Um disparo certeiro.
Tiro justo, em cheio.
O amor morreu à queima-roupa.
O amor morreu à queima-roupa.

 

À Queima-Roupa

Vanessa Krongold

 

 

 

 

 

 

 

 

 

- Sim, eu entendo. Sim senhora, estarei aí o mais rápido possível.

 

- Digo para o fino telefone colado ao meu rosto.

 

Do outro lado da sala branca, Melina me observa calada e entende qual é a situação apenas baseada nas palavras e no padrão que uso. É sempre difícil para uma militar escapar delas. Ela então se aproxima.

 

- Não imaginei que teria de voltar tão cedo. - Diz ela enquanto toca meu braço esquerdo. Sua pele macia é um afago.

 

- Eu também.

 

- Quanto tempo vai ficar fora?

 

- Ainda não sei. Você sabe como são essas coisas.

 

Seus olhos descontentes parecem gritar de raiva no espaço silencioso entre nós duas.

 

- Sabe que fico preocupada.

 

- Claro. Você me ama.

 

Meu sorriso miúdo tenta quebrar de alguma maneira o clima ruim, mas sou parada pelo muro que é o olhar tenso de Melina. Missão fracassada.

 

- Me desculpe, mas eu preciso ir.

 

- Tudo bem. Eu entendo.

 

Eu a beijo com carinho e vou até o quanto de nossa pequena Bella. Ela está assistindo desenhos, soterrada no meio de uma bagunça multicolorida de pelúcias e blocos de montar. Ela corre em minha direção assim que me vê entrar.

 

- Mãe Sofia! - Grita ela, com os bracinhos abertos.

 

Num abraço apertado eu a levanto e prendo num beijo demorado. Sua pele é da cor de chocolate de Melina e os olhos são azuis como os meus. Ela pergunta onde vou. Respondo que tenho de ir trabalhar. Ela pergunta se vou pegar os monstros feios fujões. Eu aceno com a cabeça e ela arregala os olhinhos simulando espanto.

 

- Mas não se preocupe, sua mãe é uma heroína.

 

- Cuidado com os monstros mamãe.

 

- Eu vou ter meu amor.

 

Eu a coloco no chão. Ela então estende a mão e me dá algo. É uma de suas pelúcias. Uma pequena boneca na verdade.

 

- Ela vai cuidar de você, tá?

 

- Tá certo meu bem. A mamãe te ama.

 

 

 ...

 

 

Depois de meia hora estou em meu carro a caminho de minha antiga base nos arredores da cidade. Uma de minhas antigas comandantes me pediu um favor, acompanhar algumas novatas numa missão de caçada real. É algo mais do que necessário para nossa nova geração de guerreiras. Durante algum tempo o ganho de experiência era feito através de neuro-simuladores de última geração, o que mostrou sérios problemas de adaptação e improvisação no campo de batalha real, obrigando o alto comando ensinar do jeito antigo.

 

A parte complicada é ter veteranas como eu à disposição para treiná-las. A maioria das guerreiras da minha geração já está aposentada e com uma relativamente boa pensão hoje em dia. No entanto, as mais leais ao matriarcado geralmente vão para o realistamento atrás de alguma ação, zerando suas insígnias e combatendo como amazona rasa para galgar novamente a carreira.  Já faz sete anos que me afastei das forças de defesa do matriarcado, desde então tenho prestado os meus serviços de consultoria para a iniciativa privada. É como dizem, o verdadeiro dinheiro está lá. Mesmo assim estou aqui, fazendo uma espécie de favor remunerado à minha ex-comandante, a Major Lian. É ela que me recebe assim que entro na base.

 

- Como vai a minha pupila? - Ela diz com um grande sorriso. É espantoso vê-la tão jovem, mais até do que da última vez que estivemos juntas.

 

- Bem. Talvez não tanto quanto a senhora.

 

- Para com isso, você não precisa me chamar assim, já faz muito tempo.

 

- É verdade, e pelo que estou vendo talvez você quem deva me chamar disso. -  ela ri.

 

Lian entrou cedo para as forças de defesa com seus onze anos, e agora, com sessenta e cinco não aparenta ter mais que dezoito.

 

- Sim, os nano-cosméticos estão cada vez melhores. Daqui a pouco vou virar um bebê.

 

- Talvez.

 

- Vamos entrar, temos muito que conversar.

 

 

...

 

 

- Antes de mais nada, eu agradeço por aceitar esse convite urgente. Como sabe não temos tantas veteranas dispostas a treinar novas classes.

 

- Eu imagino. Por isso cobro tão caro. 

 

Ambas rimos por um momento.

 

- Mesmo se fosse dez vezes mais caro eu ainda te chamaria. Você foi uma das melhores.

 

- Pensei que ainda fosse. 

 

- Isso nós vamos ver. - Ela diz com um sorriso afiado como sempre.

 

Entramos então em sua velha sala. Quase tudo está o mesmo, excluindo uma coisa ali e aqui. É quase como entrar num museu militar bem cuidado. Sob a mesa no centro do cômodo estão as holo-fotos de Duna e Kali. São as mesmas fotos de quase uma década, assim como a mesma medalha sobre o acrílico luminoso com a imagem de Duna em animação perpétua. Duna foi uma grande heroína nas últimas duas guerras de extermínio, mas não viveu para se orgulhar de ser uma das únicas possuidoras da medalha de Honra Suprema do matriarcado. 

 

- Como anda Kali? - pergunto.

 

- Ainda lecionando na Europa. - ela parece um tanto desapontada.

 

- Não fala como se gostasse disso.

 

- Eu sei que precisamos de pessoal qualificado para ensinar as jovens moças, Bone.

 

- Mas…

 

- Bone..

 

- Mas…

 

- Olha, nossa família está inserida por gerações dentro das forças de defesa. A própria Kali esteve presente em grandes ações de combate e se destacou na maioria delas, mesmo assim decidiu deixar de servir para ser orientadora civil. Isso tem um peso negativo para nossa tradição, não acha?

 

- Talvez ela tenha pensado na pequena Glória, em ficar mais tempo com ela.

 

- Você também pensa na Bella, mesmo assim está aqui.   

 

- Sim, estou aqui por ela e pela Melina.

 

- Todas nós estamos aqui por alguém.  

 

Lian parece pensativa enquanto fala. Ela então puxa a holo-foto junto da medalha para si.

 

- Minha pequena Duna lutou sem misericórdia contra os inimigos dessa nação com todas as forças que tinha. Saber disso atenuou meu luto e me deu forças para voltar a viver. Ela deu a vida sem hesitar para que o jugo dos pais da guerra não voltasse a cobrir nosso futuro. Esse é o futuro que sua filha, minha filha e neta vão desfrutar, por isso mesmo a decisão de Kali é soberana, mesmo que contra minha vontade. Vivemos no tempo da liberdade Bone, e é por isso que não podemos parar de lutar.    

 

- Você tem razão Lian, e também sinto saudade da Duna.

 

- Eu também, mas a melhor maneira de honrá-la é lutar como ela lutou, o que nos leva ao próximo assunto, sua  missão.

 

- Pode falar, estou ouvindo. 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Jeff Silva
Enviado por Jeff Silva em 28/02/2022
Reeditado em 03/12/2022
Código do texto: T7462325
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