O mendigo

O MENDIGO

 

Miguel Carqueija

 

 

Naquela madrugada Horácio Montenegro preparou-se novamente para se ausentar da mansão utilizando a passagem secreta. Após um lauto jantar, compartilhado com uma de suas amantes, ele a dispensara sob a alegação de que estava muito cansado para sexo e ainda precisava tratar de negócios.

Só mentira com a primeira parte. Ia realmente tratar de negócios; mas Ivone jamais poderia imaginar quais.

Montenegro tinha à sua disposição diversos criados e geralmente seu filho único não dormia em casa. Era um farrista, um inútil. Para Montenegro isso até era bom, pois criados não se metem com a vida do patrão — o que um filho zeloso (se fosse o caso!) — poderia fazer.

O quarto de Montenegro dava para três lugares: o corredor, um banheiro e uma espécie de depósito de objetos velhos. Nesse aposento contíguo havia um painel móvel; por ele Horácio passava a um túnel secreto que desembocava numa caverna. Esta por sua vez abria para a encosta do Jardim Botânico, e dali, com quinze minutos de caminhada, Montenegro encontrava-se de volta à civilização, ao Rio de Janeiro de 2053.

Só que ele já não emergia como o milionário Horácio. O homem que descia da caverna era um mendigo esfarrapado, remendado, não excessivamente estragado — usava velhos borzeguins e um chapéu furado — mas certamente um pedinte ou vagabundo. A transformação era demorada e se fazia num cubículo dotado de iluminação, que dava início ao túnel.

Horácio não temia as consequências em tais aventuras. Afinal, pagava em dia a extorsiva taxa de mendicância cobrada pela Prefeitura. Felizmente o lucro mensal era muito maior e totalmente isento de imposto de renda.

Com seus documentos habilmente falsificados, Horácio era agora Juvenal dos Santos, 47 anos, mendigo profissional há dez anos. Nesse período juntara um bom pecúlio, ainda que a mendicância em si representasse a menor das suas fontes de renda. Pensando nisso, enquanto permanecia sentado em frente ao pé-sujo do Severino, tentou imaginar quais seriam as manchetes naquela manhã. Daí a pouco, quando clareasse o dia, a Hermelinda viria abrir a banca de jornais — algo que começava a ficar em desuso, pela crescente difusão das compras de publicações com reprodução imediata na impressora doméstica. Mas nem todos podiam se dar a tal luxo; por muitos anos existiriam ainda bancas, e Hermelinda podia envelhecer tranquila.

Ele sempre conseguia tirar uma casquinha dos jornais, já que a Hermelinda não era ranzinza. E sempre tomava notas, às vezes em papel higiênico. A Hermelinda às vezes perguntava: — Afinal, Juvenal, por que é que você toma tanta nota?

A resposta de Juvenal costumava ser: — É que eu faço questão de ser um mendigo bem informado, ora essa! Se todos seguissem o meu exemplo, o Rio teria a mendicância de mais alto nível do país.

E é claro que ele passava por um original.

Juvenal também costumava, nos seus passeios, ir parar em frente aos telões, aproveitando para assistir telejornais, debates e entrevistas. Uma ou outra vez alguém até notava que aquele vagabundo assistia mais do que esmolava...

— Oi, Juvenal! Já deu para ficar rico hoje?

— Eu já sou rico, Hermelinda. De vitaminas e sais minerais...

E assim Juvenal pedia emprestada a sua “Gazeta Mercantil” ou qualquer outro jornal e ia para o beco se distrair um pouco.

Juvenal retornou ao seu quarto por volta de meio-dia, voltou a ser Horácio Montenegro, almoçou e, como não fosse obrigado por nenhum compromisso inadiável naquele dia, resolveu dar um giro pela cidade. Gostava às vezes de comparar as diferenças que podia observar nas suas duas vidas...

Lá pelas tantas desceu do seu Comodoro último tipo e seguiu a pé pelas reluzentes calçadas de “duronylon” do Jardim Botânico, onde já existia a banca da Hermelinda. Horácio, porém, estava longe dela; aproximava-se do Parque Lage. Ao chegar a uma esquina, encarou um mendigo que se aproximava pela rua lateral.

Mal teve tempo para reconhecê-lo e ver-lhe estampada a mesma face de espanto. A explosão pegou a ambos, matando-os imediatamente e destruindo boa parte do que havia ao redor.

Horácio iniciara suas incursões ao futuro no ano 2033, viajando sempre através do túnel espaço-temporal que ligava seu quarto à caverna, havendo exatamente dez anos separando uma ponta da outra. Ele era um brilhante inventor amador e, como todos os que lidam com viagens pelo tempo, fizera segredo de sua invenção. Essa idiossincrasia geral deve-se, evidentemente, aos aspectos subversivos de tais deslocamentos. Disfarçado de mendigo Montenegro observava, ouvia, recolhia dados e notícias, e assim, conhecendo o que estava por vir, pudera quadruplicar sua já imensa fortuna no espaço de uma década.

A viagem pelo tempo esbarra porém numa impossibilidade lógica vulgarmente conhecida como o “paradoxo do avô”. A falácia geralmente usada é essa: se um indivíduo entrar na máquina do tempo, voltar ao passado e liquidar o próprio avô, como poderia vir a nascer? E se não nasceu, como pôde ter assassinado o avô?

Entretanto a coisa se torna ainda mais complicada quando se trata do auto-encontro. Além de colocar em cheque a lei de causa e efeito, o encontro de um indivíduo consigo mesmo colocaria em risco o próprio conceito filosófico segundo o qual cada ser humano é uma pessoa completa. Se tal situação viesse a ocorrer o protagonista da mesma já não seria uma pessoa, mas duas, e potencialmente muitas.

É por isso que, a partir da segunda metade do século XXI, certas explosões misteriosas começaram a se tornar frequentes, fruto sem dúvida de experiências temporais secretas. O homem que esbarra consigo próprio, como aconteceu com Horácio, provoca grave aberração do contínuo espaço-tempo e é automaticamente eliminado, executado pela natureza que não admite tais paradoxos. Horácio sabia é claro que houvera uma explosão no Jardim Botânico em 2043 — precisamente 6 de maio quarta-feira — mas seus restos e de seu alter-ego não haviam sido achados. Além disso, passados dez anos — recordemos que na mesma data Horácio voltara de 2053 — já não se lembrava do dia e do local. Nos primeiros tempos ele ficava mendigando até mais tarde.

Mas como pôde o alter-ego de Horácio continuar a mendigar até 2053, se morreu com ele em 2043? Acontece que se Juvenal não houvesse retornado ao ano de 2033, Horácio não continuaria existindo, e indo e vindo no tempo, durante dez anos. Ou por outra, mesmo tendo morrido no encontro, o mendigo teria que voltar para que Horácio continuasse existindo, senão o encontro não teria ocorrido e nenhum dos dois poderia ter morrido. Mas morreram e Juvenal, mesmo morto — mas sem perceber que morrera — retornou pelo túnel até 2033, reassumiu a identidade de Horácio e prosseguiu em sua rotina até a reunião fatal. Durante todo esse tempo ele viveu normalmente mas estava virtualmente morto. E depois de 2043 o mendigo continuou a mendigar pelo Jardim Botânico, Humaitá e Botafogo, até sua última incursão em 2053, quando retornou pela última vez, distraído em relação ao fato de que, decorridos dez anos de sua estranha atividade, ele alcançava agora a época de suas primeiras incursões. Então o passado e o futuro se encontraram, formando um explosivo presente.

 

Rio de Janeiro, 7 de abril de 1993 a 1º de janeiro de 1994.

 

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Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 08/01/2022
Reeditado em 08/01/2022
Código do texto: T7424957
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