ETERNO RENASCER

ETERNO RENASCER

Uma fumaça branca sai do nicho criogênico ocupado pelo capitão da expedição Marcus Andropov. O descongelamento é lento, o computador tem o cuidado de só prosseguir no processo após analisar se as funções vitais de Andropov estão efetivamente assumindo o corpo do homem.

Cerca de 30 minutos depois Andropov se levanta, com movimentos cambaleantes se dirige até uma das cabines de higienização onde acaba por vomitar o líquido verde que circulou em seu organismo durante o período de congelamento. Aos poucos o romeno recupera o controle de seu ser. O processo todo acaba por durar uma hora e meia, após o que o homem, até então nu, abre um armário onde com alguma boa vontade pode-se ler, através de uma grossa camada de poeira, seu nome escrito em letras vermelhas na porta e tira de lá um uniforme de campanha simples, enfim higienizado e vestido ele se dirige para a sala do capitão. Local aonde somente ele tem acesso.

- Capitão Andropov, senha 459SKJ34, situação Vermelho Teta. Muito bem Nereu, o que aconteceu?

A IA que responde pelo nome de Nereu faz ouvir sua voz monótona e robotizada, desprovida de qualquer tipo de emoção.

- A Galípoli foi atingida por uma chuva de meteoros. Alguns deques foram atingidos. O maior problema é no sistema de criogenia. Impossível consertar com os recursos de bordo. Dos seis tripulantes, incluindo o capitão, há condições de manter apenas três até o final da viagem.

- Quanto tempo para finalizar viagem ou para contato com algum posto avançado do Império?

- Final da viagem previsto para 18 anos, 10 meses, 28 dias, 9 horas, 35 minutos, 3 segundos. Para contato com o posto imperial mais próximo.

- Um momento Nereu, não precisa ser tão preciso e exato, diga apenas anos e meses.

- 17 anos e 11 meses.

- Há mantimentos para quanto tempo?

- Para todos os membros da tripulação os mantimentos duram 9 meses e 18 dias.

Andropov soca com força o tampo da mesa de trabalho.

- Pelo protocolo V-10 a prioridade deve ser dada ao capitão, seu primeiro-oficial e ao técnico de manutenção mais gabaritado. Demais membros da tripulação não são necessários.

“Não são necessários? O que eu posso esperar de uma máquina?” – Andropov se desespera no meio de seus pensamentos.

- Acorde todos os membros da tripulação.

- Isso não é necessário. Basta...”..”

- Essa é uma ordem direta, cumpra.

Três horas depois.

- ... E é isso, não temos mantimentos para todos, os nichos criogênicos não podem ser consertados. Há três nichos que podem suportar o resto da viagem.

As faces dos membros da tripulação ficam estáticas.

- Bem senhor, e o que decidiu? – Pergunta o Primeiro-Oficial, um africano de nome Bantor, originário da antiga Somália.

- Como pode pedir que eu decida algo Bantor?

- Eu sou representante da empresa senhor, preciso chegar intacto ao destino, caso contrário não haverá pagamento. – Diz com visível irritação Sra. Lauren, uma marciana cuja pele apresenta uma mescla das cores amarela e verde demonstra claramente ter nascido durante o período no qual ainda havia resíduos radiativos no planeta vermelho.

Andropov fica calado, e olha para os outros membros da tripulação: o engenheiro Antônio, vindo da Terra, nascido no Brasil, a técnica em computadores Dolores, também originária da Terra, nascida na Espanha, e por fim o autodenominado técnico em serviços gerais de nome Flapurl, nascido na colônia venusiana, sua pele apresenta tons beges, misturados com pigmentos vermelhos. Nenhum deles fala nada.

- Segundo Nereu o protocolo manda preservar capitão, primeiro-oficial e engenheiro Ele olha com certo sarcasmo para a Sra. Lauren que se considera importante demais para morrer.

- Senhor. – Com alguma timidez Dolores entra na conversa.

- Sim Dolores? – Responde Andropov.

- Não há algum planeta nas imediações no qual possamos nos abastecer de mantimentos?

- Nereu?

- “Planeta mais próximo se localiza a oito anos-luz. Previsão de chegada superior a dois anos. Mantimentos atuais não são suficientes.”

Um silêncio pesado paira sobre a sala de reunião. Cada qual meditando e ponderando, mergulhado em seus próprios pensamentos.

- Aceito sugestões. – Andropov admite não saber ao certo o que fazer.

- Ora senhor, o próprio Nereu já expôs o protocolo. Siga-o. – Antônio expõe sua opinião, afinal a se seguir o protocolo ele seria um daqueles que poderia ser salvo.

- E se sortearmos? – Flapurl dá sua sugestão.

- Tenha paciência Flapurl. Precisamos seguir o protocolo, é simples assim. Desculpe se você não se encontra entre aqueles que serão beneficiados. – Antônio responde com certa presunção.

- O Antônio está certo eu também quero que os escolhidos sejam sorteados, devo lembrar que como representante da empresa, que os contratou, eu tenho esse direito. – Sra. Lauren se adianta a qualquer um e endossa a sugestão de Flapurl.

- Muito bem, vou ponderar sobre isso, agora aproveitem que estão acordados e façam aquilo que bem entenderem, amanhã haverá nova reunião e então lhes passo a minha decisão. Dispensados.

Há uma certa perplexidade no grupo, afinal todos aguardam que a decisão seja tomada na reunião em curso, mas fica patente que o capitão quer ter a primazia da última palavra. Nada o fará mudar de opinião. O grupo se dispersa: Flapurl e Antônio se dirigem para seus camarotes. Dolores vai para a cozinha arrumar algo para comer, Sra. Lauren fica na sala de comando da nave e grava uma mensagem que espera seja um dia entregue a seu marido e filhos. Bantor é o único que permanece na sala de reuniões. Um silêncio pesado paira entre ele e Andropov. O somali fica ali, parado, olhos fixos em algo que somente ele pode ver.

- O que vai decidir Andropov? – Pergunta o africano, usando um tratamento menos formal, algo que a longa amizade entre ele e o capitão permite.

- O que faria no meu lugar? Não sou Deus para decidir quem vive ou morre. E depois as pessoas que permanecerem fora dos nichos irão morrer de fome Bantor. O que vão fazer quando os mantimentos acabarem? É bem provável que se matem e comam uns aos outros.

- Tem certeza que não há como consertar o sistema? Conversou com Antônio sobre isso?

- Não, ainda não. Venha comigo, vamos ver se ele pode fazer algo com aquilo que temos a bordo. Nereu é uma máquina, não tem a capacidade humana de improvisar. Quem sabe ainda não haja uma solução que possa ser implementada.

Duas horas depois.

- Senhor, já analisei toda a extensão dos danos, o que vamos precisar para consertar e o que temos na nave. – Antônio começa a falar devagar e pausadamente.

- E o que pode ser feito Antônio – Bantor olha para o engenheiro-chefe com seus olhos enormes.

- Nereu tem razão, não temos como consertar o sistema. Três nichos criogênicos podem ser mantidos. Os outros três não vão funcionar.

- Obrigado Antônio, agora se me dão licença, tenho que pensar e brincar de Deus. – Andropov sai cabisbaixo e triste da presença de Bantor e Antônio.

Naquela noite Dolores fez comida para que todos pudessem jantar. O ambiente na sala de refeições, diferente do que se poderia pensar, foi comedido e ninguém mencionou o problema que estavam enfrentando. Como se fosse um acordo tácito não firmado entre os membros da tripulação e seu capitão.

Findo o jantar cada qual lançou os restos de comida nos trituradores, assim como os próprios pratos e talheres usados. Em silêncio se levantaram e se dirigiram a seus aposentos particulares. Cada qual com seus pensamentos, cada qual com suas preocupações. Todo o peso da decisão recaindo sobre Andropov.

Dia seguinte sala de reuniões.

A ausência da Sra. Lauren é sentida, faltando apenas ela para que Andropov possa dar início à reunião.

- “Constatada abertura do arsenal B-23. Senha utilizada da tripulante Lauren Smith.”

Ela entra, olhos alucinados, porta uma pistola laser em cada uma das mãos.

- Eu vou sobreviver, nem que tenha de matar todos vocês. – Os olhos denunciam que Lauren está louca ou a beira disso.

- Calma Lauren, vamos conversar, largue essas pistolas que nós – no entanto Bantor não consegue terminar sua frase, um fino raio saí de uma das pistolas portadas por Lauren e atinge o africano no peito, o africano desaba da cadeira, já morto antes de atingir o chão.

Por uma fração de segundos todos ficam estupefatos, mas Andropov é rápido, ele se lança contra a marciana, desfere violento soco na mão esquerda de Lauren, jogando para longe a pistola laser, mas a marciana ainda dispara mais uma vez, desta vez a pobre Dolores é atingida, e tal qual Bantor, cai morta.

A disputa entre Andropov e Lauren continua, mas enfim o capitão consegue tomar da marciana a pistola restante. A mulher não se dá por vencida e ataca novamente, na luta um tiro é disparado, Lauren fica parada, olhos fixos em algo que somente ela parece ver, um baque surdo, e a marciana completa um trio de mortos. Andropov, Flapurl e Antônio trocam olhares mudos. Não há o que falar, a marciana resolveu o problema de Andropov.

Os corpos são colocados envoltos em uma manta protetora e lançados ao espaço, logo os três sobreviventes voltam para seus nichos criogênicos. Mas Andropov programa o sistema para que seja acordado todo ano naquela data para que possa prestar as homenagens aos mortos. Um eterno e triste renascer.