ela um pouco, como posso dizer, fútil demais.

Arivaldo terminou sua fala com seu risinho desdenhoso. Ele igual a outros rebeldes, odiavam o inglês, chamavam de “língua proibida, usada para aprisionar pessoas através de uma linguagem universal”. Esse quadro em especial, ele mantinha guardado, pois, era de seu pai, que vivia contando histórias de grandes revoluções e uma delas, dizia ele, se deu na música, quando bandas inglesas, “subverteram” a ordem, criando o movimento punk rock e essa musica, era de uma banda punk, chamada The Clash. Amanda era uma acadêmica acima da média, considerada um gênio para os padrões normais; adorava ler e era culturalmente superior a qualquer pessoa no movimento e talvez no governo todo. Sabia que a autoria dessa frase, não era da banda inglesa The Clash e sim, de um pensador do século XVII chamado, Baruch Spinoza e ele nem era inglês, era de origem holandesa. Ouvia esse discurso de Arivaldo e entendia cada vez mais, porque estava desgostosa do movimento; o homem que deveria conduzi-lo, falava futilidades como se fosse um sábio; como entregar algo nas mãos dessas pessoas? Isso conflitava com suas crenças, e o pior tinha total certeza, que o quadro dos especialistas do governo, era igualmente estúpido e falacioso. Amanda perdeu-se em devaneios enquanto Arivaldo falava e decidiu voltar a atenção ao discurso, antes que ele percebesse.

— Não quero que sejamos escravos, não estou aqui para isso, você me entende? – Ele pergunta para Amanda, que logo responde que sim com a cabeça. Ele então juntou as mãos e fez uma pergunta de maneira mais enfática. – Então o que anda te incomodando tanto Amanda? Porque anda dizendo, que temos que acabar com os planos de tomada da agência máxima?

Amanda não dizia isso aos quatro cantos; obviamente supunha, que seu superior, o coronel Bruno, andou expondo suas insatisfações. Seu olhar transparecia insegurança, mas dentro de si, queimava uma fagulha de coragem insensata. Logo tratou de trazer a realidade à tona e a falar o que pensava.

— Vamos acabar morrendo cardeal. Nosso tempo aqui, é mínimo. – Ela encheu os pulmões, pois, lhe faltava o ar, terminou a frase num tom de rebeldia. – É sobre isso que ando falando.

— Continue, quero ouvir sua explicação. – Amanda não conseguiu decifrar na entonação do cardeal, se havia ironia, ou ameaça, ele mantinha-se calmo, olhando nas profundezas dos seus olhos.

Mesmo com medo, rapidamente ela pensou, “para que guardar algo dentro de mim, se morrerei logo?”

— Senhor; está claro uma coisa para mim, se a camada de ozônio continuar fina do jeito que está, e à terra exposta à radiação solar extrema, temos uma perspectiva de vida abaixo dos 40 anos, isso sem considerar, que possivelmente estaremos todos estéreis antes disso. Não preciso dizer, que entrar no núcleo da agência máxima e explodir o centro com suas maquinas e pesquisas, iria retroceder os avanços para quase zero. – Ela aumentou o tom – Se fizer isso; acabou, não teremos mais vida, nem o senhor, nem seus filhos, nem ninguém que luta aqui hoje.

— Continue. – Ele falou mantendo a postura.

— Eu fiz os estudos, temos casos nas suas tropas de perda de visão, sabe o que isso significa? - Fez uma pausa dramática. - Cegueira, aparentemente isso não retrocedera. Logo ninguém terá o que comer, não poderemos mais sair as ruas, me diga o senhor, o que pensa que teremos, quando tomarmos a agência?

— Eu quero que você me responda?

— Morte; extinção, é isso que acho.

O cardeal fez um breve silêncio, contemplou novamente o seu quadro e se virou para Amanda, colocou os cotovelos sobre a mesa, franziu um pouco a testa e falou.

— Vou te contar uma breve história sobre a agência, mais precisamente sobre o antigo governador, pai do idiota que governa agora. Meu pai participou da luta contra os imigrantes dos EUA e Europa, quando as fontes deles secaram. Foi muito tenso, mas, Fabiano o antigo governador, percebeu uma coisa; os europeus tinham a tal tecnologia, que bloqueava a radiação em terras cultiváveis. Depois de render todos, pegou os engenheiros desses lugares e criou o prédio máximo com a tecnologia deles. Houve muita felicidade nesse dia, era obvio, não era? Terras cultiváveis, era tudo que precisávamos. Sabe o que Fabiano fez? Ajudado por seu filho, que hoje se chama de primeiro-ministro? Obrigou esses engenheiros a treinarem os nossos, logo depois os matou, trancando a tecnologia naquele prédio mofado. Encurtando a história, estamos à mercê dessas aberrações. Acha errado destruir o prédio máximo? Acha que estará destruindo a tecnologia que irá nos salvar? Esquece isso, o que importa realmente são os dados que eles guardam e isso não está na sala das maquinas. Se não fizermos nada, aí sim estaremos extintos; e sabe como sei disso? Meu pai ajudou Fabiano e seu filho; depois de discordar desse absurdo, foi mandado para uma prisão de tortura com outros engenheiros. Eu era novo, consegui fugir e me juntar ao grupo do Mariano. – O rosto do Cardeal se encheu de orgulho, ao falar do antigo líder criador dos revolucionários. – Desde esse dia, tenho em mente o seguinte; quem escuta essa história e ainda assim se opõe a quebra desse sistema horrível, seja por ingenuidade ou comodismo, não merece estar conosco; não é diferente de Emiliano, ou qualquer outro idiota do governo. Concorda comigo?

Terminou a história olhando fixamente nos olhos de Amanda, que nesse momento não conseguia demonstrar medo, por mais verossímil e triste que fosse o relato, não representava nem metade de suas preocupações. Como explicar para aquele homem ignorante, com complexos de grandeza e erudição, que ele estava errado? Não seria destruindo o prédio e pegando dados, que iriam construir maquinas tão boas, quanto as do governo. Como explicar para esse homem, que o mais inteligente seria uma cooperação? Melhorar a tecnologia que os incapazes do governo tinham. E o mais importante, como mostrar para uma pessoa, que viu o inferno representado pela morte de seu pai e de outros amigos, que nada disso era necessário? Ele via sentido na guerra, pois, dentro dele, só isso era real, mas Amanda sabia, que a radiação não daria um tempo de vida maior que quarenta anos para as pessoas, ou seja, a luta era ilógica. Ela entendia que a humanidade estava enclausurada, presa por tiranos. Eles supostamente tinham dados importantes sobre, cultivo e bloqueio de radiação, mas ela era cética disso tudo, duvidava que alguém teria alguma tecnologia dessas, ainda mais sabendo o nível de inteligência dos cientistas, tanto do governo, quanto dos rebeldes. Repetia em sua mente, “só a cooperação intensa, seria capaz de trazer algum avanço”, mas a realidade era, uma guerra sem sentido, com mortes de inocentes, que mal sabiam o porquê morriam.

A resposta que rondava sua cabeça era; “lutar contra os tiranos, para colocar outros no poder”. Ela não considerava as ambições do cardeal piores que as do governo, sabia que seus intentos eram mais humanistas, mas seu veredito era simples, “governo de ignorantes só podem dar no mesmo resultado”. Então era obvio, ignorância era igual à tirania para ela.

Seu pessimismo a levou ao seguinte pensamento, “Irei morrer rapidamente, triste por esses homens que não terão a minha sorte” e respondeu ao Cardeal.

— Concordo cardeal. – Terminou a frase com uma tosse forte e depois, sua mente relaxou ao ponto, de nem escutar palavra alguma, que saia da boca daquele homem.

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