Tempo suspenso

O mistério dos milênios perdidos enquanto hibernávamos na "Fisaga" começou a ser levantado quando Ana Perelini, uma técnica de suporte em tecnologia da informação, concluiu um estudo no sistema de navegação automático da nave. Mesmo sem o apoio do alto oficialato, que parecia querer rotular a denúncia de Viliamu Naea como fantasiosa (para não dizer conspiratória), a informação de que havíamos chegado ao nosso objetivo no sistema Losi com algumas dezenas de milhares de anos de atraso, começou a circular pela tripulação. Ana procurou a Viliamu e a mim, dizendo ter novidades.

- Houve um incidente por volta do ano 140 após a partida, - relatou - que afetou nossa trajetória. O que realmente aconteceu é difícil reconstituir, visto que há uma falha nos registros do computador de navegação, como se a nave houvesse passado próximo a um campo magnético poderoso.

- Mas se fomos submetidos a um pulso eletromagnético, isso derrubaria inclusive os sistemas de suporte de vida - avaliei.

- Tem razão - assentiu Ana. - Mas logo em seguida, a energia foi reinicializada antes que todos nós, que estávamos em suspensão criogênica, sofrêssemos algum dano permanente.

Viliamu encarou-a incrédulo.

- Algo desligou todos os nossos sistemas, inclusive os de emergência, e depois eles se religaram sozinhos? Como?

- Me fiz a mesma pergunta, e não cheguei à nenhuma conclusão lógica - admitiu Ana. - Exceto se alguém quisesse que chegássemos propositalmente atrasados no destino. Mas por que 100 mil anos, e não apenas 100, por exemplo?

- Vejo um outro complicador nesse raciocínio - redarguiu Viliamu. - Se tivéssemos apenas feito um longo desvio, os sistemas de bordo teriam que registrar a trajetória e a passagem correta do tempo, mas eles informam que chegamos exatamente no prazo previsto. Ou teriam sido programados para suspender a contagem e retomar quando estivéssemos a 40 anos de distância de Losi?

- Isso é altamente improvável, você sabe - refutou Ana. - Também não haveria como disfarçar cem mil anos de envelhecimento da estrutura da nave. E mesmo com um reator de fusão sobressalente, o combustível já teria acabado há dezenas de milhares de anos. Todos nós estaríamos mortos!

Viliamu coçou a cabeça, exasperado.

- Ou seja, os dados de que dispomos reforçam a tese do comando de que passamos tão somente os 200 anos previstos em hibernação!

- E de que não haveria nenhuma razão para nos preocuparmos. Mas você conferiu as posições relativas das estrelas e elas são consistentes com um lapso temporal de 100 milênios - ponderei.

Viliamu apenas fez um gesto de cabeça, expressão aturdida. Ana prosseguiu sua exposição:

- Bom, não é minha área de conhecimento, mas levou em conta a possibilidade de que tenhamos sido capturados pelo disco de acreção de um buraco negro?

Viliamu e eu nos entreolhamos.

- Isso poderia explicar a distorção temporal e o deslocamento das estrelas - avaliei.

- Posso considerar a hipótese de que tenhamos sido tirados da rota por um buraco negro itinerante, que nos manteve presos por 100 mil anos, - redarguiu Viliamu - mas isso ainda não explica como nos livramos dele e voltamos ao curso.

- Novamente, essa não é minha área, - desculpou-se a técnica - mas já que entramos no campo das especulações, vou acrescentar mais uma: não estávamos sozinhos no disco de acreção daquele hipotético buraco negro. Alguém teve bastante tempo para nos estudar e depois nos recolocar no rumo certo.

- Começo a entender as razões que o comandante Taalitua tem para não levar a sua descoberta adiante - comentei para Viliamu. - O cenário que Ana descreve é bastante assustador.

- Mas faz bastante sentido - admitiu Viliamu. - Temos algum meio de comprovar?

- As respostas talvez estejam no próprio sistema Losi - sugeriu Ana. - Cem mil anos é um tempo muito longo, e outras naves colonizadoras devem ter aportado aqui depois que... bem, que nós desaparecemos. É possível que encontremos uma antiga civilização no planeta Samaria, construída por nossos descendentes.

A observação fazia sentido. E não precisaríamos esperar muito para comprovar sua exatidão.

- [Continua]

- [24-04-2022]