O SALTO

Eu tive o dia inteiro para urinar, poderia ter feito isso a qualquer hora, era só me dirigir a um dos muitos banheiros da base e me aliviar. Aí a vontade de fazer vem logo agora quando estamos a dez minutos de um salto? Que coisa chata! Será que é algum nervosismo meu de última hora? Prefiro nem pensar que estou à beira de ter um chilique.

Um agradecimento especial aos que projetaram esses trajes blindados. Os caras pensaram em tudo. A bolsa coletora de urina, e outras coisinhas mais, só vão ser descarregadas quando nós retornamos, melhor falando, aqueles que retornarem...

A ponta do canudinho fica logo ao lado da minha boca. Dou mais um gole em meu concentrado. Uma coisa horrível com gosto de remédio para dor de barriga! Mas o médico do batalhão garantiu que essa merda fornece uma descarga adrenérgica que pode aumentar nossa capacidade de lutar.

Dou uma última olhada em meu talismã preso logo acima do pequeno círculo do radar. É um botton com o desenho do ying e yang. Achei-o quando devastamos um quarteirão inteiro para desentocar os pescoçudos. Ele estava pregado em uma jaqueta soterrada pela poeira dos destroços. O dono já deveria estar morto há muito tempo. Perdemos mais da metade da companhia naquele maldito dia. Meti na cabeça que ele irá sempre me dar sorte. Sem ele eu não saio de jeito nenhum. Podem me colocar no paredão dos desertores que eu vou numa boa. Com ele aqui onde posso vê-lo me sinto mais seguro.

- Muito bem, bonecas! Dois minutos para o salto. Ninguém foge ninguém tem medo e todos morrem!

A voz grave do sargento Barreira ecoa dentro do traje. Ele sempre diz essa frase idiota. Não sei de onde ele a tirou, deve ter aprendido com algum antigo instrutor metido a durão.

***

Verifico pela enésima vez o painel de controle à minha frente. O Nível de energia do traje está em sua capacidade máxima. Fuzil térmico, ok. Lança-granadas também está ok. Metralhadora ponto 50 carregada e pronta para cortar ao meio quem aparecer pela frente. Radar tático e comunicações em perfeito estado.

Um traje blindado Osório equivale a quase uma tonelada de puro poder de fogo. Nunca um deles foi capturado intacto. Se o ocupante morrer o traje irá explodir em dois minutos. Eles foram construídos para reagir somente ao organismo de um determinado soldado, se os sinais vitais cessarem ele vai explodir tão certo quanto o sol nasce todos os dias. E é melhor estar bem longe quando isso acontecer...

- Santisteban, sem merda de música dessa vez. Foco total na porra da missão! Ninguém ganha nenhuma guerra escutando rock’n roll, soldado.

A voz do sargento chegou justo na hora que ia pedir para a IA do traje elaborar uma playlist com as melhores dos últimos quarenta anos.

Esse é o meu oitavo salto. Lembro-me que no primeiro achei que fosse me esborrachar no chão e virar carne moída. Tenho certeza que me borrei todo. Ficamos em queda livre por um longo minuto. Simplesmente foi muito tenso. Depois aprendi a confiar no sistema de frenagem do traje. Hoje não sinto mais tanto medo, acho que reciclei o pavor, mesmo sabendo que o momento em que desaceleramos é aquele onde estamos mais vulneráveis. Alguns parceiros meus foram alvejados por misseis antiaéreos dos pescoçudos instantes antes de pousarem. Não sobrou muita coisa deles.

***

Saltamos de 18 mil pés d altura. Quatro minutos de queda livre. Quatro minutos em que penso nas mulheres com quem não transei, nas bebidas que nunca provei, nos lugares que não conheci e um monte de outras tolices.

Constantemente Carmem fica me informando do tempo que falta para contato com o solo. Carmem é o nome que dei para a IA do meu traje. É uma homenagem meio boba que fiz para minha mãe. Confio em Carmen para me conduzir direitinho até o chão. Nesse momento ela é como minha mãe nos bons tempos: sempre de olho na sua cria.

Cheguei são e salvo ao solo. Alias o batalhão todo chegou inteiro. O lugar onde pousamos fica nos arredores do que sobrou da Cidade do Cabo. O que aconteceu aqui há cinco anos foi uma derrota fragorosa. Os trajes blindados simplesmente viraram um casco inerte graças a uma arma de PEM. Como foi que ninguém conseguiu prever aquilo? Achavam que os pescoçudos não tinham tecnologia para meter no nosso rabo, mas eles tinham. Tenho certeza que cabeças rolaram lá por cima. Naquele dia os desgraçados acabaram com praticamente todo mundo. Eu não tinha idade para servir naquela época e acho que se tivesse estado lá teria virado adubo também.

Aquela derrota serviu para impulsionar o Projeto Osório. Hoje sei que nenhum alien nojento vai inutilizar meu traje. Nossos engenheiros passaram a construir eles como uma gaiola de Faraday. Não me perguntem como funciona isso, eu não saberia explicar, mas sei que todos os nossos equipamentos agora estão protegidos dos pulsos eletromagnéticos.

Ninguém sabe dizer ao certo de onde eles vieram. Tem uma teoria meio maluca, que corre solta entre a soldadesca, que diz que o portal que os alienígenas usam para nos invadir não foi uma criação deles. Eles teriam de alguma maneira descoberto a geringonça e estariam usando em seu benefício.

Sempre nos perguntamos por que eles nunca trazem uma super espaçonave ou uma mega esquadra de porta-aviões? Em vez disso ficam mandando milhões e milhões desses pescoçudos. Se eles tivessem criado algo como o portal por que então eles estariam no mesmo nível tecnológico que a gente? Talvez estejam até um pouco abaixo.

A principal questão é: se não foram eles que construíram uma tecnologia tão fantástica como a do portal quem foi então?

Vamos deixar a resposta a essa pergunta para o pessoal da inteligência.

***

- Tavares, Santisteban e Schimidt. Adiante! Vocês vão ser os esclarecedores. Adiante soldados.

Avançamos cautelosamente pelo que restou de uma avenida. Veículos velhos e destruídos atrapalham nossa visão, mas também podem servir como barreira para o fogo deles. Prédios destruídos, muitos ainda inteiros, nos cercam de cada lado. Acho que essa cidade era bem bonita. Hoje virou cidade fantasma.

- Porra! – A voz de Tavares ecoa no canal privado – Tinha que ser nós três? Esse filho da puta não tinha mais ninguém para chamar?

- Fica atento, soldado. Depois a gente comemora no primeiro bar que estiver aberto na merda desse lugar. – Falei sem esconder minha irritação.

Tem alguém lá em cima que está torcendo pela gente já que não atraímos o fogo inimigo. Isso é bom? Claro que é. Ninguém quer morrer apenas para denunciar a posição e o poder do oponente.

Os drones de vigilância são abatidos rapidamente, mas não sem antes nos fornecer um panorama do que temos pela frente: eles são milhares e estão espalhados.

Nossos trajes são melhores, mais resistentes às armas deles, temos capacidade de voo e eles não. Eles podem fazer um estrago grande em nossas armaduras, mas os nossos estragos são maiores ainda. Nós só temos um problema: eles sempre têm superioridade numérica. Muita superioridade, eu diria. Quase sempre maior que um para dez. Se a coisa continuar assim vai chegar um dia que não teremos mais condições de lutar.

O sargento Torres empreende um perigoso sobrevoo tentando uma visualização melhor da área. Não entendo porque ele fez isso. Os drones já forneceram uma visão do que temos pela frente. Deve ser algum tipo de dependência química por mais testosterona. Acho que os psiquiatras devem saber explicar isso.

Era o dia de sorte dele já que não encontrou nenhum teleguiado pela frente.

- Vamos lá seus frouxos! Vamos cumprir a missão e depois nos encontramos no inferno prá...

Mal ele pousou e a coisa começou. Fomos pegos de surpresa. Uma chuva de pequenos misseis caçadores. Era o comitê de boas vindas deles.

***

Abro os olhos lentamente. O que houve? Por quanto tempo eu apaguei? Estou tonto. Não vejo nada além de muita poeira, blocos de concreto e ferros retorcidos. Mal consigo movimentar os braços. Não sei se estou caído de costas ou se ainda em pé. Levo alguns segundos até conseguir processar o que aconteceu.

Era só o que faltava... Explodiram um prédio em cima de mim. Os desgraçados mandaram uns arrasa-quarteirões em cima da gente

Respiro profundamente e tento me recuperar. É hora de colocar o pensamento em ordem e ver qual é a minha real situação.

- Carmen, como nós estamos? Temos alguma avaria? Alguma rachadura?

- Unidade OS-381 apresentando perfeita funcionalidade. Devo relatar, no entanto, uma pequena avaria no sitio articular referente ao membro inferior esquerdo.

- É a porra de um amassado?

- Unidade OS-381 apresentando alteração em sua estrutura morfológica original, sem comprometer a...

- Certo, já entendi. Estou com a lataria amassada. Vou ou pedir que lhe ensinem uns palavrões bem legais pra você dizer nos momentos em que explodirem um prédio em cima da gente.

O traje suportou um prédio caindo em cima de mim! Difícil de acreditar, mas estou vivo. Se sair disso vou dizer aos meus bisnetos que jogaram um prédio de treze andares em cima de mim, melhor dizendo, um de quarenta. Fica parecendo mais heroico assim.

Tento rir da minha piada, mas não consigo. Sinto que estou nervoso... E não gosto quando fico assim.

- Infantaria 1, responda! Infantaria 1. O que houve? Alguém no ar? Alguém na escuta?

Sem comunicação! Deve ter uma barreira gigantesca de cimento, concreto e aço bloqueando o sinal.

E se esquecerem de mim aqui? A merda desse traje blindado vai terminar sendo meu caixão. Aí daqui há uns dez mil anos algum cientista vai me encontrar durante uma escavação e falar algo do tipo “ele deve ter sido alguém muito importante para ser enterrado dessa maneira, talvez um rei ou sacerdote”. Ninguém saberá quem foi Pedro Santisteban.

Esses trajes foram construídos para varrer uma área, destruir o inimigo e estabelecer uma cabeça de ponte. Os trajes nos colocam em superioridade perante o inimigo. Abandoná-lo agora não iria me adiantar de nada já que é impossível eu cavar minha saída daqui só com as mãos. Isso quer dizer que eu tenho que sair daqui senão vou morrer.

Vamos lá, pense soldado! Experimento mexer ambos os braços, mas mal consigo. Certo, tudo bem. Tenho energia no traje para levantar toneladas se for preciso. Sem mais delongas apoio as mãos no que vejo pela frente e imprimo toda a força possível. Carmen fica monitorando o gasto de energia. Faço isso sem me preocupar se podem acarretar mais toneladas em cima de mim. Felizmente isso não acontece e consigo abrir um pouco mais de espaço. Tanta força me fez perder energia. Dez por cento a menos agora. Não tem como eu afastar essa montanha de destroços sem ficar depois inerte como uma múmia paralitica. Não, não. Isso é morte certa.

- Carmen me dê a ponto 50. Vamos ver o que alguns projeteis perfurantes vão fazer nesse concreto.

Confesso que foi o inferno. Balas pulverizando o que havia pela frente. O traje vibrando, vibrando.

Visibilidade zero. Muito tempo até toda a poeira e destroços do mundo inteiro finalmente sentarem.

Tenho um pouco mais de espaço agora, mas insuficiente para escapar.

Vou morrer aqui...

***

- Carmen, troca para o lança-granadas.

Carrego comigo granadas de alto poder destrutivo. Vocês não fazem ideia do que elas são capazes de fazer. Sei que posso morrer de uma vez agora. Para que lado lançar? E se elas explodirem no lugar errado? E se ricochetearem e terminarem causando um dano fatal ao traje?

Quer viver para sempre, soldado?

As granadas pulverizaram blocos imensos de concreto, mas também fizeram cair mais escombros sobre mim. Uso todas as granadas. Não sei como estou vivo ainda. Carmen me avisa que meu traje só dispõe de setenta e cinco por cento de energia.

Vou ter que sair daqui na base da força bruta. Agora é a hora de saber do que é feito esse traje...

Perdi a noção do tempo que levei destroçando blocos de concreto e retorcendo ferros. Demorou mas aos poucos fui conseguindo escavar minha saída para a superfície.

Não acredito que sai da merda do buraco. Parece que não vão me encontrar em um sarcófago blindado daqui a dez mil anos. Fica para outra vez.

- Unidade OS-381 funcionante e dispondo de vinte e seis por cento de energia.

- Carmen, diga assim: “quase que a gente se fode, mas não é dessa vez que vamos levar o cacete”.

- Senhor, não entendi o comando. Pode repetir o...

- Carmen, eu vou ter uma conversa séria com o pessoal da programação.

Mal saí dos escombros e visualizo um dos pescoçudos. Ele não me viu. Algo nele me chama a atenção de imediato. Esse é diferente dos demais. O traje que ele usa é maior e mais pesado que o dos outros. Eles estão aperfeiçoando os trajes de combate e isso não é bom.

Não tenho mais munição para a ponto 50 e nem granadas. O fuzil térmico não vai ajudar muito nesse momento, pois é arma de tiro único, se eu errar, até esperar que ela recarregue, eu já beijei a lona. Tomo uma decisão inusitada e bem louca.

Vou sair no braço com esse alienígena. Vamos ver se ele aguenta o tranco.

Uso os retropulsores para saltar até o que restou do teto de um edifício e salto em cima dele. Pego de surpresa ele não consegue usar suas armas em mim. Acho que ele pesa apenas um pouco menos que eu. A briga vai ser boa.

O choque das blindagens faz um barulho estranho e poeira e detritos voam para todo lado. Ficamos um tempo embolado como dois lutadores de jiu-jitsu. A curta distância não dá para ninguém usar as armas.

Ele consegue levantar-se e tenta desesperadamente usar sua arma. Não dou tempo para isso e torno a derrubá-lo. Tenho quase certeza que eles não treinam muito combate corpo a corpo.

Vocês já viram uma montada em luta de vale-tudo? Disparo uma sequência de socos. Toneladas chovem em cima dele. Tenho certeza que o desgraçado está atordoado lá dentro. Ele consegue me empurrar e chega a disparar uma rajada. Deve ser munição perfurante. Sinto o impacto, mas o traje aguenta. Por um segundo achei que ele conseguiria um disparo intermitente, mas imobilizo seu braço armado com meu joelho. Meu traje ainda é mais forte que o dele.

- Carmen, o fuzil térmico. Potência máxima, garota!

Estraguei com a carapaça do infeliz. Um a menos. Esse pescoçudo não vai dizer que viu a bunda dos terráqueos.

Só me restaram seis por cento de energia no traje. Não dá para continuar. Encosto no que restou de uma parede e fico no aguardo. O barulho característico das ponto 50 se mistura com o das explosões.

A ação foi rápida. Escuto as falas de comando dos meus superiores. Tivemos muitas baixas, mas eles tiveram muito mais. O inimigo foge.

Eles vão voltar e estarão mais fortes e mais preparados na próxima vez.

E nós estaremos aqui esperando por eles.

***

Olho para o céu. Ele está belo e límpido, sem uma nuvem sequer. Quem olhasse para esse céu agora, talvez nem atentasse para o fato de que uma batalha acabou de acontecer logo abaixo dele.

A voz inconfundível do sargento Barreira interrompe meus pensamentos.

- Santisteban, agora sim você pode escutar aquele bom e velho rock’n roll.

* Este conto teve a valiosa contribuição do amigo Jeff Silva. É para ele que esta pequena narrativa é dedicada.

** Este trabalho teve como trilha sonora algumas pedradas de ACDC, Led Zeppelin, Iron Maiden e Radiohead. Elas talvez até estivessem na Playlist do personagem do conto.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 22/01/2022
Reeditado em 22/01/2022
Código do texto: T7435195
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