Em torno do círculo

Encontrei Anna Hristova por acaso, no trem de alta velocidade para Kandinsky. Ela estava acompanhada de uma menina loura como ela, cerca de seis anos terrestres de idade.

- É minha filha, Stefanija - apresentou-me, sorridente. - Este é o tio Neven, da Terra, que trabalhou com a mamãe em Kandinsky.

A menina ergueu os grandes olhos verdes para mim, atenta.

- O senhor nasceu na Terra? - Indagou.

- Sim, nasci no planeta de onde vieram todos os humanos - filosofei. - Embora deva reconhecer que as gerações anteriores fizeram um bom trabalho em devastar o que já foi um lugar melhor para se viver.

- O senhor conhece bem Kandinsky? - Inquiriu Stefanija, incisivamente.

- Oh, sim, estive lá várias vezes depois da obra terminada; foi onde conheci sua mãe, muitos anos atrás - relembrei. - Antes de você nascer.

- Eu me mudei para Prokofiev pouco depois que terminamos o projeto principal em Kandinsky, - explicou Anna - mas não temos pontuação suficiente para morar na superfície. De qualquer forma, os complexos subterrâneos são bastante confortáveis.

Apenas uma pequena minoria - escolhida por uma longa lista de atributos de relevância - recebia autorização para residência permanente na superfície, sob os domos; todos os demais - eu, inclusive - só podiam estar lá a trabalho ou em turismo, o caso de Anna e sua filha.

- E na Terra há lagos maiores do que o Lago Azul? - Quis saber Stefanija.

- Maiores sim, mas não tão bonitos - admiti. - Quando vejo o Lago Azul e seu entorno, me faz pensar em como a Terra deve ter sido no passado.

- É bom saber que, ao menos em Mercúrio, estamos preservando a natureza para as futuras gerações - ponderou Anna.

- Não temos mais o direito de errar - repliquei.

Peguei o contato de Anna, e despedi-me dela e de sua filha na estação Bauhaus de Kandinsky, onde eu tinha negócios a resolver; as duas seguiram para o término da linha expressa, às margens do lago.

Ao subir da estação subterrânea para a superfície, me vi rodeado de edifícios brancos em meio a alamedas verdejantes. E avultando sobre a cratera Kandinsky, o imenso domo transparente que reproduzia a atmosfera da Terra, incluindo nuvens e chuva.

Era bom estar em casa, mesmo longe dela.

- [08-11-2021]