ABDUÇÃO II

ABDUÇÃO II 2

Romance de Ficção. 2

CAPÍTULO I 3

CAPÍTULO II 20

CAPÍTULO III 37

CAPÍTULO IV. 51

CAPÍTULO V. 71

CAPÍTULO VI 89

ABDUÇÃO II

Romance de Ficção

Otrebor Ozodrac

CAPÍTULO I

UM VELHO SENIL

Ano 2000 na cidade de Rio Grande.

Os olhos eram fundos, cinza era a cor, moviam-se com lentidão e tinham uma expressão dura, úmida e fria. A cara era magra, de uma palidez cadavérica, com uma barba branca como neve, rala na face e concentrada no queixo. Seu andar era lento, arrastando os chinelos, já gastos nos calcanhares pelo atrito no piso. Suas pernas cambotas se moviam com cautela e lentidão, a coluna curvada dava-lhe um aspecto de quem está prestes a cair de cara no solo. Seus braços estendidos faziam lembrar um símio ao caminhar. Esta é a figura atual de Felintro Blanco, aos seus oitenta e nove anos.

Oh! Quão bom seria se, em toda a sua vida, tivesse a consciência que tinha hoje.

Quantos desenganos, quanto tempo perdido, quantas foram as desilusões de sua vida, que talvez não tivessem sido vividas na mais clara concepção da palavra, apenas tinha contemplado o tempo passar.

Se antes soubesse, talvez, muitas coisas tivessem mudado e muitos erros evitados. No universo de sua morada, passava da cozinha para a sala, e da sala para o quarto. Hora de ouvir o noticiário no rádio, hora de ver, através da janela, as operárias que saíam da fábrica de tecidos, a gurizada que brincava na calçada, apreciar os carros que passavam pela rua. Meio-dia. Hoje, tinha um pastel que sobrara do dia anterior, e no refrigerador, um refrigerante, os quais lhe serviriam como a sua principal refeição do dia. Amanhã a faxineira viria no período da manhã, faria as compras para a semana e limparia a casa. Tirando a dor na coluna e a incontinência urinária, que impregnava tudo de um cheiro forte de urina, poderia dizer que tudo estava dentro da normalidade. Comera a parca refeição e estava na hora de tirar a cesta. Levanta e vê que a urina já encharcara a fralda geriátrica. Teria que trocá-la antes da soneca. Dirige-se ao quarto de dormir, pega a fralda do pacote, entra no espaço entre a cama e a parede, encosta os calcanhares na parede e larga o corpo sobre a cama, ficando na posição de cúbito braquial. Usando ambas as mãos, baixa a calças do pijama, retira a fralda, enrola-a e a larga sobre um plástico que está sobre a cama. Pega a seca, introduz entre as pernas e a fecha na parte frontal da cintura. Levanta a calças e, finalmente, a troca está feita. Com o auxílio de ambas as mãos e, empurrando com os calcanhares, que estão calçados na parede, desliza o corpo para cima da cama e se levanta. Pega a fralda molhada e a coloca no saco plástico, fechando-o. Agora pode deitar e tirar a merecida soneca.

No dia seguinte, às nove horas, a diarista chega, e ele já a estava esperando, na janela da sala, local de onde costuma apreciar os movimentos dos transeuntes. Antes dela bater na porta, ele já a está esperando com a porta aberta.

— Bom-dia, seu Felintro, como tem passado?

— Bom-dia, Hortência! Vou como Deus quer, minha cara amiga, como Deus quer.

— Já trocou a fralda hoje?

— Sim, fiz isso antes de levantar, ela está no tanque para você jogar fora.

— Bem, então vou fazer as compras para a semana.

— Aqui tem o dinheiro.

— Alguma coisa a mais do que o de sempre?

— Não, nada a acrescentar.

Como de costume, no único dia da semana que a diarista vinha, ele comia comida caseira, preparada por ela, que também almoçou com ele naquele dia.

A serviçal, uma morena clara, obesa, pesando mais de cem quilos, aos seus vinte e três anos, ainda era solteira.

No almoço, eles conversavam e ela dizia:

— Seu Felintro, o senhor não tem parentes, filhos, por exemplo. Eu já trabalho há mais de um ano para o senhor e nunca vi ninguém lhe visitar.

— Sim, já fui casado, tive filhos e lhe asseguro que amei muito a minha mulher.

— Acredito! O senhor não pode nem com os fundilhos e pede as minhas calcinhas para cheirar.

Ele deu uma risada e disse:

— Minha cara amiga, o olfato é tudo o que me restou com o passar dos anos. O cheiro do seu sexo faz bem ao meu cérebro, meus parcos hormônios se ativam e eu tenho uma tênue sensação de virilidade.

— Mas, conte-me, você tem um namorado?

— Tenho sim, mas Deus me livre se ele descobrir que o senhor cheira as minhas calcinhas.

— Só se você contar, eu é que não vou contar, nem sequer o conheço.

— Mas, me conte, vocês já fazem amor?

— Não, seu Felintro, eu sou moça virgem. Eu deixo o senhor cheirar as minhas calcinhas por piedade e, é claro, pelo dinheiro que o senhor me dá. Sem contar a promessa que o senhor me fez de me deixar um apartamento de herança. O senhor é bom para mim e eu sou boa para o senhor.

A doméstica vai e ele fica na cadeira de balanço. Sabe que no dia seguinte virá a enfermeira para lhe aplicar injeção e medir seus sinais vitais.

Antes da enfermeira bater à porta, ele a abre e diz:

— Bom-dia, Rita! Como tem passado?

— Bom-dia, seu Felintro! Hoje estou de bom humor, meu marido, aquele bêbado e jogador, está farreando por aí. Não sei nem onde.

— Eu já lhe disse, larga desse marido, homem que não serve para nada, só está te incomodando. Mas, deixe isso para lá. Vamos ao trabalho.

A enfermeira, uma mocetona alta e forte, de origem alemã, tinha cabelos louros encaracolados, rosto corado, coxas rosadas, lábios sempre bem pintados, e seu corpo exalava um cheiro agradável de florais.

Felintro, sentado no sofá, estende o braço para ser medida a pressão. Ela abre e encolhe a manga da camisa, posiciona o aparelho e aplica pressão na bomba.

— A pressão está controlada. Retira o termômetro, examina contra a luz e diz:

— A temperatura está boa também.

Enquanto a enfermeira faz o seu trabalho, Felintro vai se aproximando cada vez mais da moça, aspira profundamente, para captar o seu cheiro, e diz:

— Cheiro de mulher, limpa e saudável, isso é um bálsamo para a minha existência. A propósito, posso lhe fazer uma proposta indecorosa?

— Esteja à vontade, seu Felintro.

— Mas, prometa que não se ofenderá em hipótese alguma.

Ela dá um sorriso e pensa: “Eu sei que ele não da mais no couro, pode fazer qualquer proposta.”

— Faça, prometo que não me ofenderei.

— Quanto quer que eu lhe pague, para, quando sair, deixar a sua calcinha comigo, a que usou todo o dia.

A moça corou e conseguiu balbuciar algumas palavras.

— Mas, o que o senhor fará com a minha calcinha?

— Nada de mais, apenas me servirá de “souvenir”, que fará que eu lembre de você quando não estiver presente. Não precisa me responder agora, poderá fazê-lo na próxima vinda. Apenas prometa que pensará com carinho na minha proposta.

Dito isso, a enfermeira ficou pensando: “Apenas uma calcinha suja, o que ele poderá fazer com a minha calcinha, nada de mais, mas vou fazer-me de difícil, assim ficarei mais valorizada.”

— Prometo pensar no assunto e lhe dar uma resposta na próxima semana.

Na semana seguinte, ela aceitou a proposta, lhe dizendo:

- Tá certo, eu deixo a minha calcinha, mas o senhor terá que me pagar um bônus no meu trabalho.

— E de quanto deve ser esse bônus?

— Digamos, um acréscimo de 20% sobre o que me paga.

— Fechado. E semanalmente poderá deixar uma e levar a outra que ficou da semana passada.

— Mas tem uma condição, quero saber o que fará com as minhas calcinhas?

— Somente lhe direi se prometer não revelar a ninguém o que vou lhe contar.

— Prometo, dou-lhe a minha palavra de honra.

— Pois bem, eu quero sentir o cheiro do seu sexo. Este é o derradeiro modo de aplacar o único e refinado prazer que uma mulher pode me oferecer, nesta fase da minha vida.

Rita vai deixando-o sozinho em sua cadeira de balanço, encolhe a perna direita e coloca o pé sob a coxa esquerda, uma pequena embalada e os seus pensamentos voam.

Era o verão do ano de 1950, contava ele o seu quadragésimo aniversário.

Ele entra no *Night Clube Mangacha, o leão de chácara o cumprimenta com uma mesura e lhe diz:

— Boa-noite, Senhor Felintro, a noite hoje estará animada, tem gente nova por aí. O senhor vai gostar.

*Nota do autor:

A cidade de Rio Grande é uma cidade portuária, que conta com um grande porto internacional, sendo um escoadouro dos estados do sul. A cidade se caracteriza por possuir um grande número de cabarés, que são os pontos de encontro dos embarcadiços. A Boate Mangacha, por longos anos, foi o ponto alto da vida noturna da cidade. Famosa por suas mulheres bonitas e shows espetaculares e luxuosos, o porto de Rio Grande era a parada quase que obrigatória para artistas de passagem para Buenos Aires ou Montevidéu. Ficava ali na Avenida Silva Paes, a meio caminho para o Porto novo e de frente para a majestosa estátua do Imperial Marinheiro Marcílio Dias.

Foto da Boate Mangacha.

— Obrigado, senhor Lídio, tenho certeza de que vou apreciar. Ele alcança o chapéu e ajeita a gravata, passando o pente nos cabelos e seguindo pelo corredor até chegar à entrada do salão de festas. Na entrada, já lhe esperava a proprietária da casa, que diz:

— Senhor Felintro! Seja bem-vindo à minha humilde casa de shows.

— Boa-noite, minha querida amiga. — respondeu, pegando a sua mão enluvada e beijando-a. A mulher enfia-lhe o braço e o conduz até uma das mesas.

A sala estava cheia de homens bizarros e esquisitos e de mulheres quase nuas, em seus trajes audaciosos de damas da noite. Havia rostos de homens suspeitos sobre as uníssonas e negras vestes masculinas, próprias para a noite. Havia, também marujos russos, japoneses, franceses, pertencentes aos navios que, ancorados, estavam no porto de Rio Grande. Enfim, condensavam-se ali homens havidos de diversão com mulheres impuras.

A mulher lhe diz:

— Vou mandar uma recém-chegada do Rio de Janeiro, garanto-lhe que é de primeira linha. Vai lhe agradar muitíssimo.

— Pois que venha, estou ansioso para conhecê-la.

A dama se afasta e logo se aproxima o garçom, que lhe diz:

— Boa-noite doutor Felintro! O de sempre?

— Sim, champanhe francês.

Logo em seguida, chega uma moça esbelta e de singular beleza, pede licença e se apresenta:

— Boa-noite, senhor Felintro! Eu me chamo Angélica e posso lhe assegurar que é meu nome verdadeiro como consta no registro de nascimento.

O homem se levanta, faz uma mesura, pega a mão da dama, que estendida estava, lhe aplica um ósculo e diz:

— Encantado! Vejo que madame Lígia lhe fez justiça. És realmente uma encantadora moça. Sente-se, por favor. Aceita champanhe?

Até a meia-noite, dançaram e conversaram.

No palco, surgiram três dançarinas. Vinham de cabelos soltos, blusas brancas, que lhes cobriam os ombros, deixando os seios livres, oscilantes. Uma faixa roxa caía amarrada à cintura, cujas pontas pendiam na frente e nos fundos, descobrindo as roliças coxas rosadas.

As bailadeiras começaram as suas danças. Tinham as pernas nuas. Volteavam, saltavam, reuniam-se num grupo, embaralhavam os seus membros, soltavam beijos estalados, os quais eram dirigidos aos convivas.

Os cabelos eram louros, esplandeciam à luz do holofote que as iluminava. As coxas esgueiravam-se com o cintilar dos finos pelos que as cobriam. Quando erguiam, em seu bailado, as pernas, o sexo aparecia ornado por cabelos louros cintilantes, que ficavam expostos e eram devorados pelos olhos atentos dos espectadores.

As luzes foram diminuindo paulatinamente, o holofote fora redirecionado para o bar. As bailarinas sumiram por trás da cortina. Os garçons intensificaram o seu trabalho, mais uma garrafa de champanhe fora trazida para Felintro, que a recebeu de bom grado.

No palco, estava a orquestra que se apresentava naquela noite: três saxofones, três pistões de vara e duas guitarras. Os músicos trajavam um terno e chapéu. O terno tinha duas cores, no lado esquerdo, a roupa era branca e no direito, era preta. Eles tocavam e, à medida que tocavam, trocavam de posição, e, para quem estava lhes observando, em um momento estavam de preto, no outro, de branco. O cantor, todo vestido de preto, executava o mais variado repertório das músicas que eram sucessos no momento. Na pista de dança, os pares bailavam, e nas mesas, a bebida era consumida tanto pelos frequentadores como pelas mulheres.

Algum tempo depois, as luzes voltam a brilhar no palco, o canhão de iluminação foca a entrada da cortina. A música flamenca, precedida por rufares de tambores, por si, anunciava o espetáculo, esperado por todos. As meretrizes, nesse momento, se calavam e prestavam atenção tanto quanto os homens.

Surge por detrás da cortina vermelha uma mulher finamente vestida. Adentra no palco a terceira e última atração da noite. Ela tinha o tipo característico da mulher fatal. Magra, porém de seios bem desenvolvidos, cabelos de um preto que chegava a brilhar quando a luz neles incidia. Cara moderadamente maquilada, o que lhe assegurava um ar provocante, boca formada por lábios finos, que induzia nos espectadores o desejo de sugá-los, nariz adunco, que contrastava com a sua cara comprida. As suas pernas longas e bem torneadas despertavam loucos desejos de mordê-las. A música, em alto volume, era compassada pela encantadora figura no palco.

Enquanto o show prosseguia, pouco a pouco os seus movimentos de bailarina se tornavam mais rápidos, até que, por último, num espasmo, as suas roupas foram rasgadas, os seios foram expostos, e, embora de médio tamanho, mostraram-se firmes e tremulavam com os movimentos compassados da dança. O ventre e o sexo foram descobertos totalmente, por mais um movimento que a despojou da saia longa e transparente.

Final da música e também da apresentação. A luz focal fora direcionada para iluminar o bar. Mais uma vez os, garçons se movimentaram abastecendo as mesas com bebidas.

A garota que estava com Felintro levantou, e o mesmo gesto fez o cavalheiro. A moça lhe diz:

— Com licença, devo retocar a minha maquilagem.

— Tem toda, tem toda.

Alguns minutos depois chega a matrona da casa, acompanhada da bailarina que acabara de se apresentar, e lhe diz:

— Senhor Felintro, quero lhe apresentar a Juliana. Juliana, o senhor Felintro.

— Encantado, adorei o seu número, aliás, me pareceu bastante sensual e espontâneo.

— Bondade sua, senhor Felintro.

— Mas vamos sentar.

Ao lado da mesa de Felintro está um embarcadiço norueguês, com duas mulheres. A mesa já estava cheia de garrafas de cerveja vazias. De repente, um homem se aproxima e tira uma das mulheres para dançar, pegando-a pelo braço. A mulher levantou-se, momento em que o norueguês pegou-a pelo outro braço e, em um português mal pronunciado, lhe diz:

— Estar comigo, não dever sair com outro. A mulher sacudiu o braço para que ele a largasse. O homem levantou, estendeu o braço e a mão alcançou o rosto da mulher. Um profundo corte de navalha foi aberto do olho direito ao queixo, ficando por alguns instantes o branco dos dentes aparecendo pela fenda, sendo logo coberta pelo sangue. O norueguês se protegeu dando as costas para uma coluna e expôs a navalha aberta sobre a mão espalmada. Incontinente, socorreram a vítima, enquanto o agressor abria passagem ameaçando com a navalha.

Felintro e sua companheira logo foram puxados pela matrona, que lhes disse:

— Grande amigo, leva a garota contigo para longe daqui, que ela não pode ser envolvida. A polícia já está a caminho, saiam pelo corredor lateral do prédio.

O casal chega à rua, em frente à pequena praça, junto ao estabelecimento que estava deserta, pois, passavam das três horas da madrugada. O Estude Baker verde 1950 aguardava-os na lateral da pracinha, que ficava à frente da boate. O cavalheiro, antes de adentrar no carro, cede à dama seu casaco de linho, cobrindo-lhe os ombros desnudos, abre a porta do lado direito, a moça adentra, ele contorna o carro e adentra na porta da esquerda. A essa altura o carro estava frio, mas, mesmo assim, pegou de primeira.

Quando dobravam na quadra seguinte, viram a viatura da polícia passar rumo a boate. Eles saem da cidade e tomam a estrada que os levaria ao Balneário do Cassino. Vencidos os doze quilômetros que separam a cidade de Rio Grande ao balneário, eles adentram na Vila Siqueira, seria por volta das três e trinta da madrugada, como a vila estava completamente vazia. O casal, que até então não pronunciara nenhuma palavra, dado o estado de apreensão causado pelos últimos acontecimentos, voltou a falar.

— Minha cara amiga, Juliana! Convido-a a assistir o nascer de um novo dia na Praia do Cassino, de cima de uma duna.

— Sempre tive vontade, mas nunca tive oportunidade de fazer tal façanha — disse a moça.

O carro foi estacionado na Avenida Atlântica. O casal desceu e tomou o rumo da praia. Felintro, com as calças levantadas até a meia canela, e Juliana, com uma minissaia e abrigada com o paletó de linho de Felintro, atravessaram a Vila Siqueira. Na praia, ambos retiraram os calçados e, de mãos dadas, seguiram pela areia da praia, ora as ondas mais avançadas lhes cobriam os pés, ora na areia úmida recebia o sulco que marcava as suas pegadas.

Juliana lhe diz em tom amistoso e carinhoso:

— Senhor Felintro! Posso lhe fazer uma indagação?

— Sim, minha cara amiga, faça-a.

— O senhor, o que faz? Parece-me bem aquinhoado, tem um bom carro, dinheiro não lhe falta.

— Posso lhe assegurar que o meu dinheiro vem de fonte honesta, sou um homem de bem. Fui o único filho de meu pai, que era um grande.

negociante, mexia com cebolas e peixes, chegando a ter duas fábricas de conservas de peixes. Ele chegou a ser o maior negociante de cebolas do Rio Grande. Não foi um homem estudado, por isso queria que eu estudasse e que me formasse economista. No entanto, desde tenra idade, eu apreciava as benesses do dinheiro, o que contrariava o modo de vida dos meus pais. Costumava, na adolescência, lá pelos meus dezessete anos, nos finais de semana, amanhecer nas ruas, indo a farras nos bordéis. Lembro que, em determinada ocasião, cheguei às seis horas da manhã de sábado, visivelmente bêbado. Meu pai, ao ver-me naquele estado, me disse:

— Stopor! Eu tenho um filho marginal, que chega às seis horas da manhã, bêbado como um gambá. Nesse momento, minha mãe partiu em minha defesa, dizendo: Homem, deixa o menino em paz, ele é jovem e tem que se divertir.

Diante disso, meu pai acusou-a de ser a culpada de eu ser um bosta, que não ia dar para nada. Desse dia em diante eu soube o que não queria ser: um homem como o meu pai. Quando eu estava no Científico, ele me disse para ajudá-lo nos negócios, nas horas de folga dos estudos, assim, tomaria gosto pela coisa. Para fugir do compromisso, disse-lhe que ou estudaria, ou trabalharia, que ele escolhesse, que eu não tinha condições de fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Para ingressar na Universidade, tive que fazer vários cursos pré-vestibulares, até que na terceira tentativa logrei êxito e passei para o curso de Economia. Meu pai ficou entusiasmado. Quando estava cursando o primeiro ano na universidade, minha mãe morreu de doença natural, meu pai, dois anos depois, também morreu de causas naturais, no momento eu estava no quarto ano de Economia. Como único herdeiro, e sabendo, que eu não tinha queda para negócios, resolvi vender as empresas que herdara. Apliquei todo o dinheiro em propriedades, edifícios comerciais, a maioria nas cidades de Rio Grande e Pelotas. Passei a receber uma vultosa quantia mensal de aluguéis. E, sempre que possível, eu reaplicava os valores na compra de novos imóveis. Assim, mantive o patrimônio, chegando a aumentá-lo, sempre que tinha uma oportunidade, simultaneamente, tendo todo o tempo do mundo para viver a minha vida. E você o que se pode saber de sua vida?

— Tudo! Não tenho segredos, pertenço a uma família pobre e trabalho fazendo espetáculos, para ganhar dinheiro e, assim, ajudar a minha família. Meu pai é doente, não pode trabalhar. Minha mãe cuida dele e dos meus três irmãos. Eu sou a mais velha, por isso, tenho que prover o sustento da família. Eles acham que eu trabalho de camareira em uma casa noturna. Na verdade, eu comecei assim, mas o trabalho era muito duro e o dinheiro era pouco. Recebi o convite da dona da Mangacha para me apresentar no show e por isso estou aqui.

O casal, conversando, se afasta mais de dois quilômetros da vila, seguindo pela praia. Avistam uma grande duna e resolvem contemplar o nascer do sol de cima dela.

— Veja, Juliana, uma grande duna, vamos até lá e, de lá, esperaremos o nascer do sol.

A moça olha o relógio e diz:

— Veja, são apenas quatro horas e dez minutos, o sol nascerá há que horas?

— Não tenho certeza, não é o meu forte ver o sol nascer. Mas, acho que por volta das cinco horas, afinal estamos no verão.

Sentados na duna, ambos olhavam para o mar onde a luz da lua era refletida pelas ondas que quebravam na praia.

— Olhe, Juliana! Lá, no horizonte, parecem relâmpagos de grande intensidade, será que vai chover?

— Não, não marca chuva para hoje.

A VELHA BRUXA

Ano de 1998, na cidade de Áurea do Sul, pequena cidade, a quarenta e cinco quilômetros de Porto Alegre. Certa manhã, apareceu uma mulher que, se tivesse que personificar uma bruxa da Idade Média, certamente que nada de anormal teria de lhe ser adicionado. Seu queixo era pontiagudo, seguido por uma bocarra larga, formada por lábios finos, em cujo interior se destacavam alguns dentes corroídos e cheios de tártaros negros. Seu nariz adunco e de grande tamanho dava abrigo a uma verruga que o destacava das demais partes do cenho. Seus olhos negros eram orbitados por cílios purulentos. Não menos bizarros eram seus cabelos, que, caídos sobre os ombros, continham mais fios brancos do que negros engrossados pela gordura que os unia em grandes mechas, onde pontas se enredavam. As roupas sujas como pau de poleiro denunciavam-lhe a total falta de higiene corporal. Tal figura aparecera na cidade, ninguém sabia de onde teria vindo, surgiu do dia para a noite e passou a vagar pelas ruas, proferindo frases desconexas. À noite, se acomodava numa pequena barraca de plástico preto, na nascente do córrego que cortava a cidade, onde a água ainda não estava poluída. Em suas andanças pela cidade, alguns guris lhe jogavam pedras, não sei se por medo ou por travessura, fazendo com que ela se afastasse. Os cidadãos cortavam volta quando a viam pela frente, colocando a mão no nariz para não lhe sentir o cheiro. Diante de tais fatos, ela passou a juntar os restos do lixo na madrugada, horário em que apenas o padeiro que distribuía os pães estavam nas ruas.

Mas logo a gurizada descobriu o seu paradeiro, e em turmas para lá se dirigiam. Ficavam entre arbustos e árvores espreitando os seus afazeres.

Certo dia. o menorzinho da turma, que pescava logo acima do acampamento da velha, buscando um melhor pesqueiro se afastou dos demais. Algum tempo depois, ele veio esbaforido, gritando desesperado. Quando chegou perto dos demais, seu coração parecia que lhe saía pela boca, e em gaguejo entrecortados disse:

— A bruxa voa. A bruxa voa.

Os outros procuraram acalmá-lo e, passados alguns minutos, ele mais tranquilo disse:

— Eu estava pescando, quando vi a bruxa voando em uma vassoura, a mesma que ela estava varrendo o pátio da casa de plástico. Ela apareceu entre as árvores, fazendo barulho ao bater nos galhos. E logo desapareceu na mata.

Todos os guris ficaram espantados. Mas, pelo sim, pelo não, resolveram voltar para a casa e contar aos seus pais o que o pequeno Zinho tinha visto.

Ao saberem da nova, crentes e descrentes, todos, fizeram uma interjeição. Os incrédulos diziam:

— Isso é invenção de criança que não tem nada para fazer.

Os crentes comentavam:

— Tem tudo para ser verdade, ela é a reencarnação de uma bruxa da antiguidade.

A novidade espalhou-se tal qual a um rastilho de pólvora. A gurizada se aglomerava pelas redondezas para espionar a bruxa. Na verdade, todos queriam vê-la voar na sua vassoura.

Até que, certo dia, três guris estavam espionando a velha, segundo contaram na cidade, e ela saiu voando com a sua vassoura, deu uma volta no ar, dando risada, e sumiu a uma altura que a perderam de vista no céu. Agora não seria só a imaginação de um garotinho assustado. Três outros tinham-na visto em voos acrobáticos.

A delegacia estava repleta de cidadãos e todos tinham a mesma pretensão: forçar o delegado a prender a bruxa para que desse explicação sobre suas atividades.

— Calma gente — pediu o delegado — a não ser que os senhores tenham uma queixa crime para fazer em boletim de ocorrência, nada posso fazer. Até o momento, o que temos são meras alegações. No nosso código penal, não consta nada que seja crime voar em uma.

vassoura. Portanto, não há qualquer motivo para que eu a possa prender.

Os dias foram passando, as queixas dos fiéis, que chegavam ao conhecimento do vigário e os comentários das beatas sobre a bruxa deixaram o vigário, de certa forma, curioso para conhecer tão bizarra figura. Mas, se o fizesse, certamente teria que tomar partido. Por isso, resolveu manter-se indiferente aos comentários, dizendo apenas que todos os que habitavam a Terra eram criaturas do senhor, e que a suposta bruxa seria, no máximo, uma deficiente mental. Quando lhe pediram para explicar o que os garotos tinham visto, ele se limitou a dizer que tudo não passara de invenção dos garotos para confundir os adultos.

Mas, na verdade, o padre pretendia melhor se informar sobre tudo o que estava acontecendo em sua paróquia. Resolveu chamar os guris que supostamente haviam visto a bruxa voar.

O pequeno Zinho, após um pequeno interrogatório do padre, disse que pareceu ter visto a bruxa voar, mas que não tinha certeza. Os demais, ao se confessarem disseram que não queriam ficar menos importantes do que Zinho e disseram que a tinham visto voar.

Mas o farmacêutico da cidade não era da mesma opinião. Homem culto, formado em Farmácia, com seus quarenta e cinco anos, solteiro, não por opção, mas por puro constrangimento, uma vez que sua timidez lhe impunha uma barreira no relacionamento com todas as mulheres que lhe haviam interessado, sendo a última, que habitava os seus sonhos a viúva do quitandeiro. Uma portuguesa atarracada, mas de incontestável beleza. Tentara se relacionar com ela, mas quando ia lhe falar de amor, sua garganta secava, sua voz embargava e não saía, o suor lhe brotava, começando pelas mãos, tomando conta de todo o seu corpo. O rubor de sua face denunciava o seu estado de torpor. À noite, a portuguesa assaltava seus sonhos, pois ele dormia com ela em seus pensamentos. Ele bateu uma mão na outra e disse:

— É isso, a bruxa será a minha solução.

O dia seguinte seria domingo. A cidade despertava mais tarde e ele aproveitou para ir ter com a bruxa.

Mal o sol apresentara os seus primeiro raios, ele estava chegando ao barraco da velha. Bateu palmas de longe, mais de uma vez teve de fazê-lo, até que o pedaço de plástico que servia de porta foi afastado e surgiu a velha bruxa. Estando o recém-chegado contra o sol, que começara surgir no horizonte, a mulher teve que forçar as vistas para enxergá-lo. Ele, ao vê-la se aproximando, disse:

— Bom-dia, minha senhora! Eu gostaria muito de falar com a senhora. Eu sou o farmacêutico da cidade, e posso lhe ser útil, fornecendo alguns ingredientes para o seu trabalho. E, além disso, eu necessito dos seus conselhos. Isto é, da sua ajuda.

A mulher disse algumas palavras sem nexo e lhe fez sinal para que se aproximasse. Ele se aproximou e foi logo dizendo.

— Quero que a senhora faça um feitiço para que eu fique calmo quando falar com a portuguesa. Eu quero namorá-la, mas não consigo falar, aliás, com mulher alguma, eu fico nervoso e não consigo dizer sequer uma palavra.

— Tu não precisas de qualquer feitiço. É só uma questão de jeito. Me diga uma coisa, o que é que o senhor não consegue dizer a ela?

— Eu não consigo dizer que a quero namorar.

— Pois não diga.

- Mas, e eu não vou namorá-la.

— Você se engana. Os namorados não falam nada sério, dizem apenas bobagens, um para o outro. E o que eles conseguem dizer. O seu erro é que quer ser muito formal, ir logo ao assunto. Fale qualquer coisa, menos que a quer namorar, essas coisas vêm ao natural. Quando você vê já estará lhe namorando, sem ter lhe dito que a queria namorar.

— É assim tão simples, por que eu nunca pensei nisso?

A velha começou a dizer palavras sem nexo, que o farmacêutico não entendia. Entrou no abrigo e puxou o plástico que cobriu a entrada.

No dia seguinte:

— Bom-dia, senhor Flávio!

— Bom-dia, dona Maria, em que lhe posso ser útil?

— Quero ver se o senhor me prepara este remédio, aqui está à fórmula dada pelo médico.

— Deixe-me ver, sim, sim, pode deixar que eu a preparo. A propósito, como a senhora tem passado?

— Ora, seu Flávio, como uma pobre viúva que passa dias sozinha a fazer os seus bordados.

— Ora! A senhora é uma jovem viúva, tem muito a viver pela frente.

Quando estiver aborrecida, passe aqui para uma prosa.

— Com certeza passarei, seu Flávio. Até mais ver.

A viúva do quitandeiro se afasta e o farmacêutico fica pensando: “Veja só, a velha tinha razão, é só conversar como eu converso com as outras pessoas, nada mais do que isso.”

Alguns dias se passaram, o farmacêutico quase que diariamente conversava com a viúva, ou ele ia à quitanda, ou ela vinha à farmácia.

Chega à farmácia o senhor Isaltino, um dos probos da sociedade, filantropo e pensador. Já tinha exercido o maior cargo da cidade em duas oportunidades. Como prefeito tinha realizado grandes feitos e melhoras aos seus concidadãos.

— Bom-dia, senhor Isaltino, em que lhe posso ser útil?

— Por favor, avie-me esta receita.

— É para já. Mas, ainda que mal pergunte, o senhor não está bem?

— Meu caro amigo fármaco! Estou passando por um momento de grande aflição, diria, sem medo de errar, que é o maior aperto de toda a minha vida.

— Posso lhe ajudar? Se for dinheiro pode dispor deste amigo.

- Quisera fosse falta de dinheiro, não me preocuparia. Com muito se vive com pouco se passa. Meu problema é não solucionável, conselho não resolve, a medicina não tem remédio. Enfim estou broxa meu amigo fármaco.

— Não quero lhe provocar uma falsa esperança, mas eu lhe aconselho a procurar a feiticeira, que há algum tempo está acampada na beira do riacho. Ou bruxa como dizem todos. Eu confesso que a procurei com um problema, que era não solucionável há vários anos, e ela resolveu apenas com algumas palavras. Ela parece louca, mas exponha o seu problema e garanto que ela o resolverá.

— Aquela que a gurizada disse que voa numa vassoura. Não me diga que você acredita nessas besteiras de guris.

— Não senhor, eu não acredito nisso, mas acredito que ela tem ligações com alguma entidade espiritual. Ela começou dizendo coisas que eu não compreendia. Eu expus o meu problema e ela falou claro, e em bom tom, a solução do meu problema, e depois começou a falar novamente coisas desconexas e entrou na maloca.

— Não vou expor o meu caso a uma mulher que tem tal comportamento.

— Mas se o senhor resolver ir vá cedo, e, de preferência, no domingo, quando todos dormem até mais tarde, foi assim que eu fiz.

O domingo chega, e o senhor Isaltino, mal clareara o dia, estava chegando ao acampamento da velha bruxa. Bateu palmas e esperou, bateu palmas novamente. Passados mais de quinze minutos, a lona que servia de porta é aberta e aparece aquela figura bizarra. Olhou para Isaltino, murmurou algumas palavras desconexas. Seguindo as instruções recebidas do farmacêutico, foi logo dizendo:

— Eu necessito da sua ajuda e para tanto lhe posso pagar um bom dinheiro. Acontece que minha mulher bem mais nova do que eu, e a senhora sabe como é, eu não estou mais dando conta do recado. Não é nada disso, eu estou totalmente brocha. Não consigo ter mais ereção.

A mulher tossiu, compondo o peito e começou a falar em voz clara e em bom som:

— Não corte mais o cabelo e quando ele estiver comprido sua ereção voltará. Mantenha o cabelo comprido e tudo retornará ao normal.

Logo a mulher começou a tossir e a proferir palavras desconexas.

Alguns dias se passaram, o farmacêutico encontrou Isaltino e logo lhe foi perguntando:

— E daí, senhor Isaltino, me diga, foi até a bruxa?

— Fui, e sabe de uma coisa, ela deu uma solução ao meu problema. Foi exatamente como você disse, eu a chamei, ela apareceu falando coisas desconexas, que nada entendi. Eu lhe expus o meu problema e ela começou logo a dar a solução para o meu caso. Quando terminou, começou novamente a falar coisas que eu não entendia, e entrou na casa de plástico.

— Mas, me diga! Deu tudo certo, conseguiu resolver o seu problema?

— Ainda não, levará algum tempo, mas eu estou crente de dará certo.

O tempo passou e o farmacêutico terminou namorando a viúva do quitandeiro, tudo veio ao natural, sem qualquer inibição ou acanhamento, o que fez com que o favorecido ficasse tão contente que espalhou, à boca pequena, à todos os que lhe deram oportunidade.

O cabelo do senhor Isaltino já estava ficando comprido e ele fazia tentativa diária, sempre na esperança de que sua virilidade retornasse a ser como fora no princípio. Sua fé era tamanha que sua ereção voltou, deixando-o convicto de que a bruxa realmente tinha sido a responsável pelo seu bom desempenho na cama. Feliz com o sucesso obtido, costumava contar aos amigos mais íntimos, que tinha resolvido o seu problema em apenas uma visita à bruxa, mas sempre omitia o seu problema, pois ficava vexado com tal situação.

Um dia, ele conversava com um seu amigo de infância, homem de mesma idade e igual senso de responsabilidade e lisura. Dizia o senhor Isaltino:

— Compadre Mathias, a velha bruxa é uma coisa inexplicável, de início, não se entende o que ela fala, mas quando é para dar a solução do seu problema, ela fala claro e, em bom tom, fazendo com que entendamos tudo o que ela está dizendo. Depois, volta a falar coisas que não conseguimos entender, parece até que está falando outra língua.

— Mas, tchê Isaltino, será que ela resolve o meu problema? Sabe, é um tanto delicado, é um caso de saúde, será que ela me dará algum chá ou remédio. O meu médico disse que estou com as veias do coração entupidas, que tenho que ir à capital para fazer um desentupimento das artérias do coração. Uma coisa complicada, eles metem um negócio na virilha e vai até o coração. Só de falar fico todo arrepiado.

— Não sei, compadre, mas acho que vale a pena tentar. Vá no domingo de manhãzinha e fale com a bruxa. Vá logo explicando o seu caso, que ela lhe diz alguma coisa.

Como foi dito foi feito, Mathias, no domingo cedinho, estava chegando ao acampamento da velha. Falou tudo o que podia e da melhor forma que conseguiu. A velha olhou para ele pela primeira e única vez e disse:

— Pegue uma garrafa com vinho do bom, coloque dentro três galinhos de alecrim, deixe em infusão por uma semana e tome um cálice todos os dias, antes do dormir. Faça isso continuamente até que seu fôlego retorne ao normal.

Não se sabe se Mathias fez ou não a infusão e se ela deu resultado, mas, em pouco tempo, a velha bruxa passou a ser procurada diariamente, para resolver todas as espécies de assunto e problemas. Se não fosse pelo fato de que os que a procuravam o faziam aos domingos, não teria aguçado a curiosidade do padre vigário, que viu seus devotos faltarem à missa para irem ao acampamento da velha bruxa. Isto fez com que o padre procurasse o delegado, apresentando queixa crime de curandeirismo por parte da velha.

— Entendo, senhor vigário, mas eu preciso que o senhor indique testemunhas para que eu as possa ouvir. Se comprovada a denúncia eu prendo a velha.

— Não, eu não tenho ninguém que esteja disposto a testemunhar, parece que todos os que a procuram acreditam nela.

— Bem, sendo assim, não posso aceitar a denúncia, pois não tenho evidências de crime para ser investigado.

A notícia da existência de uma curandeira transcendeu as fronteiras da pequena cidade, foi noticiado em alguns jornais da capital. Começaram a surgir gente de todas as partes à procura de curas ou de soluções para os seus problemas. Tal aglomeração de pessoas despertou o interesse do centro espírita da cidade, que resolveu procurar a velha e levá-la para o centro. Fizeram-na tomar banho, cederam-lhe roupas novas, um trato em seus cabelos e passaram a organizar os atendimentos. Até senha foram distribuídas pelos espíritas, que, de bom grado, recebiam as doações daqueles que quisessem dar, uma vez que o trabalho da velha era inteiramente gratuito. Durante todo o contato com os espíritas, a velha, em momento algum, disse qualquer palavra que pudesse ser entendida, embora constantemente estivesse falando coisas desconexas.

No hospital psiquiátrico da capital do Rio Grande do Sul:

— Senhor diretor, veja esta foto — colocando o jornal sobre a mesa e apontando com o dedo.

O diretor pegou o jornal, colocou os óculos de grau, aproximou o foco visual e disse:

— Sim, parece que é a Cassandra.

— Leia a reportagem, ela está dando consultas em um centro espírita.

Após ler a reportagem, o diretor larga o jornal sobre a mesa e diz:

— Estão explorando a pobre louca. Vou pedir uma ordem judicial para reinternação da paciente.

No dia seguinte, às seis horas da manhã, encosta a ambulância na frente do centro espírita. Dois enfermeiros desembarcam e batem à porta. Um homem que seria o zelador, sonolento, pergunta:

— O que querem? A esta hora o centro está fechado.

Os dois enfermeiros apresentam a ordem judicial e entram na casa, à procura da paciente, que, naquele momento, estava repousando em um cômodo. Eles a pegaram, lhe colocaram uma camisa de força e a seguraram um em cada braço, erguendo-a e levando-a para a ambulância. O zelador, que não soube o que fazer naquele momento, se viu sozinho com aquele papel na mão. Recobrando-se do susto, resolveu telefonar para o seu patrão, que era o presidente do centro, e lhe disse em voz titubeante:

— Pois é, senhor Ercílio, os homens a levaram e deixaram um mandado judicial que tá aqui na minha mão.

O mandado judicial para reinternação da paciente fora expedido por um juiz da Capital, seria fácil localizar o hospital para onde ela havia sido levada.

Na comarca, o diretor do centro espírita obteve informação sobre o hospital para onde a sua protegida tinha sido levada.

No Hospital Psiquiátrico:

— Bom-dia! Eu queria falar com o administrador.

Ele foi encaminhado até o gabinete do diretor do centro psiquiátrico.

— Bom-dia, senhor! Eu sou Ercílio Tavares, sou o diretor do centro espírita Alan Kardec, da cidade vizinha, onde os senhores buscaram a minha protegida, através de um mandado judicial. E eu quero obter alguma explicação sobre o caso.

— Sente-se, senhor Ercílio. A nossa paciente, a que o senhor se refere, trata-se de Juliana da Silveira, é uma doente mental, que está neste hospital há mais de quarenta anos. Chegou aqui encaminhada pelo serviço de saúde da prefeitura de Rio Grande, foi diagnosticada insanidade mental, e submetida a vários tratamentos, ao longo de quarenta e poucos anos. No início da internação, o que mais se fazia, na época, era o tratamento com choques elétricos, ela foi submetida a este tipo de tratamento por diversos anos, sem qualquer melhora. Nos últimos dez anos, não temos registros de qualquer tratamento, os médicos não sabem, na verdade, a que tratamento submetê-la. Por isso, ela é uma paciente permanente deste hospital. Há menos de um ano, ela desapareceu, parece que sua fuga ocorreu quando ela se escondeu dentro do caminhão que leva as roupas para a lavanderia. Seria a única forma de ela ter se evadido. Deve

ter perambulado pela estrada até chegar à sua cidade.

— Pois bem, nós, espíritas, achamos que ela sofre a influência de vários espíritos. E há um que responde às consultas claramente, outros fazem com que profira palavras desconexas.

— Sim, sabemos disso, aliás tem o apelido no hospital de Cassandra, por fazer algumas predições, que, segundo os que a escutam, fazem sentido e têm grande índice de acertos.

— Será possível saber quem diagnosticou a loucura quando ela foi internada pela primeira vez?

— Sim, temos nos nossos arquivos, mas posso lhe assegurar que todos os médicos daquela época estão mortos.

— Com isso quer dizer que nada há que se possa fazer.

— Clinicamente não.

— Não há a possibilidade de ela retornar ao centro espírita para fazermos trabalhos com ela?

— Sim, mas terá que obter a concordância judicial para removê-la do hospital.

Um repórter investigativo, na sede da gazeta do vale:

— Júnior, a chefia está chamando.

— Garanto que lá vem bronca novamente.

— Júnior! Quero que você faça uma reportagem investigativa sobre uma mulher que estava num centro espírita e que teria passado mais de quarenta anos em um hospício. O pessoal do centro espírita garante que a mulher não é louca, que ela é uma paranormal. Aqui está o endereço do centro espírita. Quero que vá à cidade de Áurea do Sul e investigue tudo sobre o caso. Não se esqueça de me manter informado diariamente.

O levantamento efetuado não resultou em grandes descobertas, apenas foram levados a público os fatos já apurados pelo presidente do centro espírita.

CAPÍTULO III

NA PRAIA DO CASSINO

— Veja, Juliana! Lá no horizonte, parecem relâmpagos de grande intensidade, será que vai chover?

— Não, não marca chuva para hoje.

Deitado sobre as areias, que ainda estavam mornas pelo calor recebido de um dia ensolarado, eles contemplavam as ondas, os relâmpagos no infinito do oceano revolto. Olhavam para o céu, estrelas cintilantes brilhavam à noite. Uma brisa vinda do oceano acariciava suas faces, dando-lhes uma sensação de frescor e liberdade. O silêncio profundo os induzia a tomarem atitudes e desejo de acasalamento. Felintro ergue o corpo e se coloca sobre o corpo de Juliana, mansamente aproxima seus lábios e os encosta delicadamente nos dela. As vestes são despojadas e jogadas ao lado. Fazem amor e voltam à posição de contemplação do infinito do oceano, onde luzes e clarões aumentavam de intensidade.

Em estado de prostração, após o acasalamento, mal notavam que as luzes e os relâmpagos cada vez estavam mais próximos. De repente, eles se sentam em sinal de advertência e Felintro diz em voz em tom de espanto:

— Veja, Juliana, há uma roda de luzes que se aproxima velozmente, nunca vi tal coisa, se me contassem diria que se tratava de alucinações. Você está vendo o que eu estou?

Sim, eu também nunca vi tal coisa. O que acha? Devemos fugir, ela certamente está vindo em nossa direção e logo estará aqui.

— Não aconselho a fuga, com a velocidade que se aproxima, nos alcançaria num piscar de olhos.

— O que devemos fazer?

— Nada, já está em cima de nós. Abrace-me e ficaremos juntos para o que der e vier.

A roda de luzes, que tinha um diâmetro de mais de quinze metros, baixou lentamente sobre os dois, que tinham seus corpos em vibrações incontidas causadas pelo medo. Seus corpos foram suspensos como estivessem a bordo de um veículo transparente. Logo a roda se movimentou e os levou para dentro do oceano. A velocidade desenvolvida pela roda de luz os deixou tontos e terminaram perdendo os sentidos. Quando os recobraram, ainda no interior da roda iluminada, esta se movia com um mínimo de velocidade, parecendo que estava se posicionando para a entrada em algum lugar de estacionamento. Quando os dois incautos puderam ver, surge uma imensa casca que se erguia das águas, sua dimensão seria de mais de cem metros de diâmetro, no seu topo uma abertura circular, onde a roda de luz dirigia-se para adentrar. De onde estavam podiam ver o que lhes esperava. A roda se posiciona sobre a abertura e eles são largados no espaço, penetrando no orifício de entrada da grande concha.

Seus corpos caem por alguns instantes, separando um do outro, mas logo penetram em algo que lhes amortece a queda, uma espécie de gosma grudenta, mal podiam se movimentar, e quanto mais se movimentavam, mais a gosma os envolvia. Da intensa claridade do transporte, passaram para uma escuridão absoluta e total. Sem dúvida alguma, estavam irremediavelmente aprisionados. Mas quem seriam seus raptores? O que pretendiam? Que destino cruel os aguardaria? Felintro, sentindo-se só, começou a se debater desesperadamente e seus gritos pareciam que não ecoavam em lugar algum, fazendo com que ele próprio não os ouvisse.

Perderam a noção de tempo, não sabiam se era dia ou era noite, dormiam e acordavam sem saber se haviam dormido um dia ou apenas alguns minutos.

Aos poucos, paulatinamente, a escuridão começou a ceder lugar a uma claridade opaca, que mal podiam ver aquilo que estava mais perto. Juliana, assim que sentiu poder enxergar alguma coisa, foi logo procurando Felintro, mas o que conseguia ver era apenas parte do seu corpo imerso em uma espécie de gelatina grudenta que a mantinha aprisionada. A claridade começava a ficar mais forte o que fez com que ela visse ao seu redor mais pessoas em idêntica situação na qual se encontrava. Ela fecha os olhos na intenção de quando abri-los poder enxergar mais e melhor. Passados alguns minutos, ela abre os olhos e consegue visualizar praticamente tudo ao seu redor. Estava no interior do que achou ser um imenso pião, pela forma construtiva, forma arredondada, uma abóboda na parte superior, onde pôde ver uma pequena abertura que, naquele momento, estava fechada. Na parte inferior, a profundidade era enorme e ia fechando até terminar no invisível. Tenta gritar para aqueles que estavam perto, mas parecia que sua voz não saía, parecendo faltar um meio de transmissão do som.

Agora, sim, a claridade era total, ela procura e vê logo abaixo seu parceiro de infortúnio. Grita, mas ninguém a ouve. Chora em desespero.

Emergindo da parte mais profunda do cone, começa a aparecer a mesma luz que os tinha transportado até ali. Juliana é envolvida pela roda luminosa e é arrancada do local onde estava aprisionada. Em grande velocidade, o veículo luminoso mergulha para o fundo do pião. Juliana mal consegue ver os corredores pelos quais está passando. De repente, o veículo para, ela se vê no inteiro de uma sala, sobre uma estranha mesa, ao seu redor dois seres que, à primeira vista, pareciam ser apenas luzes, mas suas pupilas se contraíram e ela pôde ver claramente de que se tratavam de seres luminosos. Ela podia ouvir em seu cérebro o que diziam, mas não havia qualquer comunicação sonora. Diziam:

— Será instalado um pequeno comunicador em conexão com o seu cérebro, com ele poderá se comunicar conosco e através dele receber instruções ou orientações. Você, entre os seus, será considerada uma vidente e terá resposta a todas as perguntas que os seus semelhantes lhe fizerem, porém, somente poderá responder perguntas de cunho moral e não poderá buscar qualquer compensação por aquilo que fizer. Você será um elo entre nós e os seus semelhantes. É assim que podemos lhes ajudar.

Juliana perde os sentidos e quando retorna a tê-los se encontra deitada na relva de um campo. O sol brilhava e quando abriu os olhos, fechou-os rapidamente, para abri-los lentamente olhando para o solo. Tentou levantar, mas foi acometida de tontura, seguida de náuseas. O universo parecia girar ao seu redor, uma ânsia de vômito a obrigou a curvar-se e lançar uma golfada, mas pouco tinha para vomitar. Colocou ambas as mãos segurando a cabeça, que girava, e quanto mais girava, mais ânsia de vômito a assolava. Permaneceu ali prostrada sem se mover até se sentir capaz de caminhar. Levanta e dá passos inseguros, cambaleando, hora para um lado, hora para o outro, seguindo até encontrar uma rodovia que cortava os campos. Ela toma o rumo da rodovia e começa a caminhar no acostamento.

Suas roupas eram nada convencionais para a época, minissaia e casaco de linho. Um caminhão para e lhe oferece uma carona. Ela cambaleia até chegar ao veículo, quando está subindo escorrega, bate com a cabeça na guarnição da porta e desmaia. O motorista pega-a, coloca na boleia e a leva para a cidade de Rio Grande, deixando-a hospital Santa Casa de Misericórdia. Registra a ocorrência na delegacia e continua a sua viagem.

No hospital, é diagnosticado caso de labirintite e traumatismo craniano. O pessoal do hospital providenciou a comunicação à família, que já estava lhe procurando há alguns dias, por isso não foi difícil localizá-los. Com alta do hospital, Juliana foi levada pelos pais. Em casa, ela começou a falar coisas desconexas, que ninguém entendia. Dada a extrema pobreza da família, Juliana foi encaminhada para tratamento psiquiátrico municipal, que, por sua vez, a encaminhou ao Hospital Psiquiátrico São Pedro, de Porto Alegre.

Felintro, de seu cativeiro, pôde ver Juliana ser retirada e levada pelo transporte luminoso. Algum tempo depois, não saberia precisar quanto, se duas horas ou minutos, é chegada a sua vez. O transporte sobe e para a sua frente. Ele é arrancado das amarras gelatinosas e é transportado até o ponto de menor diâmetro do funil. Corredores são percorridos e ele finalmente chega a uma sala onde foi colocado sobre uma mesa. Focos de intensa luz foram ativados, a mesa começou a descer e seu corpo permaneceu imóvel, levitando, suportado apenas pelos fachos de luzes. Duas figuras resplandecentes se aproximaram, uma delas acionou um dispositivo e logo surgiu uma luz de tal intensidade que seus órgãos internos poderiam ser vistos em pleno funcionamento. Um dos seres luminosos disse ao outro, com voz muda da mente, que foi possível ser captada por Felintro:

— Ele não passará dos quarenta anos, suas artérias já estão começando a ficar comprometidas, certamente leva uma vida desregrada, dorme mal, se alimenta mal, com a ingestão de muitos elementos nocivos. Seus pulmões estão contaminados por substâncias agressivas que está lhes destruindo. Vamos recuperá-lo.

Felintro, que tudo via e ouvia em sua mente, não esboçava qualquer resistência, sentia um conforto tal que, se morresse naquele momento, morreria feliz.

Um dos iluminados disse:

— Prepare-o para a desobstrução de suas artérias e limpeza alveolar.

Um acesso arterial foi introduzido e conectado a um tubo transparente. Uma espécie de mangueira saía do tubo, sendo conectada a um novo acesso venoso. O raio laser foi acionado, focado nas coronárias e começou a varredura. Quando passava o feixe de luz, as gorduras iam se desprendendo, ao mesmo tempo, que, pelo acesso, o sangue saía, passando pelo aparelho onde estavam conectados. As

gorduras separadas e o sangue purificado retornam ao corpo pelo acesso venoso. Em cada narina entram dois tubos que chegam até os alvéolos pulmonares. Uma espécie de bomba enviava, por um dos tubos, um líquido cristalino, pelo outro, retornava o líquido escurecido pelos elementos nocivos que tinham sido arrancados dos alvéolos.

Terminada a intervenção, Felintro é novamente levado para o local de onde fora retirado, envolto em uma pasta grudenta. Ali permaneceu por um tempo indeterminado. Dormiu, acordou, dormiu novamente, de forma tal que perdeu a noção de tempo. Ele despertou ainda sonolento, com vertigens e enjoos. Estava ele em uma praia, a qual mais tarde soube ser a de Hermenegildo, com cem quilômetros da praia do Cassino. Levou aproximadamente três horas, após reaver os seus sentidos, para que ele se recuperasse plenamente. Apenas as vertigens e enjoos persistiam. Ele se pôs a caminhar pela praia, naquele momento não sabia onde estava. Ao longe, vê um veículo que reverberava sob o sol causticante da praia. O veículo se aproxima e ele percebe que se tratava de uma caminhonete. Ele acena e a caminhonete para. O homem em seu interior abre o vidro, coloca a cabeça para fora e pergunta:

— Quer uma carona?

— Sim, aceito! Para onde o senhor está se dirigindo?

— Para Rio Grande, é claro.

Felintro embarca na caminhoneta e ao entrar diz:

— Muito obrigado pela carona, sou Felintro Blanco e estou indo para Rio Grande.

— Satisfação ao conhecê-lo, Senhor Blanco! Sou Florêncio Cardoso. Mas, ainda que mal pergunte, o que está fazendo sozinho nesta praia, por acaso seu caro enguiçou?

— Não, não! Na verdade, eu não sabia nem onde estava, assim como não sei que dia é hoje.

— Estranho tal situação, nunca vi falar de que alguém possa não saber onde está e em que tempo está, pode me explicar isso?

— Posso, mas o senhor terá que me prometer que não achará que estou louco.

— Prometo.

Felintro conta toda a história e ao final diz:

— E assim é que vim parar nesta praia lhe pedindo uma carona.

— Acredito totalmente no que você está dizendo, por estas plagas acontecem coisas. Eu nunca vi nada de estranho, mas você não é a primeira pessoa que me conta fatos estranhos.

Felintro chega à sua casa, na cidade de Rio Grande, a pilha de jornais que estava na área era de grande volume. Pegou os jornais e foi colocando-os em ordem de data, chegou ao último que havia sido entregue no dia anterior e ele conclui que estivera perdido por vinte e cinco dias, o que o fez pensar: vnte e cinco dias. Como me alimentei durante esse tempo, como fiz as minhas necessidades fisiológicas? Lembro perfeitamente da limpeza que fizeram no meu corpo, mas o que mais eles fizeram comigo? Qual seria o propósito de nos terem raptados? Onde está Juliana, que fim teria levado? É isso, vou perguntar à senhora da boate Mangacha, ela certamente saberá informar onde moram os pais dela.

Ele tomou um banho, vestiu-se e saiu para fazer a primeira refeição, desde que tinha sido abduzido. Ele chega ao restaurante denominado Gruta Baiana, onde era muito conhecido.

— Bom-dia, senhor Felintro! Como tem passado, faz mais de vinte dias que o senhor não aparece.

— É, estive viajando.

Ele pega o cardápio, pede camarão à baiana, especialidade da casa, fritas e uma salada verde.

— Para beber senhor? O de sempre?

— Não, não, água sem gás.

O garçom sai para fazer o pedido e ele pensa: “Eu estava louco para tomar uma cerveja e terminei pedindo água, eu nunca tomo água”.

Ao seu lado está um homem fumando em grandes baforadas. Ele olha o homem e pensa “Eu fumava cigarros e por que não estou fumando, mas não estou sentido falta do cigarro, até está me causando náuseas a fumaça vindo da outra mesa.”

Terminada a refeição ele se dirige a Boate Mangacha, com o firme propósito de descobrir o paradeiro de Juliana. Lá chegando, à meia-tarde, aperta a campainha e aguarda. Senhora Helena, dona da Boate Mangacha, vem recepcioná-lo.

— Bom-dia, senhora Helena! Lembra-se de mim?

— Ora, senhor Felintro, que disparate o seu eu não me lembrar do senhor, o mais assíduo e divertido cliente de nosso estabelecimento. Entre, por favor.

Felintro adentra na boate e estranha, no primeiro momento. Sempre que lá estivera havia sons por todos os lados, homens que falavam, mulheres gritavam, a música estonteante fazia tudo vibrar. Agora, no mais absoluto silêncio, lhe dava a impressão de um lugar lúgubre e sinistro. Nesse momento, veio-lhe à mente a cena em que viu a mulher ser cortada pela navalha, seu corpo sofreu um calafrio seguido de rápido arrepio.

— O que houve, o senhor está bem?

— Nada de mais, apenas recordei os derradeiros momentos quando aqui estive pela última vez.

— Mas vamos sentar. — Aceita uma bebida?

— Sim, água sem gás.

— Vejo que não bebe durante o dia.

Helena contornou o bar, pegou uma garrafa de água e um copo, serviu, e logo sentou.

— Então, seu Felintro, a que devo a sua visita?

— Minha cara Helena, eu queria saber onde mora a Juliana, aquela garota que eu levei antes da polícia chegar.

— Aquela garota! Não, receio que não possa ajudá-lo.

— Muitas coisas aconteceram depois de havermos saído de seu estabelecimento, eu terminei perdendo-me dela e agora quero recuperá-la.

— Sim, recordo perfeitamente e agradeço por tê-la levado naquela ocasião. Mas, o senhor sabe como é nessa nossa vida, procuramos ser o mais discretos possível, nomes para nós, não são importantes, quase todas as garotas costumam usar nomes falsos. Talvez seja o caso de Juliana. Ela apareceu aqui na casa para fazer trabalhos de limpeza. Embora não fosse uma formosa donzela, seu corpo era escultural. Trabalhou por alguns meses, seu expediente era da meia-noite até as seis horas da manhã. Um certo dia, após três meses de trabalho, onde tinha que fazer limpeza dos sanitários, recolher o lixo dos quartos e tudo o que mais fosse inerente às suas atividades de faxineira, ela me procurou e disse:

— Boa-noite, senhora! Eu queria muito falar com a senhora.

— Pois fale menina, o que queres?

— Estou com o meu pai doente e tenho mais três irmãos. Minha mãe não pode trabalhar, apenas eu que posso, os demais são menores de catorze anos. Eu precisava ganhar mais, não está dando para as despesas.

Olhei-a de cima a baixo, contorneia e lhe disse:

— Tire todas as roupas.

— Mas, senhora!

— Você não quer ganhar mais dinheiro, quer?

— Sim, sim, senhora.

- Pois então faça o que lhe estou pedindo.

Quando ela se despojou das vestes de faxineira, surgiu um corpo jovem e escultural. Eu lhe disse:

— Você para meretriz não serve, mas poderá servir para se apresentar nos shows. Depois de dois meses de treinamento ela se apresentou pela primeira vez. E foi um sucesso. Nunca soube o seu verdadeiro nome, ela se apresentava como sendo Juliana, apenas Juliana e nada mais. Nunca soube onde moravam, os seus pais, ela era menor e por isso não me importava com os detalhes.

Isso é tudo, não sei se lhe ajudei muito. Mas, essa é a verdade.

— Mas, se não for insistir demais, a senhora poderia me informar se ela teve algum romance com alguém que frequentasse a boate?

— Receio que por esse caminho o senhor não vá a lugar algum. Segundo o que sei, no máximo, ela tomava um refrigerante com um ou outro freguês, como fez naquela noite, e assim mesmo quando eu a apresentasse, mas lhe.

asseguro que nunca ficou com qualquer um deles.

Felintro saiu da casa de espetáculos, arrasado, seria como procurar um grão de areia na praia. Não tinha qualquer pista que o levasse a seus familiares.

Chegou a pensar em procurar a polícia para ver se havia alguma ocorrência, mas se ela tivesse sido morta ou desaparecida ele poderia se complicar, pois, ninguém acreditaria na sua história. Rolveu que continuaria as suas investigações e procura, mas que não envolveria a polícia no caso.

CAPÍTULO IV

O FILHO DE MADAME STANTON.

ABRIL DE 1950 — CAPITAL DO RIO GRANDE DO SUL.

Felintro procurou Juliana nos primeiros meses após a abdução, mas todos os seus esforços foram infrutíferos. Leu todos os jornais que havia recebido no período em que esteve abduzido. Nenhuma nota sobre o desaparecimento de Juliana.

Estruturou os seus negócios nas cidades de Pelotas e Rio Grande e se transferiu para a capital do estado. Ele fazia coisas que nunca antes tinha feito e deixara de fazer coisas as quais, era habituado a fazer; tudo sem saber como isso acontecia, mas, ele simplesmente fazia como faz alguém que tem compulsão. Faz e não sabe por que faz. Nunca mais frequentou bordéis, nunca mais tomou uma única gota de bebida alcoólica e nunca mais fumou. Seu olfato ficou aguçado, podia sentir cheiros que nunca antes havia sentido. Ele não sabia explicar, passou a dar atenção à política, frequentando a câmara de vereadores e a assembleia estadual de Porto Alegre. Foi nessas andanças que ele conheceu o deputado estadual Raul Albuquerque, a quem admirou pelo talento e seriedade, na época muito raro entre os políticos. Certo dia, teve a oportunidade de se aproximar do deputado e foi logo se apresentando.

— Bom-dia, senhor Deputado! Permita que me apresente, sou Felintro Blanco e sinto-me honrado por lhe conhecer. Confesso admira-lo pelo talento, pela facilidade que tem com as palavras ao proferir um discurso e pela lisura de seu trabalho.

— Alegro-me em lhe conhecer, senhor Felintro! Está convidado a comparecer a um churrasco que darei amanhã aos meus correligionários, no CTG 35.

— Comparecerei com toda a certeza, senhor.

O Deputado foi logo cumprimentado por outras pessoas, deixando Felintro a olhá-lo com muita simpatia.

No dia seguinte, não eram ainda onze horas da manhã, quando Felintro chega ao Centro de Tradições Gaúchas 35. Um gaudério pilchado fazia a recepção dos convidados. O grande salão, totalmente ocupado por mesas toscas, condizia bem com o ambiente tradicionalista. Um grupo de convidados fechava o cerco em torno de alguém que falava. Ele se aproximou e pôde ouvir a voz do anfitrião que dizia:

— No nosso país os homens de bem se constrangem de ingressar na política, para não serem tachados como corruptos e desonestos, fazendo com que os corruptos e desonestos ocupem os lugares nos parlamentos.

Aproximar-se do Deputado, naquele momento, seria impossível; ele se conteve e contentou-se em apenas ouvir o discurso. Dizia o orador:

— A política deve ser aceita e disputada pelos homens de bem, para que os homens desonestos não tenham vez.

Tais palavras lhe calaram profundamente, e desse dia em diante, decidira que se dedicaria à política.

Quando o cerco foi desfeito, pois, estava na hora de sentarem à mesa, ele não pôde se aproximar para cumprimentar o Deputado. Sentou-se em uma das mesas que ficava à direita e à frente de onde estava o Deputado com sua família, mulher e uma filha. Uma moça esbelta, parecendo-se em muito com o Deputado. Felintro olhava para os três, aliás o que faziam todos os que estavam no salão. Mas a sorte lhe sorriu e a moça terminou encontrando-o, possivelmente seus olhos tinham-na atraído, pois ele não parava de fitá-la. Olhou discretamente e desviou o olhar. Ele estava extasiado e seus olhos só a viam no meio dos comensais.

Os garçons, todos pilchados, serviam a carne em grandes espetos, que eram colocados em pedestais expostos ao longo das mesas, de onde o pessoal cortava a carne em grandes nacos.

Quando teve oportunidade, se aproximou da família anfitriã, inicialmente dirigiu-se ao Deputado, que logo lhe apresentou a esposa e depois a filha.

— Este é o Senhor?

— Felintro Blanco! E estou encantado.

— Esta é Tereza, minha filha.

— Eu sou dos muitos admiradores de seu pai, faço dele um espelho para as minhas atitudes e pretensões políticas.

— O senhor também está na política, senhor Felintro?

— Ainda não, mas pretendo seguir essa carreira auspiciosa.

Tereza, segurando-o pelo braço, movimentou-se saindo do foco das atenções, que era o seu pai.

— Então, o senhor quer ser político, e começará por onde?

— Deixe o senhor de lado, chame-me apenas de Felintro. Mas, respondendo a sua pergunta, pretendo me candidatar a vereador no próximo pleito.

Assim, eles se conheceram e começaram a namorar.

O Deputado logo se afeiçoou a Felintro e o encaminhou na senda da política. Felintro passou a aparecer na mídia ao lado do Deputado, que o levava a todas as reuniões de interesse político, filiando-o em seu partido, pelo qual Felintro concorreu às eleições para vereador e consegui o seu primeiro mandato.

Já noivos, Felintro e Tereza caminham por uma alameda no centro da capital. De mãos dadas, apreciam a paisagem, parando nas vitrines, onde eram exibidas as mercadorias das lojas da Rua da Praia. Displicentes, passaram por uma cigana que estava encostada na parede, murmurando frases em espanhol, que não se podiam compreender.

— Veja, querido! Uma cigana! Quero que ela leia a minha mão.

— Não me digas que você acredita em leitura de mãos, querida?

— É divertido e às vezes dá certo.

— Então, vamos lá!

Eles se aproximaram da velha cigana, que lhes disse em um portunhol mal pronunciado:

— Querem “sacar la suerte”?

Tereza lhe estendeu a mão, a velha a pegou e disse:

— Mão filosófica! Dedos longos, juntas marcantes e irregulares, palma retangular e de ossos grandes. Pele macia e aveludada. Sua mão revela uma pessoa sábia e que se interessa em conhecer a fundo os mais variados assuntos: religião, política, o sentido da vida. As questões do dia a dia não são bem vistas por você e podem até irritá-la.

Linha da Vida Curta e forte: indica boa saúde, pois cuida muito de sua alimentação e prática atividades físicas regularmente. É perseverante e muito dedicada. Linha da cabeça forte e bem definida tem ótima memória, tem ousadia ao impor suas ideias. Tem espírito de liderança. Linha do coração reta, é romântica e sonhadora, é crédula e tem a propensão de cometer enganos. No amor gosta de ter liberdade, mas também é muito sensível e.

romântica. Vai ter três filhos, dois... Isto não interessa...

— Diga, continue o que estava dizendo — insistiu Tereza.

— Já que insiste, dois serão normais e o terceiro, um menino, terá uma compensação. É só isso que lhe posso dizer. Não vejo mais nada sobre esse garoto na sua vida. Talvez até ele não venha a ser concebido.

— Diga o que mais o futuro me reserva?

— Sua vida será tranquila e com grande longevidade. E o senhor quer que eu lhe leia as mãos?

— Não será necessário, não sou crédulo.

Ele meteu a mão no bolso, tirou uma nota de algum valor, alcançou-a à mulher e se afastaram.

— E aí, vereador! Teremos três filhos, ou será que teremos dois? Ela não foi taxativa.

— É sempre assim, querida, deixam mais de uma alternativa, para aumentar o índice de acertos. Não deves te preocupar com isso, é só crendice. Qual é a probabilidade de termos filhos? Quase que de cem por cento. De termos mais de um? Também é alta a probabilidade, é assim que elas acertam as predições.

Naquele momento, Tereza permanecera pensativa, não lhe saía da cabeça a ideia de ter três filhos, ou dois, quem sabia.

Felintro Blanco e Tereza Terezinha de Albuquerque, ele, um próspero investidor imobiliário, com grandes sonhos políticos, ela, filha única de um rico fazendeiro de Bagé, que também era Deputado Estadual.

No final de 1948, Tereza concluiu a graduação em Biologia, uma grande festa de formatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Naquela noite, ela foi pedida em casamento, por Felintro, a data foi marcada para o dia 22 de maio de 1949. Eles contraíram matrimônio em uma grande festa e partiram em lua de mel, para o exterior, onde permaneceram por trinta dias.

Os primeiros anos de casados correram com absoluta e total felicidade: ele comandava seus investimentos com denodo, inteligência e o progresso era o resultado obtido.

Tereza, nesse interregno de tempo, fez cursos de mestrado com grande destaque e foi convidada a lecionar na Universidade Federal.

Felintro cumpria o mandato de vereador com grande destaque e fora eleito presidente da câmara de vereadores, iniciando a sua carreira política, com grande destaque.

Em julho de 1955, o casal resolveu que teriam o primeiro filho e a concepção ocorreu logo em seguida.

— Sabes, Tereza, tu és a grávida mais linda do mundo.

— Você é que é um pai coruja.

O período de gravidez foi dentro da mais absoluta normalidade. Tereza lecionou até o final de 1955.

ABRIL DE 1956

— Querido, acho que está chegando a hora — disse Tereza a seu esposo.

— Vamos marcar o ciclo da dor, aqui está o relógio, vou iniciar os preparativos para levá-la à clínica e avisar o médico.

— E, daí, doutor, como estão os gêmeos?

— Pelo exame por ultrassom, estão bem colocados para o nascimento. É só esperar que sua esposa tenha a dilatação necessária para o nascimento. Acabo de medicá-la para ativar a dilatação. Fique sossegado que logo os seus filhos nascerão.

— Embora seja o primeiro parto, eu estou tranquilo, vou aguardar na sala de espera.

Alguns minutos depois, a porta se abre, o médico se aproxima e diz:

— Vereador! Peço a sua permissão para, se for necessário, fazer cesariana.

— Alguma complicação doutor?

— Não, não, apenas quero evitar o sofrimento da sua esposa, se a dilatação não for suficiente.

— Está autorizado, doutor.

Pouco depois.

— Vai sair o primeiro, aqui está. — alcança o nascido para a enfermeira, que se retira com a criança.

— Aqui está o outro. — alcança-o para a outra enfermeira, que se retira com o neném.

O médico fica apenas com a enfermeira-chefe, que é quem finaliza os trabalhos de parto.

Ele pensa: ea! Há mais um — ele está vindo, aqui está ele estava escondido atrás dos outros, eu nunca o percebi em todos os exames que fiz na paciente. Ele apresenta má formação genética e é muito raquítico.

Ele o alcançou à enfermeira, e fez sinal para que o levasse dali. Logo se dirigiu a antessala, onde é feito o descarte dos materiais. Dirigindo-se à enfermeira-chefe disse:

— Pegue tudo e aos costumes faça o que tem de ser feito. Não comente nada com as demais enfermeiras e o leve daqui. Ele nunca nasceu. Entendeu, madame Stanton?

— Perfeitamente, doutor.

Ele retornou para atender à paciente.

Ela pegou o recém-nascido, enrolou-o em um lençol, juntamente com os restos do parto, e levou à sala de descartes, para o subsolo. Lá chegando, colocou-o sobre uma mesa e o descobriu, higienizou-o, ele movimentava os lábios, ela colocou o dedo mínimo em sua boca e ele o sugou com força. Examinou o menino, ele tinha o lado esquerdo menor do que o lado direito, no que se referia a braço e perna. Ela pensou. oque devo fazer, ele tem o bracinho esquerdo atrofiado e também a perna esquerda. Mas ele me parece forte e merece uma oportunidade. Devo pensar rapidamente e tomar a atitude certa, ele está vivo e se eu fizer o que o doutor quer terei cometido um assassinato. Por outro lado, se me recusar crio embaraço para nós todos. Ah, já sei o que vou fazer.

Ela enrolou-o em uma manta, colocou-o em uma sacola, levou para o pátio e escondeu entre as plantas do jardim. Pegou os restos e panos para os descartes e se dirigiu para a casa de caldeira. Aos costumes, o operador da caldeira abriu a porta e ela lançou o embrulho no fogo, ele logo fechou a porta.

Na sala de espera:

— Senhor vereador! Seus filhos já estão no berçário, dois belos meninos, não foi necessária a cesariana, nasceram de parto normal.

Madame Stanton chega a sua casa levando o nascido dentro da sacola.

— Alô! Fernanda, minha amiga, quer vir aqui em casa agora?

— Veja o que ganhei!

— Um neném! Que maravilha, é para você criar?

— Sim, mas tenho que lhe contar toda a história.

Após haver relatado todo o episódio. Fernanda disse:

— Então ele nunca nasceu?

— Sim, ainda mais que o doutor Harthur, em todo o tempo que durou a gravidez, nunca notou a presença dele. Como diria ao pai que eram três, e mais, que o terceiro era um aleijado.

Para todos os efeitos ele foi incinerado na caldeira.

— Mas, como vai adotar essa criança?

— Não vou, por hora, a manterei em sigilo e em alguns dias, mudarei de cidade ou até mesmo de estado, se for necessário.

— Eu posso cuidá-lo durante o dia, enquanto você trabalha, e você, à noite, enquanto eu trabalho.

— Você fará isso para mim?

— Com toda a certeza.

No dia seguinte:

— Madame Stanton! Como foi com o nasci morto, aliás era um feto.

— Aos costumes, foi incinerado na caldeira.

— Ótimos, assim todos ficarão felizes.

Dois dias depois:

— Vereador! Senhora! Aqui estaremos sempre às ordens — disse o doutor Harthur.

O casal, levando os dois bebês fortes e sadios, embarcam no automóvel e partem felizes.

Os primeiros dias foram de cuidados incessantes, de dia sua amiga se dedicava de corpo e alma àquela criança. À noite, madame Stanton não pregava olho, se recuperava do cansaço, em pequeno cochilo. Mas o menino era tranquilo, quase não chorava, e quando o fazia era de maneira que mal se percebia o chorinho. Assim se passaram trinta dias. O neném não corria mais perigo de vida, já dobrara de peso, e sorria ao ver madame Stanton.

Quarenta e cindo dias depois do nascimento.

— É isso, doutor. Eu resolvi retornar ao meu estado, minha mãe está necessitando dos meus cuidados. Sabe como é ela, é velhinha e eu sou filha única. Pretendo trabalhar no hospital da minha cidade, portanto necessito de uma carta de recomendação.

— A senhora sabe que nós a estimamos muito e que o seu lugar estará lhe esperando, é só desejar retornar. Vou autorizar a carta, como a senhora quiser. A propósito, aquele caso do natimorto, que foi incinerado, a senhora já esqueceu, não é?

— Se o senhor não falasse, eu nem lembraria.

— A senhora sabe, às vezes, temos que tomar certas atitudes para não tumultuar a vida dos outros e também a nossa.

— São águas passadas que não retornam ao moinho.

— Ótimo, que a senhora pense assim.

Algum tempo depois, em Florianópolis:

— Professor Pedro! Sei que o senhor é um homem muito ocupado, mas eu necessito de um professor particular para o meu filho. E fui informada que o senhor é a pessoa certa para ensiná-lo.

— Eu não tenho tempo, ainda mais para ministrar aulas particulares a uma só pessoa. E o meu trabalho custa caro, não compensa se for só para um aluno. Eu costumo lecionar para grupos de alunos.

— Eu tenho economias e posso custear o seu trabalho. O meu filho é deficiente físico, não posso colocá-lo em uma escola junto com os demais. Já lhe ensinei tudo o que sabia, tenho que procurar uma pessoa que saiba mais do que eu.

— Não lhe prometo nada, mas estarei em sua casa amanhã, às dez horas, para fazer uma avaliação do caso. Mas, me diga! Por que eu?

— As informações que tive é que o senhor leciona todas as disciplinas e é bem disso que necessito.

NO DIA SEGUINTE:

— Bom-dia madame Stanton! Como prometi, aqui estou.

— Entre, professor.

O professor Pedro adentrou na casa modesta e foi conduzido a uma sala de estudos. Sobre uma cadeira, estava um garotinho, pequeno, que o fitava com dois olhos vivos e penetrantes.

— Este é o meu filho, Marlon Stanton.

O garoto estendeu a mão direita e disse ao professor:

— Que bom que o senhor tenha vindo.

O professo Pedro ficou surpreso e disse, com voz titubeante:

— Não sei o que dizer, ele é um garotinho!

— Sim, professor, ele tem cinco anos apenas. E por incrível que pareça, nada mais tenho a lhe ensinar. Ele aprende com muita facilidade.

— Estou entusiasmado, o que lhe ensinou até agora?

— Ler, escrever, matemática, literatura, ciências, geografia, história e enfermagem. Enfim tudo o que sabia.

— Darei continuidade ao aprendizado. Porém, antes farei uma avaliação do que ele aprendeu até agora.

Horas depois:

— Incrível, madame Stanton! O seu filho é realmente um prodígio, sua intelecção é fabulosa.

Dois anos se passaram, o professor Pedro ensinara a Marlon Stanton tudo o que sabia e finalmente ele disse à senhora Stanton:

— Madame Stanton! Cheguei ao final dos ensinamentos. O Marlon agora terá que ter novos professores. Está preparado para cursar qualquer faculdade que desejar, ou até mais de uma, simultaneamente. Ele tem condições para isso. Nunca vi tamanha facilidade no aprendizado, parece que ele lê os meus pensamentos, às vezes, tenho a impressão que ele entende o que digo antes mesmo de eu ter dito.

— Mas, professor, ele tem apenas sete anos. Como irá cursar uma universidade, e a sua condição física?

— A senhora tem razão, fui invadido pelo entusiasmo.

— Vou deixar uma lista de livros para a senhora, assim ele se ocupa até que possa resolver o que vai fazer.

A lista tinha mais de cinquenta livros de todos os conhecimentos. Ela os apanhava na biblioteca da universidade e Marlon os lia. Certo dia, ele ficou admirado com uma obra de Leonardo Da Vinci e disse à mãe:

— Mãe! Quero conhecer as obras de Da Vinci e todos os seus trabalhos.

Inspirado nas obras de Da Vinci, Marlon começou a pintar. Já havia pintado mais de três dezenas de quadros, todos de ótima qualidade, quando sua mãe lhe disse:

— Meu filho, que achas de nós expormos os teus quadros?

— Ora, mamãe! Quem acreditaria que fui eu quem os pintou, além do mais, não quero ser pintor. Mas, como estamos em uma sociedade capitalista, acho que se eles tiverem algum valor, devemos vendê-los, mas, na condição que a senhora seja a criadora deles. — De forma alguma, como posso fazer tal coisa, como darei uma entrevista sobre os quadros?

— É muito simples, eu lhe digo o que deve dizer. Prometa apenas que vai pensar no assunto. A senhora até agora se sacrificou demais, está na hora de ganhar algum dinheiro.

— Assuma o seu talento.

— Não quero ter o meu tempo gasto em futilidades, como festas e entrevistas para os meios de comunicação. Tenho outras prioridades.

— Você já está com nove anos, pode bem assumir o seu talento como pintor.

— Pense nisso, mamãe, e depois conversaremos.

Três meses depois foi aberta a primeira mostra de pintura da madame Stanton. O sucesso foi fenomenal, seus quadros foram vendidos todos por preço nunca imaginado por ela. Apenas o professor Pedro, ao cumprimentá-la, disse:

— O menino é realmente genial, pena que não queira assumir a autoria das suas obras.

— Como sabe, professor?

— É fácil de ter deduzido, madame Stanton, eu o conheço muito bem.

O tempo foi passando, e quando Marlon Stanton completou vinte anos disse a sua mãe:

— Quero que a senhora compre o mais moderno dos computadores e o mande instalar aqui em casa.

Compre, também, estes livros de informática.

ALGUNS MESES DEPOIS:

— O que fez filho, você desmontou todo o computador.

— Sim, mamãe! Aqui tem uma lista de peças que quero que a senhora compre para mim. Pretendo ampliar a capacidade desse computador. Ah! Mais uma coisa, quero que a senhora compre uma casa maior, vou necessitar de mais espaço para o meu trabalho.

— Sim, mas você terá que pintar mais alguns quadros, para madame Stanton expor à venda.

Estudando com os seus próprios meios, pois se tornara, por força das circunstâncias, um auto didata, ele estudou, simultaneamente, as cinco principais línguas: alemão, inglês, espanhol, russo e italiano e se aperfeiçoou em computação avançada. Estudou cibernética, nanotecnologia, energia atômica e gravitacional. E, aos vinte e cinco anos, correspondia-se com as maiores autoridades nos diversos assuntos de seu interesse.

NO LABORATÓRIO DE ESTUDOS ESPACIAIS DA NASA.

— Veja, senhor, estamos recebendo uma mensagem telepática de um emissor não identificado. Ele está equacionando um algoritmo atômico de alta complexidade. Veja um receptor adequado, senão vamos perder toda a sequência. Ele parou a comunicação.

— Tente se comunicar com ele novamente, identifique sua procedência.

— Nada, senhor, ele não recebeu o “feedback” e cessou a comunicação.

— O que você conseguiu captar?

— Apenas que se tratava de um algoritmo que envolvia átomos de composição celular.

— Isso não nos levará a nada. Acharemos alguém que esteja tratando desse assunto.

— Alô, é do serviço de inteligência?!

— Sim, falando o controlador do sistema.

Aqui é o Almirante Mainarde, Bernardo Mainarde.

— Pode falar, Almirante, este telefone é do mais absoluto sigilo.

— Aqui é da NASA. Eu quero saber se há algum estudo ocorrendo, neste momento, que envolva nanotecnologia celular.

— Sim, General! Este estudo está sendo desenvolvido pelo centro experimental do Norte. Mas seu acesso é restrito.

— Recebemos uma mensagem telepática de alta intensidade, que se referia a algoritmo atômico celular de alta complexidade. Teria partido desse setor?

— Posso verificar e lhe responder dentro de alguns minutos.

— Por favor, eu espero.

— Alô senhor. Não, não foi emitida nenhuma mensagem telepática sobre o assunto.

— Muito obrigado. Estamos na mesma!

NA SEMANA SEGUINTE NA ALEMANHA:

— Senhor Günter! O que está havendo com você?

— Calma! Estou recebendo uma mensagem telepática muito importante.

— Senhor Günter! O senhor está se sentindo mal?

— Ele está lendo o meu cérebro, não consigo controlar a entrada e saída de informações do meu cérebro.

Alguns minutos depois, o professor Günter cai prostrado pelo cansaço mental. E, com voz titubeante, disse:

— A troca de informações se procedeu com grande rapidez, tive muita dificuldade de acompanhar o transmissor, e quando ele me fazia uma pergunta, parecia que a resposta era arrancada do meu cérebro. Nunca vi nada sequer parecido com isso.

JAPÃO, DEZ HORAS DA MANHÃ DE UM DETERMINADO DIA.

— Veja, professor Taqueda, o computador sênior parece que está louco, veja o que está recebendo.

— É a solução para a experiência, que estamos trabalhando há mais de dez anos. D onde está vindo a mensagem?

— Incrível, ele nos deu respostas, mas agora está copiando tudo o que temos no nosso computador, sem que lhe tenhamos dado acesso.

Marlon Stanton completara seus vinte e oito anos, era o ano de 1996, trabalhava dia e noite, descansando apenas quando a exaustão o dominava.

— Marlon! Está chegando um caminhão de mercadorias do exterior, custa a bagatela de 756.000 dólares.

— Temos dinheiro no banco, mamãe?

— Sim, mas ficaremos com pouco dinheiro, você terá que pintar mais alguns quadros para equilibrarmos o nosso caixa.

— Farei isso na semana que vem, após concluir a montagem desses equipamentos.

CAPÍTULO V

O SEQUESTRO

Ele acorda e olha para todos os lados. Está deitado em uma cama de casal, dentro de um quarto onde há um televisor, uma cômoda e.

um guarda roupa. Uma abertura, que poderia ser uma porta, que não existe, dá para outro cômodo. Ele levanta e se dirige à porta da cozinha, onde há um forno micro-ondas, um freezer, um refrigerador. Uma pequena mesa, uma cadeira e uma pia com torneira. Em outra peça, também sem porta, apenas existindo o vão aberto, há um chuveiro, uma pia e um vaso sanitário.

Ele lembra apenas que saíra da boate, pois, estava meio tonto e com enjoo, pegara um táxi e apagara por completo. Ele conclui que teria sido sequestrado. Volta ao quarto, uma cama, lençóis limpos, televisão, um leitor de DVD. Em cada peça, salvo no sanitário, uma câmara de TV, que captava a imagem de todo o ambiente. Na TV, uma mensagem pedia para que ele a ligasse. Ligou e logo apareceu uma imagem. Um palhaço, que lhe disse, com uma voz transformada:

— Bom-dia, senhor Agnaldo Dan Júnior! Como deve ter visto, no seu cativeiro há tudo o que não falta, há, há, há, há, há, mas se faltar alguma coisa, não peça, pois, o único meio de nos comunicarmos é através da televisão. Está previsto você permanecer aqui por, no máximo, quinze dias. Você foi sequestrado e o resgate deve ser pago em uma semana. Os viveres, que estão no apartamento, dão para uns quinze dias, ou pouco mais. Quem sabe uns dezoito dias. Se você for abandonado pelos seus pais, lastimarei muito a sua morte, que, certamente, ocorrerá daqui a uns vinte e dois ou vinte e três dias. Portanto, aproveite sua estada e boa sorte.

A imagem sumiu, o cativo mudou de canal e pôde constatar que a televisão pegava normalmente todos os canais locais.

Na residência da família Dan.

O telefone toca, todos estavam esperando uma ligação dos sequestradores. O senhor Agnaldo Dan, apressadamente, atende. O inspetor Jorge Madeira liga o gravador e o viva-voz:

— Senhor Dan! Seu filho está bem! Esta será a única ligação que você receberá de nós.

O rapaz está em um pequeno apartamento, de um quarto, cozinha e sanitários, eu diria que está confortavelmente instalado em um lugar ermo, onde jamais será encontrado. Você tem uma semana, a partir de agora, para providenciar o resgate de dois milhões de reais, em pequenas barras de ouro.

No oitavo dia, anuncie no Jornal Zero Hora, que você está vendendo um barco chamado Mangabeira, apenas o que é importante no anúncio é o nome do barco Mangabeira. Assim, saberei que tudo está arrumado. Mandarei um “motoboy” apanhar o pacote em seu escritório. Não esqueça que o seu filho está sozinho, ele tem água e viveres para apenas quinze dias.

Isto é tudo.

— Senhor Dan! Sei que não adiantará eu lhe dizer que não pague o resgate, eu, no seu lugar, pagaria, mas, como sabe, é meu dever lhe aconselhar dessa forma.

— Inspetor Madeira! Devemos nos organizar, eu providenciarei o dinheiro, enquanto o senhor toma as providências para encontrar o cativeiro.

A senhora Dan, desesperada, chorava e dizia:

— Nosso único filho, numa situação dessas, por dinheiro, se fôssemos pobres isto não teria acontecido.

— Senhor inspetor! Vamos providenciar um mandado judicial para verificar todos os edifícios da grande. Porto Alegre, em busca do cativeiro. — diz o empresário.

— Não teremos tempo disponível, além do mais, teríamos que verificar nas favelas e sítios de todo o estado.

— Mas podemos verificar os edifícios que tenham apartamento de três peças, essa foi uma pista que ele nos deixou.

— É uma possibilidade, mas poderá ser uma falsa pista, para nos fazer perder tempo. Pelo sim e pelo não, vou colocar um pessoal nas prefeituras da grande Porto Alegre, para verificar se há algum edifício com apartamentos com essa característica.

Cinco dias depois:

— Senhor Agnaldo Dan! Nós, da polícia, até o momento não obtivemos êxito. O senhor vai pagar o resgate? — perguntou o inspetor Jorge.

— Sim, pretendo fazer o pagamento, para daqui a três dias, como foi determinado, vou colocar o anúncio na Zero Hora. (Jornal de grande circulação).

— Nós gostaríamos do seu consentimento para seguirmos o “motoboy”, após este haver recebido o resgate.

— Não autorizo, não quero que nada dê errado.

— Muito bem! Respeitaremos o seu desejo.

Na delegacia de polícia:

— Amanhã será entregue o resgate do Dan Júnior. Quero que você, Carlos, filme tudo o que puder do “motoboy”, Você, Almeida, siga-o, a distância, e em hipótese alguma interfira, quero ver para onde ele vai. Usem motos para estarem nas mesmas condições do motoqueiro.

Na manhã do pagamento.

Passavam das dez horas, quando um “motoboy”, chega aos escritórios da Dan Investimentos Imobiliários do Sul S/A. O rapaz se dirige ao guarda e diz:

— Bom-dia! Eu vim buscar uma encomenda para o Barco Mangabeira.

— Alô, senhor Dan. Está aqui um “motoboy” que veio buscar uma encomenda para o Barco Mangabeira.

— Pode mandar subir.

— Bom- dia rapaz, aqui está a encomenda que veio buscar, tome cuidado, esta encomenda tem que chegar ao seu destino.

— Fique tranquilo, vou direto para o píer.

O rapaz afastou-se e o senhor Dan ficou pensando:

— Ninguém imaginou que pudesse ser um barco ancorado no píer. Ele deu uma pista e nós não notamos.

O motoqueiro deixa a incorporadora, levando o pesado saco de lona.

Os policiais cumpriam a sua missão, um filmou todos os detalhes do “motoboy”, o outro o seguiu a distância. No píer do Terceiro Pólo Petroquímico na cidade de Triunfo, um homem esperava o “motoboy”, pegou o saco, efetuou o pagamento, jogou o saco num pequeno barco, de competição, e partiu em disparada.

No cativeiro, o palhaço aparece na televisão e diz:

— Bom-dia, Dan Júnior! Chegou o dia da sua soltura. Tudo aconteceu dentro da mais perfeita ordem. Agora preciso da sua cooperação. Está vendo aquela caixinha em cima da cômoda, abra-a e retire o único comprimido que está dentro. Tome-o na frente da câmara para que eu verifique a veracidade da sua ação. Não se preocupe, irá dormir por algumas horas, e depois despertará num banco de praça, na frente de um telefone público, telefone para sua casa e tudo estará terminado.

Dois dias depois:

— Conte-nos tudo o que aconteceu, e como aconteceu. — disse o inspetor Madeira a Dan Júnior.

— Eu estava na boate com alguns amigos, após tomar uma única cerveja em latinha, me senti um pouco indisposto e fui ao banheiro. Lavei o rosto e retornei, mas como continuava meio tonto e com náuseas, resolvi ir para casa, ainda era cedo, devia ser em torno das 23 horas. Como de costume fui pegar um táxi, sinalizei para o primeiro que apareceu, o táxi parou e eu embarquei. Acho que apaguei no táxi. Quando acordei, estava numa espécie de apartamento, que consistia em um quarto, uma cozinha e um gabinete sanitário. Na tela do televisor, havia um cartaz que dizia que eu deveria ligá-la. Liguei, surgiu um palhaço, que disse que eu estava num cativeiro e que ali havia tudo o que não faltava, e deu uma risada. E se faltasse alguma coisa que eu não pedisse, pois, somente nos comunicaríamos pela televisão. Que estava previsto para eu permanecer, no máximo, quinze dias. Que eu tinha sido sequestrado, que o resgate devia ser pago em uma semana. Os viveres que havia no apartamento davam para mais ou menos quinze dias. Se eu fosse abandonado pelos meus pais, ele lastimaria muito a minha morte, que, certamente, ocorreria no vigésimo segundo, ou vigésimo terceiro dia. E me desejou boa-sorte.

O inspetor Jorge Madeira coçou o queixo, pensou por alguns instantes e disse: — Você ouviu algum barulho, quando não havia sons internos, isso é muito importante, pois poderá nos levar ao cativeiro.

— Eu passava todo o tempo assistindo à televisão, mas quando eu a desligava, não havia som algum, parecia que eu estava enterrado, não havia janelas ou portas que dessem para o exterior, apenas dois tubos de ventilação, um insuflava e o outro exaustava.

— O palhaço tinha algum detalhe que merecesse a sua atenção?

— Não, um palhaço como qualquer outro, nada que fosse significativo.

Mais tarde, na delegacia:

— É isso, senhor delegado, é um caso insolúvel, o sequestrador pegou a vítima desacordada e a levou para o cativeiro, para sair do cativeiro, retirou-o sem os sentidos.

— Isso quer dizer que não deixou nenhuma pista.

— É o que nos parece até o presente momento.

Seis meses depois:

— Inspetor, Jorge Madeira, parece que temos mais um sequestro do palhaço.

Vá imediatamente à residência da família Martinez Fernandes. Eles acabam de denunciar o desaparecimento de sua única filha, de dezenove anos.

— Já estou indo, onde está o endereço?

— Aqui está, vá imediatamente e coloque escuta no telefone e grave tudo, apresse-se que ele ainda não fez contato.

— Bom-dia, minha jovem! Antes de tudo me considere um amigo, que fará tudo para que você tenha uma boa estada nesse cafofo. Providenciamos o necessário para que não lhe faltasse nada. Filmoteca, livros, revistas das mais variadas, na tampa do freezer há uma carta de comidas congeladas, no refrigerador há leite, refrigerantes, frios e queijos. Você ficará hospedada por quinze dias, há câmaras em todos os cômodos, menos no banheiro, não quero invadir a sua privacidade, mas tenho que saber como você está a cada momento.

— O que é que estou fazendo aqui? Por que estou aqui?

— Fale sempre no microfone, para que eu possa ouvi-la. Por favor, repita a pergunta.

— O que é que estou fazendo aqui? Por que estou aqui?

— Você está fazendo parte de uma experiência científica. Na sua idade, há muitas incertezas, muita ansiedade, muita cobrança dos pais, dos professores, do namorado. Nesses quinze dias, você vai passar por uma reciclagem existencial. Dirá tudo o que quiser, eu lhe ouvirei, e se me pedir posso lhe dar orientações. Faz parte do projeto, que tudo o que necessitar deve estar ao seu alcance, mas limitado ao que está no apartamento. Nos primeiros dois dias, você ficará sozinha com os seus pensamentos. Procure fazer uma introspecção, pense, repasse toda a sua vida, veja todas as suas incertezas e ansiedade.

— Por que você está fantasiado de palhaço?

— Esta fantasia faz parte do projeto, você terá que confiar, ou não, em uma pessoa sem rosto definido, por isso, um palhaço. Boa-sorte, minha querida amiga, fique tranquila que o estarei observando pelas câmaras.

Na residência da família Martinez Fernandes:

— Sou o inspetor Madeira, do Departamento de Antissequestro.

— Eu sou Antônio Martinez Fernandes e esta é minha esposa, Margarida.

— Já fizeram contato?

— Não, senhor inspetor, ainda não.

— Vamos preparar um gravador e uma extensão do telefone. Mas o que lhes levou a considerar a hipótese de sequestro?

— O carro dela foi abandonado, com a chave na ignição, em uma rua deserta.

— A polícia já examinou o carro?

— Sim, foi enviado para a delegacia.

— Bem! Não quero, preocupar mais do que já estão, mas, há a possibilidade de sua filha haver sido sequestrada pelo palhaço. E, se for o caso, será o segundo sequestro deste bandido, ou bandidos.

Ele age, ou agem, de uma forma consistente, não deixando qualquer alternativa para negociação. Dão apenas um telefonema, onde confirma o sequestro e pede o resgate.

A senhora Martinez ficou nervosa e desatou em choro profundo, lastimando os acontecimentos. O homem correu para lhe

fornecer um copo de água e um comprimido para os nervos. Nesse interregno de tempo, o telefone soou, e o senhor Antônio se encontrava na cozinha, sendo chamado imediatamente. O telefone tocou três vezes e desligou, antes de ser atendido.

— Senhor Antônio, acho que seria de bom alvitre levar a sua esposa para o quarto e deitá-la. E nós permaneceremos junto ao telefone, nunca se sabe o que um maníaco desses está pensando.

Os dois homens permaneceram na sala, olhando atentamente para o telefone, quando o senhor Antônio perguntou:

— Como terminou o sequestro ao qual o senhor se referiu?

— O resgate foi pago e o rapaz foi solto. Mas não obtivemos nenhuma pista que nos levasse ao sequestrador.

— E de quanto foi o resgate?

— Dois milhões de reais em barras de ouro.

— Puxa, isso é muito dinheiro. O pai do garoto tinha muito dinheiro?

— Era um empresário de sucesso como o senhor.

O telefone toca e o senhor Antônio pega o fone. O inspetor liga o gravador e pega a extensão.

— Alô! Residência da família Martinez, falando Antônio Martinez.

— Prestes à máxima atenção, que falarei apenas por uma vez. Sua filha foi sequestrada e se encontra bem. Você terá uma semana para providenciar o resgate de dois milhões de reais em pequenas barras de ouro. No local onde se encontra sua filha há água e alimentos para apenas quinze dias. Daqui a oito dias, o senhor deve colocar um pequeno anúncio na Zero Hora, que mencione que o avião Mangabeira está pronto. O importante é a palavra Mangabeira. No dia seguinte, o ouro será apanhado por um “motoboy”. Não preciso dizer que o rapaz não deve ser seguido pela polícia. Se o for, ele não fará a entrega e sua filha se perderá. Ah! Tem mais, se quiser ver a sua filha no cativeiro basta acessar o site WWW.corean.com e poderá acompanhar tudo o que está acontecendo com ela.

O telefone foi desligado.

— Há como saber o local da ligação — indagou o senhor Martinez.

— Sim, mas já posso lhe adiantar que foi de um orelhão. — informou o inspetor Madeira.

— Vamos sintonizar o site que ele indicou na internet. — disse o inspetor Madeira.

Todos se dirigem à sala de leitura onde estão instalados dois microcomputadores ligados à internet.

— Como é mesmo o site? — perguntou o senhor Antônio Martinez.

— www.corean.com...

— Veja, que filho da mãe! Ela se encontra dentro de um pequeno apartamento, sem portas e sem janelas.

— Ela está assistindo à televisão. E parece que está tranquila.

— Vou consultar um especialista em internet, para ver se podemos descobrir alguma coisa. — disse o senhor Antônio.

Dois dias depois no cativeiro:

— Bom-dia, minha querida amiga! Como tem passado?

— Bem até aqui!

— Fez a sua introspecção?

— Sim, tem alguns pontos da minha vida que devo reconsiderar.

— Quer falar sobre isso?

— No momento, não estou preparada, talvez mais tarde.

— Já examinou os DVDs de filmes que selecionei para você?

— Sim, já assisti a alguns dos filmes, muito bom gosto.

— São velhos clássicos, imaginei que você teria assistido a todos os filmes novos.

— Há aí também tem jogo de xadrez, você joga, gostaria de jogar xadrez?

— Eu não sei jogar xadrez, gostaria muito de aprender.

— Eu vou ensiná-la a jogar.

— Eu tenho uma preocupação! Os meus pais sabem que estou participando deste “realityshow”?

— Claro, minha querida amiga. Seus pais têm acesso às imagens produzidas pelas câmaras, que estão instaladas, só que no programa.

estabelecido você não pode se comunicar com eles.

— Ah! Assim eu fico mais despreocupada. Tem mais uma coisa de que eu necessito. Eu estou acostumada a fazer exercícios físicos, como caminhadas na esteira e ginástica aeróbica.

— Não se preocupe, pensei nisso também, você encontra nos DVDs, um disco com exercícios. Coloque você coloca no leitor de DVD e assisto na televisão, podendo copiar os exercícios.

Na TV Alcântara.

— Quero falar com o senhor Alcântara.

— Um momento, por favor, que vou transferir a ligação.

— Bom-dia, senhor Alcântara! O senhor teria interesse em transmitir em tempo integral um “realityshow”. Trata-se de um sequestro, as imagens via internet estarão disponíveis por um preço razoável. Dê uma espiadela, o site é WWW.corean.com... Mais tarde nós falaremos.

O telefone foi desligado.

— Quero uma reunião com toda a equipe de produção imediatamente.

Na sala de reuniões:

— Bem, senhores, isso é tudo, quero as suas opiniões. — disse o senhor Alcântara.

— Eu peço a palavra! Como diretor de programação, não posso deixar de dizer que esta é uma oportunidade rara para aumentarmos a nossa audiência. E até mesmo uma chance de ajudarmos, pois, o meu ver, devemos comunicar imediatamente a polícia.

— Aceito a moção. — disse o senhor Alcântara. — Chamem um representante da polícia e do ministério público, queremos fazer a coisa às claras.

Duas horas depois, na mesma sala de reuniões, na presença do Delegado Geral e do Promotor Público.

— É isso aí, senhores! Temos a chance de tentar envolver o sequestrador em uma malha, de tal forma que poderemos localizar o cativeiro. Somente por isso é que concordo com a recepção das imagens, porém devem ser filtradas, antes de irem a público. — disse o promotor.

No dia seguinte:

O telefone toca.

— Alô, é Alcântara, pode falar.

— Bom-dia, senhor Alcântara, o que resolveu, vai querer as imagens?

— Sim, mas temos que negociar.

— Eu quero lhe disponibilizar duas horas de imagem por dia, ao preço de cem mil reais por hora.

— Isso não funciona assim, na televisão. Primeiro, eu tenho que vender estes espaços para os clientes que farão suas propagandas nesse horário.

— Se o senhor não acha interessante, vou procurar outro canal.

— Não, não é isso, apenas necessito de tempo para vender os reclames.

— Quanto tempo o senhor quer que eu espere?

— Um dia, quem sabe, dois. Mas eu tenho que dispor de algumas imagens e fazer as chamadas, nos programas policiais. Assim, ficará mais fácil de vender os espaços.

— Pois bem, vou ceder-lhe algumas imagens, o melhor, vou ceder-lhe cinco minutos de gravação. Acesso o site WWW.corean.com..., dentro de uma hora, e terá as imagens.

A polícia e a promotoria pública recebem as imagens e, junto com a família da vítima, autorizam que fosse veiculada na televisão.

Pela comoção social causada, não foi difícil achar patrocinadores e a televisão Alcântara passou a transmitir imagens diretas do cativeiro, a cada duas horas, em pequenos “flashes”.

A família Martinez Fernandes não perdeu tempo e, antes do dia aprazado, já tinha reunido o dinheiro e o convertido em pequenas barras de ouro. A Televisão Alcântara, a essa altura dos acontecimentos, já devia mais de dois milhões de reais ao sequestrador, que exigiu que a quantia fosse entregue a família Martinez, para que a entrega fosse feita junto com o resgate.

O “motoboy” deveria apanhar o pacote no dia seguinte, às dez horas. Por isso, o inspetor Madeira fez uma reunião com todos os interessados no caso. E dizia:

— Esperamos que ele cometa algum erro, para que possamos descobrir o cativeiro. A Televisão Alcântara deve ficar conectada,

talvez ele solte alguma imagem que nos permita uma pista.

Respeitamos a decisão da família e não interviremos na entrega do resgate. Não devemos subestimar o sequestrador. Trata-se de uma pessoa astuta e resoluta, suas ações são precisas e cremos que não hesitaria em cumprir as ameaças.

Na delegacia, fala o inspetor Madeira:

— Artêmio! Você acompanhará o motoboy a distância, mas não o perca de vista. E, em hipótese alguma, intervenha. Pedrão! Você vai com mais cinco policiais disfarçados e permanece no aeroporto, pode não dar em nada, mas ele, dessa vez, nos deu uma pista, ao mandar fazer o anúncio, que pode nos levar ao aeroporto. Não façam nenhuma prisão, apenas vejam para quem o “motoboy” entrega a encomenda e o sigam sem intervir. Não esqueçam! Só nos interessa descobrir o cativeiro.

No dia da entrega:

Às dez horas, em ponto, chega o “motoboy”, bate à porta e diz:

— Bom-dia, senhor, vim pegar a encomenda do senhor Mangabeira.

-Ah, sim, aqui está!

Um saco de encomendas lacrado e com um cadeado foi entregue ao rapaz, que montou em sua moto e saiu normalmente, tomando rumando para o aeroporto.

A moto entrou no Túnel da Conceição e quando saiu no outro lado já estava sem o saco no bagageiro da moto. O motoqueiro policial que estava lhe seguindo adentra no túnel e nada percebe. Já do lado de fora do túnel ele recebe uma ligação no celular, que lhe diz não haver mais necessidade de seguir o motoqueiro, pois ele desovou a carga dentro do túnel. Era o controlador da missão.

No dia seguinte, o sol despontava no horizonte, na Avenida Praia de Belas, uma jovem desperta e se vê sentada de costas para uma parede, a sua frente, um telefone público. Ela levanta meio cambaleando, se segura na parede, vai até o telefone e liga.

— Alô, pai?

— Minha filha, onde você está?

— Acho que na Praia de Belas, nas imediações da Avenida Ipiranga.

— Fique aí que já estou indo à sua procura.

No mesmo dia, o inspetor Madeira manda buscar o “motoboy”. Aos costumes, ele responde que havia recebido um comunicador ao qual deveria atender quando chamasse. Antes de entrar no Túnel da Conceição, o aparelho chamou e lhe disse que deveria largar no túnel a encomenda. Ele simplesmente parou, largou a bolsa e continuou em frente.

Quando perguntado sobre o contato feito para a contratação do serviço, disse que um homem lhe havia procurado para o trabalho, dizendo que ia correr uma grana preta no negócio e que ele iria apenas fazer uma apanha e levar para o Aeroporto Salgado Filho, onde um homem lhe procuraria.

O rapaz foi dispensado. O inspetor Madeira disse:

— O “motoboy” foi como o outro, um inocente útil, não descobriremos nada com ele.

CAPÍTULO VI

O SEQUESTRO DOS FILHOS DE FELINTRO.

Passava das duas horas da madrugada de um sábado. A festa estava animada, a rapaziada.

dançava ao som de música pop. O piscar das luzes multicoloridas dava ao ambiente um êxtase e fazia com que todos soltassem as amarras que os prendiam à moral e aos bons costumes, tudo era permissível. Jovens com os seios desnudos e olhos arregalados, dando sinais de estarem entorpecidos.

Os gêmeos, Ricardo e Roberto Blanco, estavam se divertindo e, naquele momento, estavam no bar, tomando cerveja, quando Ricardo diz a Roberto:

— Mano, estou me sentindo tonto, parece que o salão está girando e a música está retumbando, dentro do meu cérebro.

— Queres ir embora mano?

Olhando o relógio-pulseira, diz:

— Já passam das duas horas, podemos ir.

— Acho que devemos, mas devo me segurar em ti, pois estou tonto. E não é bebedeira, só tomamos uma cerveja até agora.

Os dois irmãos saem da festa, um amparando o outro. Roberto chama um táxi que lentamente estava se aproximando. Entram no banco de trás e o carro sai.

Na residência do deputado estadual Felintro Blanco.

Naquele mesmo sábado:

— Querida, onde estão os rapazes, não querem levantar hoje, já passam das dez horas.

Tereza vai ao quarto de Roberto e constata que ele não dormiu em casa, vai ao quarto de Ricardo e, a mesma coisa. Ela pensa: nunca fizeram isso juntos, já deviam estar de volta da balada.

— Querido, eles não estão em casa.

— Estranho, eles sempre avisam quando vão dormir fora de casa. Vou telefonar para as namoradas deles.

Ao mesmo tempo, cada um com um telefone, buscam os filhos.

— Alô! Bom-dia, Judite, o Roberto está aí?

— Não sogra, ele não está.

— Dormiu aí à noite?

— Não, saiu aqui de casa por volta das onze horas.

Com Ricardo foi a mesma coisa.

— Onde estarão esses garotos? — perguntava Felintro a Tereza.

Ela lhe dizia:

— Daqui a pouco eles telefonam. — Escondendo um mau pressentimento.

Às quatorze horas, o telefone toca e Felintro vai atender. A voz disse:

— Preste bem atenção que lhe farei apenas esta ligação. Seus filhos foram sequestrados e estão em um lugar onde há água e alimentos apenas para quinze dias. Poderá vê-los na web, no site WWW.corean.com. O resgate é de quatro milhões de reais. Daqui a sete dias, você deve ter o dinheiro convertido em pequenas barras de ouro e deverá sair, no jornal Zero Hora, um anúncio que diga: “O cavalo Mangabeira é o mais cotado para ganhar o sétimo páreo.” Um “motoboy”, no dia seguinte, irá buscar o resgate em sua residência. Se alguma coisa der errado e o resgate não chegar as minhas mãos os garotos morrerão de sede e fome.

A polícia foi informada, tendo comparecido o inspetor Madeira.

— Bom-dia, deputado, bom-dia, professora. Sou o inspetor Madeira, em que lhe posso ser útil?

O casal conta os últimos acontecimentos. O inspetor houve-os atentamente e no final lhes diz:

— Este é o terceiro sequestro do palhaço. Palhaço é a alcunha desse bandido, ele se apresenta às vítimas, travestido de palhaço. No seu último sequestro, ele expôs a vítima no cativeiro, à audiência pública, através da televisão e internet.

— Me diga — intervém Tereza — E como terminaram os sequestros?

— Os resgates foram pagos e as vítimas foram libertadas.

— Inspetor, como deputado estadual, do Rio Grande do Sul, eu tenho que confiar no nosso sistema e, consequentemente, seguir as instruções da polícia. O que o senhor tem a nos recomendar?

— É inevitável o pagamento do resgate. Nos demais casos, a polícia se manteve a distância e não interferiu em momento algum. O senhor tem como providenciar o resgate?

— Sim

- Pois então providencie e siga as instruções.

— Ah! Também tem um anúncio no jornal que deve ocorrer dentro de sete dias.

— Faça isso também.

— Tem mais, ele disse que eu poderia vê-los no site WWW.corean.com…

— Vamos verificar o site.

— Por aqui! Vamos à sala de informática.

No site, eles puderam ver os dois rapazes, em uma espécie de apartamento. O inspetor Madeira disse.

— O mesmo cativeiro do último sequestro.

Na tela, apareceram os dois rapazes, deitados um em cada cama, assistindo à televisão.

— Parece que estão bem. — disse o deputado.

— Sim, eles não serão admoestados, ao menos os outros não foram.

— A televisão Alcântara foi contatada e todo o sistema judiciário tomou conhecimento. Os “flashes” seriam de cinco minutos a cada duas horas, repetidos nos telejornais.

Sete dias depois sai no Jornal Zero. Hora o anúncio que dizia “O cavalo Mangabeira é o mais cotado para ganhar o sétimo páreo”.

No dia seguinte, às dez horas, chega o “motoboy” na residência do deputado Felintro. Dois sacos, um contendo as barras de ouro e o outro o valor do pagamento da rede de televisão, foram entregues ao motoqueiro, que, ao chegar, disse que viera apanhar a encomenda do senhor Mangabeira. Arrumou os dois sacos no bagageiro da moto e partiu. O comunicador que recebera do cliente toca e ele atende, a voz disse:

— Aqui é o senhor Mangabeira, dirija-se para o hipódromo.

Cinco minutos depois, o telefone toca mais uma vez e ele atende.

— Diminua a velocidade; a dois quarteirões, há um Fiat vermelho, parado no acostamento, a janela está aberta, lance os sacos para dentro do carro e vá embora.

O “motoboy” faz o que fora ordenado e se afasta. O carro arranca e sai em velocidade normal. O policial, que estava seguindo o motoqueiro, passa a perseguir o carro e entra em contato, pelo rádio, com o controle das ações. Quando o Fiat vermelho entre na rodovia é abalroado por um caminhão. O motorista, ferido, é levado ao hospital mais próximo, o dinheiro é recuperado.

No hospital, o homem se identifica, tratava-se de um simples serviçal que fora contratado para pegar os sacos que seriam entregues por um motoqueiro e que, quando estivesse com os mesmos, receberia ligação de um comunicador que lhe fora dado pelo contratante. Tudo tinha saído errado, o resgate não fora entregue, os rapazes corriam risco de vida.

Diz o inspetor Madeira ao Deputado Felintro:

— É isso, deputado, a coisa saiu errada, eles pensaram que o sequestrador estivesse no carro que recebera os sacos. Ledo engano, apenas era mais um mensageiro inocente.

— Mas, inspetor! Foi combinado que a polícia não interferiria na entrega.

— Eu sei. Houve um acidente e o motorista foi levado para o hospital. A polícia jamais interferiria se não tivesse havido o acidente.

— E agora, o que faremos?

— Na internet podemos ver os rapazes, eles estão bem. Esperaremos que o palhaço entre em contato novamente.

A comoção social foi enorme. Os rapazes eram vistos diariamente por quase toda a população e ninguém podia fazer nada. Chega o décimo quinto dia, a comida já tinha terminado, a água estava no fim.

Morreriam de sede antes de morrerem de fome.

Décimo sexto dia, eles batiam nas paredes, gritavam, todos ouviam e viam, mas ninguém podia fazer nada.

No laboratório de Marlon Stanton.

— Bom-dia, meu filho. Quero que veja o site WWW.corean.com.

— Estou muito ocupado nesse momento mãe, depois farei o que está mandando.

— Não, meu filho, isso é muito sério, faça-o agora.

Na tela do computador, apareciam dois jovens se debatendo e gritando.

— Quem são eles, mãe?

— São filhos do deputado Felintro.

— Nunca ouvi falar.

— Preste atenção na história que lhe vou contar.

Madame Stanton conta a Marlon Stanton toda a sua história e finalmente lhe diz.

— Esses dois jovens são seus irmãos. O deputado Felintro é seu pai.

— O que está acontecendo com eles? Por que estão se debatendo?

— Eles estão morrendo de fome e sede se não forem logo libertados. Há poucos instantes é que liguei os fatos e os nomes, afinal faz muitos anos.

— Sei o que a senhora está querendo, de nada valeria eu entrar em contato com eles, mas o farei.

Marlon examina as mentes dos irmãos e logo diz a mãe.

— Eles não sabem onde estão. Tenho que entrar em contato com o sequestrador.

Ele tenta achar a resposta em todas as mentes que estava ao seu alcance, fazendo as seguintes perguntas:

— Quem sabe onde é o cativeiro, em que estão dois rapazes, filhos do deputado Felintro? Estou fazendo contato.

Ele vê nitidamente um casarão centenário de alvenaria, com duas grandes janelas, na lateral de uma porta, na parte superior da porta ele vê um círculo com um cavalo dentro. Três figueiras de grande porte, sendo duas retas e uma curvada, estão dispostas na frente da casa, mais para a direita de quem está de frente para a casa, a contemplá-la. Através da leitura da mente do informante mental, ele pode ver o interior, onde estão os dois jovens.

Marlon diz à mãe:

— Mãe! Eles estão num lugar onde há três figueiras e uma casa enorme, que tem um grande círculo na alvenaria na parte superior de onde está à porta de entrada, dentro do círculo há um cavalo em relevo.

— Filho! Podes desenhar isso, que eu levo para a delegacia.

— Posso, sim.

Ele pega uma folha de papel e um lápis e, em menos de quinze minutos, o desenho estava pronto.

— É neste local que eles estão.

Madame Stanton vai até o telefone, liga para a delegacia e diz que seu filho é paranormal e que recebeu as imagens do cativeiro onde estão os rapazes.

O inspetor Madeira recebe o desenho e diz:

— Minha senhora! Não temos tempo, os rapazes estão morrendo, necessitamos mais do que isso, as buscas podem levar dias, e até mesmo poderão ser a imaginação de quem, querendo ajudar, não esteja na pista correta. Mas valeu, vamos ver o que podemos fazer com isso.

Dirigindo-se aos demais policiais encarregados do caso.

— Pessoal, aqui temos as imagens que um sensitivo encontrou, poderá ser uma pista ou não, em todo o caso, não vamos subestimar. Envie cópia, por fax, a todas as delegacias de nossa jurisdição e mandem procurar. Vou colocar três helicópteros a procurar a casa com as três figueiras.

Em casa, Madame Stanton diz a Marlon:

— Meu filho! A polícia vai trabalhar com o auxílio de todas as demais delegacias e de três helicópteros.

Dois dias se passam e a polícia não descobre a casa desenhada por Marlon.

— Bom-dia, madame Stanton, não foi o suficiente, temos que obter mais informações do seu filho vidente.

— Vou ver o que posso fazer. Retorno-lhe se obtiver êxito.

Meu filho, a polícia não descobriu nada até agora, as informações não foram suficientes, disse o inspetor, que poderá levar dias até que seja encontrada a casa, enquanto que o tempo é precioso, os rapazes estão em estado de penúria.

— Vou tentar captar mais informações.

Vejo uma estrada com grande movimentação de veículos, uma bifurcação para a direita e a ponte que passa por cima da estrada. Está bem nítida em minha mente. Tenho que descobrir onde é essa estrada que tem uma ponte para entrar para a esquerda.

Marlon procura no computador, no Google Earth, exaustivamente. Após horas de procura, ele se depara com a estrada, e pensa: É esta aqui, vai para Caxias do Sul, e o pontilhão é a.

entrada que vai para São Vendelino.vu entrar em contato novamente com o informante mental.

Ele lança a pesquisa e novamente está lendo a mente do que seria o informante.

— Segue para a direita, atravessa o pontilhão e segue para São Vendelino.

— Mãe, é em São Vendelino.

— Vou ligar já para o inspetor Madeira.

— Muito obrigado, agora fica mais fácil, vamos agir rapidamente.

Mas a procura levou ainda mais um dia e o cativeiro finalmente foi encontrado. Lá estavam as três figueiras, a casa antiga com todos os detalhes que havia no desenho.

A polícia estoura o cativeiro, não havia ninguém guarnecendo o local, a porta é arrombada e dá em uma parede de tijolos, por trás da porta. Arrombaram as janelas e a mesma coisa. Usando pesadas marretas, os policiais quebram as grossas paredes de tijolos maciços. Por trás das paredes de alvenaria havia uma parede de madeira. Finalmente, arrombam a parede de madeira e chegam ao interior do cativeiro, onde estavam os dois rapazes desfalecidos.

Em uma verificação mais acurada, foi constatado que ambos estavam mortos. Os policiais entraram em desespero, todos choravam. Muitos deles estavam sem dormir há mais de três dias e, finalmente, a grande decepção.

No cativeiro, nenhuma pista que levasse ao palhaço fora encontrada. O vilão continuaria liberto e certamente haveria novas vítimas.

Madame Stanton diz a Marlon.

— Meu filho, você é o único filho que restou aos seus pais legítimos, você não acha que deveria procurá-los?

— Não, minha mãe, eles apenas me concederam a vida, nada tenho a ver com eles, prefiro ficar com a senhora que, além de haver salvado a minha vida, me deu amor e muito carinho. Eles sobreviverão sem mim.

Tereza entrou em depressão profunda, o deputado Felintro fazia tudo o que lhe era possível para tirá-la do estado de angústia que lhe assolara. Levou a esposa a diversos especialistas sem que algum resultado fosse obtido. Preocupado com o estado de sua esposa, o deputado não teve tempo de sofrer a perda dos filhos queridos, nem tampouco para exercer o seu mandato. Pediu licença e se afastou da política. Dez anos de puro sofrimento e Tereza morre em estado lamentável de prostração. Após o enterro de Tereza, Felintro decide retornar a Rio Grande, onde iria passar os seus últimos dias. Passou a se alimentar de recordações, vivendo da sala para a cozinha e da cozinha para o quarto. Aos oitenta e nove anos, um câncer de próstata estava lhe destruindo, mas ele continuava levando a vida.

Juliana, nessa mesma época, tinha retornado ao centro espírita, após uma ordem judicial, onde o presidente do centro, o senhor Ercílio, assumira a total responsabilidade sobre a demente, assumindo o compromisso de ampará-la, até seus últimos dias.

Hortênsia, a diarista, viria no dia seguinte. Ele ansiava pelo dia que ela vinha, teria comida feita na hora e receberia mais uma calcinha para cheirar. Sem falar que a companhia da doméstica lhe agradava sobremaneira.

Mas algo estava lhe preocupando a sensação que tinha de ter o desejo de ver o nascer do sol nas dunas da Praia do Cassino. Essa vontade não lhe saía do pensamento. Chegava a ser irracional, uma espécie de compulsão irresistível.

— Hortênsia! Quero que me faças um grande favor. Quando saíres, passa na casa do motorista de praça, Pedro Marquetote, ele mora ali naquela esquina, na frente do Colégio Liceu Salesiano. Pede a ele que venha aqui em casa falar comigo. Se ele não estiver deixa o recado com a esposa dele.

Ao mesmo tempo, Juliana, no centro espírita na cidade de Áurea do Sul, diz ao senhor Ercílio, em voz clara, como quando está respondendo a uma consulta.

— Senhor Ercílio! Eu tenho que ir a Rio Grande, na Praia do Cassino.

— O que é que a senhora quer lá naquela lonjura?

— Eu tenho que estar lá, dentro de dois dias.

Ela não falou mais nada. Ercílio, que respeitava os ditos da velha, providenciou um carro, colocou-a dentro e rumou para o Rio Grande.

Enquanto isso, Felintro recebe o motorista Pedro em sua casa.

— Pois é seu Pedro, eu quero que o senhor me leve hoje à praia do Cassino. Devemos sair daqui por volta das três horas da manhã. Eu quero ver o nascer do sol, o senhor me deixa lá e retorna. Poderá vir me buscas depois que o sol nascer.

— Mas o senhor vai ficar lá sozinho?

— Não se preocupe, senhor Pedro. Eu já estou mais para lá do que para cá, não fará diferença se eu morrer na praia.

— O senhor manda, estarei aqui conforme quer.

Eles chegaram à praia, a noite estava clara, a lua nova clareava a maior praia do mundo. O carro adentrou na areia e seguiu sulcando o solo entre a água e as dunas. Mais de dois quilômetros percorridos, e o passageiro pediu que o taxista parasse, desceu e seguiu rumo às dunas.

Alguns minutos depois, chega Ercílio com a velha bruxa.

— Aqui estamos. E agora o que vai ser?

— Eu apenas quero apreciar o nascer do sol. Retorne quando o sol estiver brilhando.

A velha bruxa segue o caminho da praia. Felintro contempla o oceano de cima de uma duna, quando olha para o largo da praia e vê um vulto que se aproxima, lentamente, com os pés descalços, sulcando a areia úmida da praia. Ela se aproxima dele, ambos se abraçam e ficam ali imóveis, como à espera de algum acontecimento inevitável.

No infinito do oceano, relâmpagos e clarões acontecem. O casal apenas observa. Uma luz em forma de roda, veloz, se aproxima. Quando sobre suas cabeças lhes envolve, eles são elevados para seu interior. Com uma aceleração estonteante, a luz se projeta oceano adentro, para abruptamente e os dois são lançados na entrada da grande concha. Seus corpos mergulham em uma pasta grudenta, em estado gelatinoso. E ali permanecem, dormem, acordam, cumprem um lapso de tempo necessário, não sabem quando tempo ali ficam. Eles são levados pelo transporte luminoso para a mesma sala onde antes estiveram. As duas criaturas resplandecentes os rodeiam e dizem uma outra, com a voz da mente.

Eles não mereciam o destino que lhes impingimos, infelizmente, tudo deu errado. A fêmea, que deveria orientar os mais humildes, da sua espécie, em suas dificuldades, formando um elo de comunicação entre nós e os seus semelhantes, logo que foi devolvida, após haver retornar a sua vida normal, sofreu um acidente que comprometeu o seu cérebro, sendo internada como louca, onde permanece por mais de quarenta anos.

O macho, livre de seus vícios, deveria seguir a política e ser útil a seus semelhantes, dando exemplos de dignidade e lisura, além de levar consigo uma carga genética extra que lhe daria um filho com grande força mental. Tal filho, ao nascer, além de conter defeito físico, sofreu o que se pode dizer de uma obra do acaso e foi separado dos pais. A fatalidade levou à morte os seus outros filhos e ele se jogou no ostracismo.

Vamos reparar o nosso equívoco. Eles devem retornar no tempo e tudo deve ser esquecido, ou seja, nunca aconteceu. Assim, poderão viver suas vidas com o seu livre arbítrio, fazendo o seu próprio destino.

— Veja, Juliana! Lá no horizonte, parecem relâmpagos de grande intensidade, será que vai chover?

— Não, não marca chuva para hoje.

Deitado sobre a areia, que ainda estava morna, pelo calor recebido de um dia ensolarado, eles contemplavam as ondas, os relâmpagos no infinito do oceano revolto. Olhavam para o céu, estrelas cintilantes brilhavam à noite. Uma brisa vinda do oceano acariciava suas faces, dando-lhes uma sensação de frescor e liberdade. O silêncio profundo lhes induzia a tomarem atitudes e desejo de acasalamento. Felintro ergue o corpo e se coloca sobre o corpo de Juliana, mansamente aproxima seus lábios e os encosta delicadamente nos dela. As vestes são despojadas e jogadas ao lado. Fazem amor e voltam à posição de contemplação do infinito do oceano.

— Veja, Juliana, os primeiros raios de sol estão começando a aparecer.

— Acredite se quiser, mas é a primeira vez que vejo o raiar do sol e o amanhecer de um novo dia.

O sol se desprendera do oceano e se apresentava por inteiro, entre nuvens que bordavam o céu azul. Eles se levantaram, sacudiram a areia e, de mãos dadas, retornaram pela praia. As pegadas na areia pareciam mais leves, a água, que, de vez em quando, banhava os seus pés, lhes desejava uma vida profícua e cheia de aventuras.

Otrebor Ozodrac
Enviado por Otrebor Ozodrac em 10/01/2023
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