“As necessidades de muitos sobrepõe as necessidades de poucos” (S. T. Spock)

Pouca coisa me lembro de antes, alguns escritos, fatos esparsos comentados pelos anciões. Eu era criança e tudo me parecia normal, as lutas, as mortes. Nem sei por que continuo registrando. Não há ninguém para ler. Em paz realmente nunca estivemos. Eu diria que estávamos harmoniosamente equilibrados. Nosso planeta sempre foi como um organismo vivo, às vezes dava uma chacoalhada para se livrar de alguns parasitas e depois entrava novamente em um período de repouso. Passamos muitas guerras. As três mundiais foram as piores. A terceira dizimou quase um terço da população mundial. Mas pouca mudança na geopolítica do poder. Continuaram os três coligações de influência. O bloco comunista controlado pela China e Coréia, os “neutros” da Europa e o bloco capitalista das Américas liderado pelos EUA. Nem cinquenta anos haviam passados da última guerra mundial e o planeta uniu-se de uma forma nunca vista para defender-se do ataque dos Arcturianos. Por dez anos mantivemos contato e ansiosa espera de sua chegada. As naves prateadas, finas e elegantes desceram na desértica e inóspita taiga siberiana. Trinta naves aterrissaram enquanto as três naves mães permaneceram em órbita. Há três anos, assim que nos informaram a localização de sua chegada, uma cidade foi construída no local. Lá estavam abrigadas as maiores mentes do mundo e representantes de todos os países.

Parecia que faríamos aliança com um poderoso grupo extraterrestre. Até que puseram a pata em nosso planeta. Literalmente a pata. Queratinosa e peluda de inseto. Lembravam vagamente uma barata terrestre, porém com dois metros e meio de altura. A aversão foi imediata e recíproca. A invasão começou naquele momento. Insectoides, com uma poderosa carapaça eram infinitamente mais fortes que os humanos, e a vitória pareciam absoluta mesmo antes de começarem as batalhas. Invadiam cidades em ondas indefensáveis. No início a Asia e a Europa, continuaram sem resistência por todo o mundo. Ficamos sem luz, sem comunicação. Viramos alimento, gado dos invasores. Mas eles subestimaram a raça humana. Quando tudo parecia perdido, três bombas termonucleares, que não deveriam existir pois eram proibidas pela associação das nações, mas surpreendentemente conservadas e funcionais, saíram de seus nichos para a estratosfera onde derreteram as naves insectoides. Na terra, as baratas sobreviventes foram perseguidas com uma crueldade nunca vista em nenhuma batalha humana. Foram trucidadas, queimadas, desmembradas. Por fim refugiaram-se em sua sede, em bunkers com quilômetros de profundidade, na gelada Sibéria. Mas a guerra já estava definida, uma última bomba termonuclear foi projetada para devastar as entranhas daquele ninho de alienígenas. Minutos antes da bomba explodir liberando a maior quantidade de energia jamais vista no planeta, um pequeno míssil saiu do ninho das baratas explodindo na superfície do planeta. Estranhamente nada destruiu. Apenas espalhou na superfície terrestre um fungo, mais tarde chamado “cockr1”.

De início ninguém se preocupou com isso, apenas alguns cientistas começaram a estudar o micro-organismo. A festa mundial pela eliminação dos inimigos durou semanas. A vida estava voltando ao normal quando os cientistas trouxeram a primeira conclusão: o fungo é resistente a quase tudo e por ser muito leve, passará a viver flutuando em nossa atmosfera indefinidamente. Parece que a inalação produz apenas uma alergia na pele com vermelhidão e leve comichão. Quando dessa declaração , milhares de pessoas já haviam passado por essa irritação na pele. Eu mesmo tive uma pequena mancha avermelhada com uma coceira intensa em meu braço direito. Como a civilização quase foi destruída, também não havia mais remédios. Me lembro que minha mãe tratou com uma pasta que fazia com cinzas, que acabou funcionando pois logo a mancha sumiu.

Com o passar do tempo foram evidenciando sequelas, em algumas pessoas a área contaminada tornou-se queratinosa como a carapaça das baratas. A maior parte regredia desaparecendo em semanas, mas algumas poucas evoluíam tornando o membro atingido idêntico a pata de um inseto. Mesmo com a amputação do membro, a doença evoluía, chegando ao seu final com a transformação total do humano em inseto. Aparentemente ocorria uma corrupção irreversível da sequência de DNA, ao associar-se com o DNA alienígena do fungo. Nessa fase nada mais restava a fazer além da eutanásia. Com a transformação total ocorria a morte do pobre infeliz com a liberação de milhões de novos esporos contaminantes.

A população agora apavorada com a possibilidade da transformação, trancou-se em casa. Só se aventuravam a sair usando máscara antigás, que no fundo pouco protegiam do fungo, pois esse, diferente dos fungos terrestres, tinham tamanho variando entre 0,1 e 0,3 nanômetros, bem menores que um vírus terrestre. Adotou-se uma regra que pessoas usariam trajes de praia, a maior parte do corpo a mostra para provar que não estava contaminada. Mesmo assim ainda eram escondidas áreas que frequentemente eram afetadas, como glúteos e seios. Pessoas vestidas eram impedidas de entrar em áreas públicas. Os mais radicais andavam totalmente nus, apenas de máscara, e exigiam que todos se despissem também. Instalou-se um governo mundial emergencial, a tríplice aliança, um triunvirato formado pelos Estados Unidos da América, China e União europeia. O maior pavor era a contaminação, a incerteza do que aconteceria. Aproveitando a fragilidade e o medo os radicais governamentais instituíram o primeiro Ato conjunto, o Ato 1: reclusão imediata e compulsória dos contaminados. O que aconteceria com os detidos, ninguém sabia. O governo informava que era um período de quarentena e que os contaminados, após o prazo seriam liberados em áreas isolada pois ainda podiam transmitir o fungo. A população estava dividida, parte aliviada com as medidas tomadas e parte revoltada com a reclusão de entes queridos.

Mas para o desespero da humanidade, a doença não acabava, pois o cockr1 continuava na atmosfera. E as reinfecções eram frequentes e muitas pessoas que passaram por uma irritação leve, agora recebiam a doença em sua forma mais intensa, com a forma transmutadora. Pessoas eram incitadas a denunciar todos suspeitos, e o faziam por uma simples coceira . Houve grande revolta quando se descobriu que os campos de reclusão eram na verdade campos de extermínio. A justificativa do governo que o sacrifício de poucos era justificado pelo bem comum, nunca convenceu a todos. Apesar da resistência, grupos paramilitares agiam com apoio velado do governo, chegando mesmo a atos de extermínio de famílias suspeitas. Seguiu-se um período de barbárie. Fugimos, eu, meu pai e minha mãe para o interior, onde quase não havia milicia. A violência recrudesceu nas capitais e grandes cidades de todo mundo. As populações revoltaram-se contra seus tirânicos governos. As milicias agora matavam até simples suspeitos, “expurgavam” era o termo oficial. Os governantes permaneciam trancados em castelos ou bunkers, fortemente armados e já não tentavam mais convencer o povo que suas medidas eram pelo bem comum. Contudo até mesmo eles começaram a sofrer com a falta de alimentos. A morte veio de inúmeras formas, fome, doenças, assassinatos. Os que se afastaram dos grandes centros tiveram uma sobrevida maior. A última declaração do governo central ecoava repetida e incessantemente nas rádios: “As necessidades de muitos sobrepõe as necessidades de poucos. Vencemos os alienígenas e a doença”

Não havia ninguém para desligar.

Nilo Paraná
Enviado por Nilo Paraná em 31/01/2022
Reeditado em 31/01/2022
Código do texto: T7441927
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