O Capitão Barbosa se defende

O CAPITÃO BARBOSA SE DEFENDE

Miguel Carqueija

 

Relatório do Capitão Barbosa, Comandante da nave Antaprise, a seu superior, o General Carranca, da Frota Espacial Brasileira:

 

Senhor General, escrevo na intenção de esclarecer todos os fatos, visto que a Senhora Anabelle Rockfeller me acusa de ter espancado o seu filho adolescente e de ter tentado matar o bicho de estimação dele, um saltarino conhecido como Nonô. Ora bem, meu general, acredito que a serena exposição dos fatos mostrará claramente que em nenhum momento eu tive a intenção de bater no peste, digo, no filho da senhora em questão, tampouco fazer qualquer mal ao monstrinho, quer dizer, ao bichinho de estimação do rapaz.

Tudo começou sábado passado, no Astroporto do Rio de Janeiro, quando eu estava prestes a embarcar na Antaprise para uma viagem de rotina à colônia marciana, à Cidade Internacional. Nesse momento fui abordado pelo Coronel Armênio Malagueta, que me apresentou a senhora em questão e seu menino.

— Ela irá com o garoto na sua nave, Capitão Barbosa.

Fiquei olhando para ele, sem entender, e como eu nada dissesse o coronel falou visivelmente irritado:

— O senhor ouviu o que eu falei?

— Sim, coronel, escutei, mas... mas... mas...

— Mas o que, capitão?

— É que nós não somos uma nave de passageiros, por isso...

— O senhor não é um burocrata para se aferrar a regrinhas.

— Não, coronel. Eu sou um militar, aferrado a regronas.

— Esqueça! É claro que a Antaprise normalmente não transporta passageiros, mas trata-se de uma excessão e está recebendo autorização especial de minha parte.

— Mas o General Carranca...

— Não se preocupe. O assunto já foi devidamente protocolado e o senhor receberá cópia na sua caixa de mensagens. O que o senhor tem a fazer é providenciar os locais mais confortáveis da nave para esta senhora e seu filho...

— E para o Nonô também! — gritou de repente o menino, dando um pulo, sob o olhar complacente da mãe. — O Nonô também vai!

— Quem é o Nonô? — perguntei, já com medo da resposta.

— Oh, apenas a mascote dele — esclareceu a dama.

— Um gatinho ou um cachorrinho então — falei, querendo me sentir aliviado. Não haveria maior problema com um gato ou um cachorro.

— Não, capitão — falou a mulher. — É um saltarino, um bichinho adorável.

— Um saltarino... lá daquele quarto planeta de Vega? — balbuciei, pedindo aos céus que houvesse uma resposta alternativa. Mas o coronel confirmou:

-É isso mesmo, Capitão Barbosa. Vejo que já está familiarizado com essa espécie. O senhor zelará, portanto, com a sua vida, pelo bem-estar de seus três passageiros. Lembre-se da tradição da Força Cósmica.

Embora a tradição da Força Cósmica nada me dissesse sobre ter de aturar mulheres esnobes, pestinhas incontroláveis e animais incômodos, fui obrigado a dizer que sim, que eu faria tudo o que estivesse ao meu alcance.

O Coronel Malagueta, aparentemente com pressa de encerrar a sua participação no assunto, acrescentou:

— Então está resolvido, Capitão Barbosa, sei que o senhor decola em cinco horas. Providencie imediatamente a acomodação dos hóspedes, suas bagagens e do animal também. Deixo tudo a seu cuidado!

Bati continência e o coronel se afastou, a meu ver com passo mais rápido que o necessário. Eu fiquei a olhá-lo meio sem ação quando o grito estridente do garoto me assustou:

— E aí, bicho? Vou já trazer o Nonô! Vamos arranjar lugar para ele imediatamente! Tchau, mamãe!

— Vá depressa — ainda gritou a madame, naturalmente para dar a última palavra. Depois se voltou para mim: — Os nossos empregados vão trazer as bagagens. Eles estão esperando no aerocarro.

Nisso o meu imediato, o Ze Peroba, apareceu me procurando e eu aproveitei para passar a tarefa a ele, a partir de rápidas instruções, pois eu precisava ir logo ao meu gabinete tomar algumas providências urgentes para o bom andamento da viagem (na verdade eu estava precisando ir ao banheiro, mas não achei necessário descer a esse detalhe).

Ilustríssimo General, afirmo em nome da minha ilibada reputação que fiz tudo, fiz tudo o que pude para me conservar fora do caminho dos três intrusos — perdão, hóspedes — mas os fados conspiraram contra mim.

Eu estava de fato tirando uma inocente soneca em meu gabinete quando bateram violentamente na porta ao mesmo tempo em que uma voz feminina esganiçada berrava: “Capitão! Capitão Barbosa! Saia imediatamente!”

Mal tive tempo de calçar os sapatos, pois a porta continuava a ser socada estupidamente e eu mal ouvia a voz do Zé Peroba objetando timidamente: “Senhora... isso é contra o regulamento...”

“Cale a boca, animal! Não sabe com quem está falando?”

Abri a porta de sopetão e o garoto, que também estava lá, esgoelou:

— Olha, mãe! Olha o capitão! Mas que capitão preguiçoso! Está cheio de sono!

— Tesouro, deixe que eu fale!

— Capitão, desculpe, não pude impedir...

— Está bem, imediato. Pode ir, eu resolvo!

O pobre Zé Peroba foi embora com uma expressão muito constrangida e eu, armando-me de paciência e compreensão, indaguei à visitante:

— O que deseja, senhora?

Juro que falei no tom o mais respeitoso possível; mesmo assim a resposta dela foi aos berros:

— Ainda pergunta? Que espécie de capitão é o senhor? Não sabe que daqui a pouco é hora do almoço?

— Sim, minha senhora, eu sei... espero que aprecie os nossos humildes pratos...

— Mamãe, ele está se fazendo de bobo — disse o garoto, mas a Senhora Anabelle cortou:

— Capitão, que espécie de cavalheiro é o senhor, que nem se lembra de convidar a mim e ao meu querido filhinho para almoçarmos em sua companhia?

— Mas Senhora Anabelle... nós todos vamos comer no refeitório, portanto...

— O que? Eu, uma dama da alta sociedade, comer junto com a plebe? Nem pensar! Só admito comer no seu gabinete, em sua companhia! Não junto com simples marujos!

Ouvindo chamar meus tripulantes, que são astronautas experimentados, de “marujos”, e de “plebe”, confesso que fiquei sem fala. Abri a boca, pensando em mil coisas desagradáveis para falar, mas não saiu um ai. E ela se aproveitou do meu estupor para voltar à carga:

— E então, Capitão Barbosa? Vai tomar uma atitude ou não?

— Eu... não sei se poderei oferecer o devido conforto à senhora nas minhas humildes acomodações...

— Ora, não seja modesto — e ela deu um sorriso forçado e me afastou com a mão. — O seu aposento não é tão ruim assim, embora possa ser melhorado, e o senhor tem uma boa mesa!

Ela caminhou até a mesa de mogmo negro, na verdade usada para reuniões, e examinou-a rapidamente:

— Servirá, com uma boa toalha de mesa. Isso eu tenho, vou lá trazer. Enquanto isso, capitão, dê as instruções necessárias para que nos sirvam aqui!

Ela saiu pisando ruidosamente com seus saltos. Eu ia encostar a porta, mas antes que o fizesse uma sombra saltitante entrou como um raio e ao mesmo tempo que se leva para falar “zás-trás!” a coisa estava pulando pela estante, derrubando livros, mapas e bibelôs.

— Pare! Pare, seu peste!

Corri, tentei pegar o bicho, ele rosnou para mim e tentou fugir com um mapa sideral nos dentes. Fui atrás dele mas ao sair para o corredor algo se interpôs na minha canela e eu fui de cara no chão.

Era o garoto, que me passara uma rasteira. Com isso eu quebrei um dente canino e cortei o lábio superior, enquanto o saltarino, dando pulos com suas grandes patas marrons, pôs-se a rasgar com os dentes o mapa.

— O presente que eu ganhei do meu pai! — lamentei. — Ele vai me matar, ou no mínimo me esfolar vivo!

— Ah, que frescura! — exclamou o pestinha. — Um homem dessa idade com medo do pai!

Talvez ainda pudesse restaurar o mapa. Pulei e agarrei o saltarino pela barriga, antes que se completasse a destruição. Não tinha vivalma no corredor. Nessa hora ninguém aparece.

O bicho começou a me morder.

— Bandido! — falei, e joguei-o contra a parede. O animal guinchou de dor e o guri, furioso, pulou sobre mim e me acertou um golpe no estômago. Acho que ele sabe caratê, e ficou berrando:

— Monstro! Patife! Como se atreve a bater no meu bichinho?

O ar já me faltava e, perturbado pelos chutes e socos que ele me dava, tentei contê-lo, mas o Nonô pulou em seu auxílio, subiu no meu cangote e me mordeu o pescoço.

— Tira esse vampiro daqui! — berrei em desespero de causa.

Providencialmente o Zé Peroba apareceu e deu um tapa no animal, lançando-o longe e provavelmente salvando a minha vida. Nesse ponto o garoto entrou no meu aposento e dali saiu com uma cadeira que espatifou nas minhas costas. Aí, acho que perdi a noção de tudo, até que uma voz feminina histérica gritou:

— O que é isso? Seu bruto, o que está fazendo com o meu Juquinha?

Ela se atracou comigo e o Zé Peroba não podia me ajudar, pois já estava rolando pelo chão atracado com o Nonô. Felizmente outros tripulantes chegaram atraídos pelo bafafá e separaram todo mundo a custo. O Juquinha só levou uns cascudos de minha parte, mas eu me encontrava, é certo, muito pior que ele, já com meu uniforme todo rasgado. Afinal, tem sete anos que a Força Espacial Brasileira não me fornece uniforme novo.

E aí está, Senhor General Carranca, o que realmente aconteceu naquele dia infeliz. É claro que a senhora em questão desistiu da viagem e está processando a Força Espacial em dois bilhões de créditos, mas isso não passa de mero detalhe.

Atenciosamente,

 

Aderaldo Barbosa Júnior, Capitão da Nave Militar Antaprise.

 

POST-SCRIPTUM – Esta é mais uma encrenca do Capitão Barbosa Júnior que seu pai, o Capitão Barbosa Senior, conseguiu abafar levando a Senhora Anabelle na sua própria nave.

 

Rio de Janeiro, 14 de dezembro de 2017 a 29 de setembro de 2021.

 

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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 06/11/2021
Reeditado em 10/11/2021
Código do texto: T7380090
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