AMORA

O enorme portão frontal da penitenciária feminina deslizou lentamente sobre o trilho, acionado pelo guarda no interior da guarita suspensa. Aos poucos uma paisagem formada por veículos, pessoas, e um matagal em segundo plano materializou-se diante de Amora. Ela atravessou o limiar, saindo do complexo prisional. E foi como se, a partir daquele exato momento, o tempo começasse a avançar no seu ritmo normal. Nos vinte anos em que passou cumprindo pena estivera dentro de uma bolha atemporal, na qual as horas correm muito mais lentamente do que no mundo exterior. Respirou fundo o ar da manhã, impregnado de monóxido de carbono dos veículos, é verdade, mas ainda sim era o ar da liberdade.

Começou a caminhar ao longo da calçada. Tinha em mente pegar um ônibus e ir para um lugar que era a única opção que tinha no momento: a casa de sua mãe. Nem ela nem ninguém da família a visitou uma única vez na prisão. Se quem a pariu não teve a consideração de ir lá vê-la, que dirá o resto. Uma sensação de desamparo e solidão a dominou subitamente. E de repente foi como se tivesse completamente sozinha no mundo.

___ Amora. ___ Uma voz chamou. Virou-se e viu no acostamento, no outro lado da rua, uma mulher lhe acenando de detrás da porta aberta de um carro. Levou alguns segundos para reconhecer sua amiga Letícia. Amora foi ao seu encontro exibindo um largo sorriso de satisfação. Abraçaram-se.

___ Como soube que eu ia sair hoje? ___ Perguntou Amora.

___ Procurei saber com seu advogado. Que bom que você saiu desse inferno, amiga.

___ Nem me fale.

___ entra.

Amora acomodou-se no assento traseiro. Letícia colocou o veículo em movimento, integrando-se ao trânsito pouco intenso do local.

___ Quanto tempo, Hein? ___ Disse Letícia. ___ Não teve um só dia que eu não pensasse em você, Amora. Juro.

___ Eu sei. Minha mãe, minha família é que parece que me esqueceram. Nem um deles me fez uma visita sequer em todos esses vinte anos que estive presa. Nem mesmo tia Beatriz que vivia dizendo que me tinha como uma filha. De tia Thaís eu não esperava outra coisa. Ela nunca gostou de mim mesmo, nem eu dela. O safado do meu pai nem se fala. Depois que esculhambei ele por ter traído minha mãe com aquela putinha exploradeira de dezoito anos, não quis nem mais olhar na minha cara. Foda-se. Esse eu não fazia nem questão que fosse me visitar. Mas, minha mãe e tia Beatriz... Eu nunca imaginaria que elas fossem virar as costas pra mim desse jeito. Vô Russinho é que estava certo, que Deus o tenha: Família só é bom no retrato.

___ Eu entendo sua indignação, amiga, mas talvez você esteja sendo injusta, pelo menos com sua mãe. Eu visitei ela há pouco tempo e a achei muito abatida. Ela me disse que não teve um dia em que não chorou preocupada com você, pensando no que você podia estar sofrendo lá dentro do presídio. Oh, Amora, releve. Talvez ela não tenha ido te visitar por falta de coragem de te ver naquela situação. Ia ser mais sofrimento pra ela, amiga.

Amora tinha o olhar perdido nas coisas e pessoas que passavam rapidamente pela janela do carro. Letícia observou-a e julgou que suas palavras provavelmente tinham surtido efeito.

___ E por que ela não está aqui com você? ___ Perguntou Amora de repente, encarando a amiga. ___ ela, que é minha mãe?

___ Ela provavelmente não sabe que você saiu hoje, Amora__ Explicou Letícia. ___ Eu errei. Eu devia ter comunicado a ela, devia tê-la trazido. Peço desculpas, amiga. Acho que acabei contribuindo pra piorar a situação.

___ Não, Letícia. Você também não sabia e, no entanto, procurou se informar e está aqui comigo. Ela, como minha mãe, que me pariu, que é sangue do meu sangue, não poderia ter feito o mesmo? Ela não tá nem aí pra mim, Letícia, a verdade é essa. Sabe qual é a única pessoa com a qual ela sempre se importou nessa vida? Chama-se Lucas Borges Genonádio, o senhor meu pai, que, no entanto, deu um pontapé na bunda dela. Largou ela pra ficar com uma novinha. Na época briguei com ele e tudo, mas agora acho que ele devia ter feito pior. Devia, além de ter traído, ter dado uma surra nela.

___ Que é isso, amiga? Não fale assim.

___ Tô aqui cheia de revolta, Letícia. Passei o diabo naquele presídio. ___ Amora sentiu os olhos marejarem enquanto uma constrição se apoderava de sua garganta. Tentou controlar-se.__ Por pouco não me mataram lá dentro. Fui obrigada a me relacionar com uma sapatona pra continuar viva. Foi ela quem me protegeu o tempo todo naquele inferno. Graças a ela estou aqui viva pra contar a história.

___ É uma página de sua vida que você vai ter que virar, Amora.__ Sugeriu Letícia. ___ É passado. O negócio agora é seguir em frente e reconstruir a sua vida. Recuperar o tempo perdido.

___ É, Vinte anos de minha vida foram pelo ralo. ___ Disse Amora como se tivesse pensando alto. ___ E o pior é que eu não fiz nada. Não cometi crime nenhum.

___ Não? ___ Letícia proferiu essa interrogação num ímpeto ocasionado pela surpresa. Temeu, entretanto, que sua pergunta fosse causar um mal estar, por isso emendou:

___ Quero dizer, suas digitais estavam na arma do crime. Todos os indícios apontavam pra você, amiga.

___ É, eu sei. Mas não fui eu. ___ Rebateu Amora. ___ Nós nos conhecemos desde a adolescência, Letícia. Já fizemos muitas coisas juntas, transamos, fumamos maconha. Já trocamos muitos segredos. Você me conhece melhor do que minha própria mãe. Agora me responda: você acha mesmo que eu seria capaz de matar o meu marido?

Letícia parou o carro no sinal vermelho.

___ Acho que você não seria capaz de fazer mal a uma mosca.__ Disse. ___ Tanto é que fiquei completamente chocada quando soube que você tinha sido incriminada. Foi realmente uma surpresa pra mim. Não consegui acreditar.

___ Eu amava Jeferson, Letícia. ___ Declarou Amora. ___ Nosso casamento vinha capengando, estávamos brigando muito, mas eu jamais seria capaz de fazer mal ao meu marido. Nossas brigas sempre foram verbais. Nunca houve agressões físicas. Nunca chegamos a esse ponto, que dirá atentar contra a vida um do outro.

___ Tá, então vem a pergunta óbvia: ___ Letícia recolocou o carro em movimento ao acender-se o sinal verde. ___ Se não foi você, quem foi então? Quem teria motivos pra matar Jeferson?

___ A irmã dele. ___ Respondeu Amora sem pestanejar.

___ Quem, a sua cunhada? Aquela mosca morta? Não, Amora, pelo amor de Deus, você está viajando. E que motivação ela teria pra matar o próprio irmão?

___ Eu não gosto de subestimar ninguém, muito menos as do tipo mosca morta. Essas é que não se deve subestimar mesmo. Mas, você quer uma motivação, e eu vou te dar. Só fui me lembrar disso quando já estava cumprindo pena. Jeferson, há algum tempo atrás, fez um seguro de vida no valor de um milhão de reais, e adivinha quem ele botou como beneficiária?

Letícia soltou um assovio de espanto.

___ Puta que pariu. Um milhão de reais. Foi mesmo, amiga?

___ Pode apostar. Ele escondeu de mim. Só que um dia, arrumando a parte dele da cômoda, eu achei a apólice. Mas não comentei nada com ele. Deixei ele pensar que eu não sabia. Você não queria um motivo? Aí está.

Um súbito silêncio instalou-se no interior do carro. Amora esperou Letícia dizer alguma coisa em resposta, mas esta parecia perdida em divagações insondáveis.

___ E então, o que você acha disso? ___ Impacientou-se Amora.

Letícia olhou para a amiga como se tivesse acabado de sair de um transe.

___ O que eu acho? Bem, o que eu acho é que com certeza a morte de Jeferson beneficiou muito ela, afinal fez ela colocar a mão numa grana preta. Mas, ainda assim eu creio que ela não seria capaz de tirar a vida do próprio irmão pra obter vantagem financeira. Ela não me parece ser esse tipo de pessoa.

___ E se eu te disser que eu a vi fugindo depois de ter cometido o crime?

___ Verdade mesmo? Você a viu? ___ A surpresa fez Letícia enrugar a testa.

___ Quer dizer, não vi nitidamente, mas reconheci ela pela silhueta. Me lembro daquela noite como se fosse hoje. Eu escutei o tiro no momento em que estava abrindo o portão da garagem pra botar o carro. Estava chegando do trabalho. Então, imediatamente, abri o portão que dava acesso à área da frente da casa. A lâmpada frontal estava queimada, por isso só pude ver um vulto saindo da casa e fugindo para a parte lateral. Eu gritei “ei”, mas a desgraçada sumiu na escuridão. Quando cheguei na sala dei com o corpo de Jeferson caído de bruços numa poça de sangue, com um revólver do lado. Eu, com minha cara de filha da puta, fui e peguei o revólver, deixando minhas digitais nele. Foi isso que me incriminou.

___ E você contou isso à polícia, é claro.

___ Óbvio. O delegado convocou minha cunhada pra prestar esclarecimentos, mas ela tinha um álibi. Disse que estava na academia na hora do crime. A polícia confirmou essa informação, e assim eu dancei no pedaço.

___ Bom, se a polícia confirmou o álibi dela, então não foi ela que você viu. ___ concluiu Letícia.

___ Foi ela sim, Letícia. ___ Insistiu Amora. ___ Eu não sei que tramoia ela armou, provavelmente pagou alguém pra apoiar a história dela, mas foi ela que eu vi saindo da casa. Estava escuro, mas deu pra reconhecê-la. Pode acreditar. Foi ela.

___ Quer um conselho? Esqueça isso. É passado. Você tem uma vida pra reconstruir. Ficar remoendo o que já passou não vai te ajudar a seguir em frente.

___ Eu não posso seguir em frente sabendo que aquela puta vai continuar impune. Não é justo. Ela vai ter que pagar pelo que fez a mim e ao meu marido. É questão de honra.

___ Veja lá o que você vai fazer, amiga. Você não quer voltar para o inferno, quer?

___ Deus que me livre, claro que não. Eu não vou tocar num fio de cabelo dela, embora minha vontade seja de esgana-la, mas alguma coisa eu vou ter que fazer pra desmascara-la; pra provar pra justiça que é ela a assassina, não eu.

___ Eu te entendo, amiga. Só me resta lhe desejar boa sorte e dizer que pode contar comigo no que precisar.

___ Obrigada, amiga. Eu sei que sempre posso contar com você. Mas, vamos falar de você agora. O que aprontou durante esse longo tempo em que estive ausente? Conseguiu terminar a faculdade de Física?

___ Já fiz pós e tudo. ___ Respondeu Letícia, mal disfarçando o orgulho.

Amora observou atentamente a amiga. Pelos seus cálculos já tinha chegado aos 40, mas apresentava a mesma jovialidade de seus vinte e poucos anos. Seu rosto quase não tinha sido arranhado pelo tempo. As rugas expressivas eram praticamente imperceptíveis e sua beleza permanecia tão inalterada quanto a de uma estátua. Olhou para si mesma no retrovisor interno. O que viu foi uma mulher de 42 anos, morena, com ranhuras bem visíveis na face, embora ainda bonita. Era dois anos mais velha que sua amiga, mas, no retrovisor, enxergou uns dez.

___ ...Ralei muito amiga. ___ Dizia Letícia. ___ Perdi muitas noites com a cara enterrada nos livros, mas a recompensa veio. Hoje, aqui estou eu: pós-graduada e com planos pra fazer um doutorado.

___ Que bom. ___ Disse Amora. ___ Fico feliz por você. Você merece. Já está exercendo a profissão?

___ pode se dizer que sim. Estou trabalhando num projeto com duas colegas. Se der certo, vai revolucionar o mundo.

___ Nossa. Que projeto é esse?

___ Por enquanto não posso revelar. ___ Declarou Letícia.__ O que posso te dizer é que se a gente conseguir finalizar, vamos ficar milionárias.

___ É verdade, perdi a confiança da minha melhor amiga.__ Amora afetou uma expressão de tristeza.

___ Oh, amiga, não é nada disso. É que fizemos um pacto, entre nós, de não revelarmos a natureza de nosso projeto pra ninguém até que tudo esteja finalizado. Mas prometo que assim que conseguirmos terminar, você será a primeira a saber.

___ Estou brincando, besta. Você não tem obrigação de me contar nada. Mas saiba que estou torcendo por você.

___ Sei disso, amiga. Eu também estou torcendo pra que você consiga dar um rumo à sua vida, e pode contar comigo para o que der e vier.

Houve um breve momento de silêncio entre as duas. Amora aproveitou para refletir sobre as palavras de Letícia. Tudo o que mais queria era dar um rumo à sua vida, mas havia algo entranhado em sua mente, ofuscando todo desejo ou plano de recomeço que pudesse ter. Era algo que se alimentava do rancor, do ódio, do sentimento de injustiça. Seu nome era vingança.

___ Vai pra casa de sua mãe, não é? ___ Perguntou Letícia, interrompendo o silêncio.

Amora hesitou por alguns instantes. Por fim respondeu:

___ Estava decidida a ir, mas mudei de ideia. Não quero que minha mãe, ou qualquer outra pessoa de minha família, saiba que eu saí do presídio.

___ Dona Kayla está sofrendo por você, Amora. Eu estive pessoalmente com ela e atestei isso.

___ Desculpe, Letícia, mas não quero mais falar sobre isso.

___ Tudo bem. Mas pra onde você pretende ir?

___ Sei lá. Acho que vou ficar num hotel, por enquanto.

___ Tá em condições de fazer isso?

___ Creio que sim. Gastei muito com advogado, mas acho que ainda tenho alguma coisa no banco.

Letícia ficou pensativa por alguns instantes.

___ Por que você não fica lá em casa? ___ Propôs ela, de repente.

___ Estou tentada a aceitar o seu convite. ___ Disse Amora.__ Mas será que não vou tirar sua privacidade? Você está casada? Mora com alguém?

___ Não, não estou casada. ___ Disse Letícia, meneando a cabeça. ___ E no momento estou sem ninguém. O projeto em que estou trabalhando exige minha total dedicação. Não me sobra tempo nenhum pra relacionamentos amorosos. Sabe, amiga? Às vezes me bate uma solidão desgraçada quando me vejo sozinha em casa. Sua companhia vai me fazer sentir menos solitária.

___ Ok. Sendo assim, aceito seu convite. Continua morando em Lauro?

___ Não. Já faz uns cinco anos que me mudei pra Salvador. Comprei uma casa lá no Rio Vermelho. É pequena, mas aconchegante. Fica num local super agradável. Você vai gostar.

De fato essa qualificação cabia bem à rua onde Letícia residia. era silenciosa, arborizada e vizinha à praia. O cheiro constante de maresia, trazido pelos ventos oceânicos, causava uma sensação de bem estar e de comunhão com a natureza. A casa de Letícia ficava acima de um pequeno lance de escadas e de uma área pouco espaçosa, utilizada como garagem, que mal cabia o carro.

A construção era um retângulo, toda revestida com azulejos azuis esverdeados. Era uma casa simples, porém bonita. Um mini sofá e um mero book sobre uma pequena banca, com uma cadeira de madeira à frente, era toda a mobília contida no cubículo que servia como sala.

___ Fique à vontade, amiga. ___ Disse Letícia ao entrar com Amora na residência. ___ Sinta-se em casa.

As dimensões reduzidas do cômodo levou Amora a associa-lo de certa forma à sua pequena e superlotada cela no presídio, o que lhe causou ligeiro desconforto.

___ Valeu. ___ Respondeu ela, sentindo suas mãos umedecerem de repente.

À noite, enquanto jantavam numa cozinha que mal cabia duas pessoas, sentadas a uma mesa diminuta, Amora voltou a abordar o assunto que era o centro de seus pensamentos.

___ Marisa continua morando no mesmo Endereço? ___ Perguntou.

___ Quem, sua cunhada? Continua sim. Ampliou a casa. Fez uma reforma de se foder. A casa está parecendo um palacete. Cheguei a pensar que ela tinha ganhado na mega sena, mas agora sei de onde ela tirou o dinheiro.

___ O seguro de vida do irmão. ___ Disse Amora, pensativa. ___ Ela usufruindo do dinheiro enquanto eu e Jeferson apodrecíamos, ele dentro de um caixão e eu numa prisão, pagando por um crime que ela cometeu. Amanhã vou na casa dela.

___ Vai fazer o quê lá, Amora? ___ Perguntou Letícia, em tom de censura.

___ Vou ter uma conversinha com ela.

___ E o que te faz pensar que ela vai querer falar com você? E se falar, o que você está esperando? Que ela vá te confessar que assassinou o irmão? Isso não vai acontecer, amiga.

___ Eu sei muito bem disso, Letícia. O que eu quero é que ela saiba que eu sei o que ela fez. E que não vou sossegar enquanto não conseguir desmascara-la.

___ Vê lá, Amora. Não vá fazer nada impensado. Hoje você recuperou uma das coisas mais importantes que um ser humano pode possuir: a liberdade. Não vá cometer a burrice de perdê-la novamente.

___ Não, fique tranquila. ___ Replicou Amora. ___ não vou fazer nenhuma besteira. Só vou conversar com ela. Não vai ser uma conversa amigável, claro, mas ainda assim vai ser só uma conversa.

Amora dormiu no pequeno sofá, não obstante o convite insistente da dona da casa para que dividisse a cama com ela. O que Letícia não sabia era que sua amiga, depois de passar longas e claustrofóbicas noites em uma cela superlotada durante vinte anos, Queria mais agora era ter o prazer de uma noite de sono sem ninguém por perto.

A hóspede adormeceu em posição fetal no exíguo espaço do leito improvisado. Foi um sono inquieto, povoado por sonhos aflitivos em que se via de novo dentro do presídio, numa cela absurdamente diminuta cujas paredes começavam a se mover em sua direção, terminando por esmaga-la, não obstante os seus esforços desesperados para escapar. De repente já não estava mais na cela e sim no palacete de Marisa. Viu-a sentada à sua frente, e ela a olhava de volta com olhos acusativos enquanto proferia a palavra “assassina”, de inicio num tom baixo que foi aumentando até se transformar em gritos histéricos. Logo vozes surgidas do nada e de todos os lugares fizeram coro com sua cunhada, formando um vozerio ensurdecedor que fez Amora tapar os ouvidos com as mãos. “Foi você, sua desgraçada” gritava, mas sua voz era abafada pelas demais. Por fim viu um revólver apontado em sua direção, e quem o empunhava era Marisa. Tentou sair da linha de mira e se esconder para se proteger do disparo iminente, mas não conseguia tirar os pés do chão. Era como se uma cola poderosa estivesse prendendo-os ao solo. O tiro foi disparado com estrondo, atingindo mortalmente o seu peito. Amora despertou com uma falsa sensação de queimor no local onde a bala teria penetrado, fruto de uma interpretação errônea de seu cérebro devido às imagens oníricas que ele próprio havia projetado. Notou uma claridade rompendo a penumbra que envolvia a sala. Fixou o olhar na direção do ponto de origem da luz e enxergou as costas nuas de Letícia, que se encontrava sentada, somente de calcinha, na frente do merobook. Amora levantou-se esfregando os olhos e aproximou-se da amiga. Esta, usando fones de ouvido conectados ao computador e absorvida pelo que estava sendo exibido na tela, não percebeu o vulto atrás de si. Só deu por isso quando sentiu uma mão pousar em seu ombro.

___ Oh, amiga, a claridade do merobook está te incomodando?__ Perguntou, sobressaltada.

___ Não, de jeito nenhum. ___ Disse Amora, após um bocejo.__ É que eu tive um pesadelo e não consegui mais dormir. ___ Inclinou-se para ver o horário na tela do computador. ___ Quatro horas ainda? E você, tá fazendo o quê aí acordada uma hora dessa?

___ Tô aqui assistindo nada mais, nada menos do que ao maior acontecimento da história das viagens espaciais desde a chegada do homem à lua.

___ É mesmo? ___ Disse Amora, surpreendida com a empolgação de Letícia. ___ E que acontecimento é esse?

___ Hoje, dia 04 de junho de 2065, é uma data histórica, Amora. daqui a exatamente dez minutos a primeira missão tripulada a Marte vai chegar ao seu destino. São três astronautas. Vão ser os primeiros seres humanos a pisar em solo marciano. Você consegue entender a importância disso?

Amora deu de ombros.

___ Acho que não. ___ Foi a sua resposta.

___ Pois, saiba que esse acontecimento é essencial para o futuro da humanidade, ___ Continuou Letícia com entusiasmo. ___ porque envolve o surgimento de novas tecnologias, aprimoramento das que já existem, e que vão se traduzir em benefícios para o ser humano em seu dia-dia. Isso, sem falar que esse é o primeiro passo para a colonização de Marte, o que vai possibilitar a existência de um planeta alternativo para a humanidade viver, caso seja preciso.

Letícia desviou o olhar para o merobook em cuja tela uma mulher, vestindo uma camisa com o logotipo da NASA estampado no peito, emitia, em inglês, considerações sobre a missão em andamento. Dividindo o quadro com ela, o dono do canal no Amazetube, antigo Youtube, fazia a tradução para o português do que estava sendo dito.

___ Mesmo esse feito extraordinário, ___ Disse Letícia com o olhar perdido em algum lugar muito além das imagens que apareciam na tela do computador. ___ de suma importância para a ciência e a humanidade, não é nada em comparação ao que estou prestes a realizar. É algo que vai causar a maior revolução científica que o mundo já conheceu; A ciência não vai ser mais a mesma depois disso.

___ Nossa! ___ Fez Amora. ___ Agora você está realmente me deixando curiosa.

Letícia virou-se para a amiga e a encarou como se só naquele momento tivesse percebido a sua presença.

___ Você vai ter o privilégio de ser a primeira pessoa a saber e a ver do que se trata. Mas só quando a gente tiver concluído. Já estamos bem perto.

Amora reparava nos seios de Letícia. Já não tinham mais a rigidez da juventude, mas continuavam bonitos. Sentiu um forte desejo de acaricia-los e de senti-los contra o seu corpo.

___ O que foi? ___ Perguntou Letícia ao perceber o olhar da amiga. ___ Por que está olhando assim para os meus seios? Há algo de errado com eles?

___ Não, de jeito nenhum. ___ Disse Amora. ___ Só estou admirando. Eles continuam bonitos.

___ Que nada. Estão meio caidinhos. A força da gravidade está agindo, querida. Já sou uma coroa, esqueceu? Os seus é que estão firmes ainda.

___ Você chama isso de firmes? ___ Amora arriou as alças da camisola que a amiga lhe emprestara, descobrindo o par de seios morenos. Com um leve movimento do corpo fez as duas protuberâncias tremularem.

___ Não seja modesta.

Letícia levantou-se da cadeira e, aproximando-se de Amora, apalpou-lhe os seios.

___ Estão firmes sim. ___ Disse. ___ E são gostosos de pegar.

Amora retribuiu o gesto da amiga, e logo iniciaram uma troca de carícias que se estenderam dos seios para outras partes do corpo. Não demorou muito para que os lábios se encontrassem. Da sala foram para a cama, onde deram vazão a toda a fome, a toda a ânsia de sexo represadas há bastante tempo em suas entranhas.

Meia hora depois quedaram-se uma ao lado da outra, satisfeitas e transpirantes.

___ Me deu sede. ___ Disse Letícia. ___ vou pegar água. Quer também?

___ Quero.

Letícia voltou da cozinha com dois copos e uma garrafa com água gelada. Saciaram a sede. Apesar de a janela estar aberta, a onda de calor, dentro do quarto, pareceu se intensificar. Letícia vestiu a calcinha e foi para a janela a fim de aliviar a sensação térmica com a brisa que vinha da praia. Um ar gostosamente frio acariciou os seus seios desnudos. Depois de observar por alguns instantes a rua deserta lá embaixo, virou-se para Amora, que permanecia deitada na cama, de olhos fechados.

___ O que você faria se pudesse voltar no tempo, Amora? ___ Perguntou, de súbito.

Amora abriu os olhos e a encarou como se não tivesse entendido a pergunta.

___ Ora, se eu pudesse voltar no tempo, ___ Disse a ex- presidiária depois de alguns segundos. ___ eu impediria aquela desgraçada de assassinar o meu marido. Assim eu iria me dar um novo futuro. Não iria ser presa injustamente. Não havendo assassinato, não haveria condenação nem prisão. Os anos terríveis que passei naquele presídio iriam ser simplesmente apagados da existência, e muito provavelmente também da minha memória, porque eu nunca os teria vivido nessa nova realidade.

Amora deu um suspiro.

___ Seria realmente maravilhoso. ___ Continuou. ___ Se fosse

possível.

As duas emudeceram, perdidas por um momento em reflexões que possivelmente convergiam para o mesmo tema. Amora foi a primeira a emergir das profundezas de si mesma. Letícia demorou-se um pouco mais, voltando à tona com o chamado da amiga.

___ O que foi, criatura? ___ Disse Amora. ___ o que é que tá te preocupando?

___ Nada. Só estou pensando na vida.

___ Pensando na vida. ___ repetiu Amora, num tom levemente irônico. ___ Quer um conselho? Não perca seu tempo. A vida é uma grande palhaça. Uma comediante. Ela vive se divertindo com a gente, rindo da nossa cara. Ela é uma grande piada. Uma piada, da qual somente ela ri.

___ Talvez o segredo seja entender a piada. ___ Sugeriu Letícia. _ Pra que a gente possa rir junto com ela.

___ A piada já foi entendida, Letícia. Só que pra gente ela não tem graça. É uma piada de mau gosto.

___ Seu modo pessimista de encarar a vida é compreensível. Afinal, você sofreu terríveis reveses. Não é fácil enxergar as coisas de uma forma positiva depois disso.

___ A bem da verdade, ___ disse Amora, levantando-se da cama.___ Eu nunca fui um exemplo de otimismo em relação à vida e às pessoas. Você me conhece há muito tempo e sabe disso. Vou fazer xixi.

___ Você vai mesmo falar com sua ex-cunhada? ___ Perguntou Letícia, achegando-se à entrada do banheiro cuja porta Amora deixara aberta.

___ Claro que vou. ___ Respondeu Amora, sentada no vaso.__ Nunca fui mulher de duas palavras, Leticia. Você sabe disso. Aquela puta está achando que cometeu o crime perfeito. Vou fazer ela saber que está errada; Que eu a vi fugindo do local do crime, e que agora eu vou ser um prego no sapato dela, entendeu?

___ Cuidado, Amora. Essa mulher foi capaz de matar o próprio irmão. Ela não vai hesitar em fazer o mesmo com você, pode ter certeza disso.

___ Eu sei. Vou tomar cuidado.

___ Te dou carona. É caminho pra mim. O local onde estou trabalhando fica perto da casa dela.

___ É mesmo? Então, tá. Vou aceitar sua carona.

___ Vamos dormir. ___ Sugeriu Letícia. ___ Vou sair daqui umas seis e meia, portanto temos só mais três horas de sono.

Lauro de Freitas continuava a mesma cidade suja, deprimente e abandonada de sempre. Essa foi a constatação imediata de Amora logo que o carro cruzou os limites do município. As ruínas pichadas de algumas construções, a imundície das vias públicas, a mendicância generalizada nas ruas, todas essas coisas observáveis davam àquela parte da região metropolitana um aspecto de decadência crônica, que Amora lembrava ter percebido desde que se entendia como gente. Porém não foi essa a impressão que teve ao parar diante da casa de Marisa. O que fora outrora uma modesta residência de classe média, agora era uma verdadeira mansão de dois andares, com muros altos e um grande portão de ferro. Obviamente tudo pago com o seguro de vida do irmão. Amora saiu do carro observando a suntuosa construção com uma expressão de indignada surpresa.

___ Seu chip está reativado, amiga? ___ Perguntou Letícia, sentada ao volante.

Amora não assimilou a pergunta de imediato. Levou alguns segundos para lembrar que Letícia estava se referindo ao dispositivo coclear implantado, não só em seu ouvido, mas no de toda população brasileira, e que cumpria a função antes desempenhada pelos antigos aparelhos smartphones e celulares.

___ Não, ainda não. ___ respondeu.

___ E se você precisar se comunicar?

___ Não vou precisar, fique tranquila.

Letícia enfiou a mão dentro da bolsa colocada entre o banco do carona e o do motorista. Tirou de lá uma chave presa a um chaveiro em formato de um sorridente Bob Esponja. Entregou-a à Amora.

___ Tome, é a chave da casa. Vou chegar tarde hoje. ___ Depois, referindo-se a imponente construção: ___ Viu o palacete?

___ Estou vendo. ___ Disse Amora, com um olhar de quem estava enxergando diante de si uma terrível aberração. __ Jeferson debaixo de sete palmos, eu me fodendo na prisão e essa puta vivendo no bem bom. Ela vai pagar, ou eu não me chamo Amora.

Letícia percebeu, naquele momento, que sua amiga não era mais a mesma pessoa que conhecera tempos atrás. Ela havia se transformado em algo que não conseguia compreender, e isso a assustava um pouco. Abriu a boca para dizer alguma coisa, mas desistiu. Engrenou a primeira.

___ Se cuida. Nos vemos à noite. ___ E arrastou o carro.

Amora voltou-se e caminhou até o grande portão de ferro, que a separava da área gramada dividida por um caminho feito com pedaços de azulejo, e que levava a três degraus que davam acesso à entrada da casa. Sentia certo desconforto físico e emocional. O físico era devido ao fato de a calça jeans, que Letícia lhe emprestara, estar apertada; quanto ao emocional devia-se à visão daquela casa, uma vez que a via como uma representação de toda a tragédia que atingira a sua vida.

Avistou, fixado na parede do muro, um aparelho com um botão e uma pequena tela, que julgou ser um interfone. Possuía também uma lente redonda, do tamanho de uma moeda de 50 centavos, que não era outra coisa senão uma câmera. Amora pressionou o botão, fazendo soar a campainha. Não demorou muito e o rosto de Marisa apareceu na tela. Suas feições alteraram-se imediatamente, transformando-se numa máscara de ódio, assim que reconheceu a esposa de seu falecido irmão.

___ O que está fazendo aqui? ___ Disse. ___ Eu não acredito que te soltaram. Você tinha que continuar apodrecendo na prisão, até o fim de seus dias. A justiça desse país é uma merda mesmo.

___ Eu vim porque tem uma coisa que quero te falar. ___ Disse Amora, impassível.

___ Eu não quero ouvir nada da sua boca imunda. Você destruiu minha família, sua vagabunda. Meu irmão era a coisa que eu mais amava nessa vida, e você tirou ele de mim. E ainda vem com essa cara cínica...

___ Pode parar com o teatro, Marisa. ___ Interrompeu Amora.__ A morte de Jeferson parece que foi muito conveniente pra você, não é mesmo? De onde você tirou dinheiro pra construir essa mansão, hein? Me responda.

___ O que você está querendo insinuar, sua vagabunda?

___ Saia aí e venha me chamar de vagabunda aqui na minha frente, se você tem coragem. Eu sei que foi você quem matou Jeferson. Você assassinou seu próprio irmão pra poder ficar com a grana do seguro. Eu cheguei em casa um pouco depois de você ter atirado nele, mas a tempo de te ver fugindo do local do crime. Eu acabei pagando pelo que você fez, porque fui burra, mas chegou a hora de acertarmos nossas contas. Fique sabendo que eu não vou descansar enquanto não te desmascarar, enquanto não te colocar atrás das grades. Você não vai sair impune dessa, pode ter certeza disso. Só vim aqui pra te dar esse aviso.

Marisa olhava para Amora com uma expressão de surpresa, mas que logo se tornou zombeteira.

___ Você é louca. ___ Disse. ___ A prisão deve ter afetado o seu cérebro, só pode ser. Eu também tenho um aviso pra te dar: se você vier aqui de novo me importunar, sua cretina, eu vou chamar a polícia. Era só o que me faltava.

Marisa desapareceu da tela, que apagou-se, encerrando o diálogo. Amora voltou-se, imperturbável, e observou o movimento de pessoas e veículos à sua frente. Estava satisfeita. O objetivo que a levara até ali tinha sido atingido: Falara com sua cunhada e a deixara ciente de que sabia do seu crime fratricida, e que iria fazer de tudo para coloca-la atrás das grades. Mas esse era um plano que Amora não sabia como colocar em prática. Não havia idealizado nenhuma estratégia, linha de ação, nada. Não sabia sequer por onde começar. A não ser que Marisa confessasse, não conseguia vislumbrar nenhum outro jeito de incrimina-la. Precisaria de provas concretas para fazer isso. Como consegui-las era a questão que se apresentava. Os serviços de um bom detetive particular viriam bem a calhar naquele momento, mas não tinha dinheiro suficiente para contratar um.

Amora caminhou até o centro de Lauro de Freitas e lá ficou andando a esmo, em meio ao vai-e-vem incessante dos outros transeuntes. Pensava no que poderia começar a fazer para provar à justiça que sua cunhada era a verdadeira assassina de seu marido, mas não conseguia atinar com nada. As poucas ideias que lhe vieram à mente pareceram-lhe altamente improváveis, para não dizer impossíveis. Estava se aproximando da praça principal do centro da cidade quando teve um sobressalto. Avistou, vindo do lado oposto, a última pessoa que queria encontrar naquele momento: sua mãe. Procurou, em volta, um lugar para se esconder. A primeira coisa que avistou foi o prédio da prefeitura. Dirigiu-se para lá quase correndo, empurrou a porta de vidro e entrou. Ficou observando sua genitora através da superfície envidraçada. A recepcionista olhou-a, intrigada.

___ Bom dia, senhora. ___ Disse, após observar a recém- chegada por alguns instantes. ___ posso ajuda-la em alguma coisa?

Amora, que não tinha notado a presença da funcionária, Assustou-se ao ouvir a voz da mulher atrás de si. Voltou-se e, meio sem jeito, disse:

___ Oh, não. Desculpe entrar assim. É que lá fora está fazendo um calor danado, aí eu entrei pra me refrescar um pouco no ar-condicionado, isto é, se não for nenhum incômodo.

___ Não, claro que não. ___ Disse a mulher, com um sorriso.__ pode ficar à vontade.

___ Obrigada, querida.

Amora voltou à observação de sua mãe um pouco antes desta desaparecer pela lateral do prédio. No entanto, teve tempo mais que suficiente para perceber o quanto ela estava envelhecida. Completara 61 anos, mas parecia já estar com uns 90, pelo menos foi essa a sua impressão ao vê-la daquela distância. “É, dona Kayla, o tempo e a vida não foram muito generosos com você”. Pensou. “E muito menos comigo”. Sentiu que, de repente, a mágoa que a possuía estava sendo invadida por um sentimento mais brando e por vezes ultrajante chamado pena. Era isso mesmo: Estava sentindo pena de sua mãe. No entanto, reprimiu aquilo com todas as suas forças. Preferia mil vezes odiá-la a sentir pena. O ódio era muito mais digno.

Quando se sentiu segura de que sua mãe já estava bem longe dali, puxou a porta de vidro e saiu, tomando a direção oposta à dela. Caminhou por vinte minutos até encontrar um ponto de ônibus. Havia planejado passar numa agência bancária a fim de sacar uma quantia do dinheiro que economizara antes de ser presa, mas desistiu da ideia. Queria sair daquela cidade o mais rápido possível. Não pretendia correr o risco de topar com outro familiar seu. Afinal, quase todos os seus parentes residiam em Lauro de Freitas. Enfiou a mão no bolso da calça para sentir a cédula que Letícia lhe dera. Na verdade tinha sido um empréstimo, que inclusive recusara, mas diante da insistência da amiga acabou aceitando. Agora, sentia-se grata à Letícia por ter insistido.

Entrou no primeiro ônibus que apareceu com destino a Salvador. A imagem de sua mãe, envelhecida, ligeiramente encurvada, castigada pela vida, a acompanhou durante toda a viagem. O conflito de sentimentos entre a mágoa e a compaixão também esteve com ela do começo ao fim do trajeto, que teve uma segunda parte feita de metrô.

Amora desceu na última estação que dava acesso ao centro da capital baiana, não porque tivesse a intenção de ir para lá, uma vez que estava se deslocando sem destino certo, mas pelo simples fato de se tratar da última parada. Passou numa agência bancária e sacou parte do dinheiro que havia poupado antes de ser presa. Por um momento, antes de ser atendida pelo caixa, veio-lhe um medo irracional de não encontrar nada na conta, de essa estar zerada. Não havia, no entanto, justificativa para tal temor. Talvez isso se devesse ao fato de ela ter ficado um longo período sem ter acesso a esse dinheiro, a ponto de torna-lo algo tão distante que duvidou, momentaneamente, que ainda estivesse lá onde o deixou. Muito embora tenha desdenhado, em seguida, desse pensamento, o fato é que só conseguiu relaxar mesmo quando o funcionário do banco lhe informou que havia um valor depositado.

Como já era perto do meio-dia, foi para um restaurante, depois do banco, onde almoçou lentamente, envolta em pensamentos monopolizados pela imagem daquela mulher visualmente decadente, e que não parecia mais ser sua mãe.

O resto do dia foi de perambulações por ruas, vielas, lojas e shopping. Quando voltou para a casa de Letícia já era noite alta. Encontrou a residência vazia. A amiga ainda não chegara. Tomou um banho, fez café, tomou um gole, depois se deitou na cama de Letícia e ali adormeceu tomada pelo cansaço do dia.

Estava sonhando que sua mãe, com o rosto carcomido, soltando urros medonhos, a perseguia numa floresta escura cujas árvores se moviam à sua frente para tentar lhe bloquear a fuga, quando uma voz, chamando-a, arrancou-a do pesadelo e a trouxe de volta para o mundo real. Letícia a balançava suavemente, procurando não despertar a amiga de forma brusca.

___ Aann! Nossa, tive um pesadelo do caralho agora.___ Amora sentou-se na cama, esfregando o rosto com as mãos. __ que horas são?

Letícia tinha ido para a janela. De costas para Amora, ela fumava e soprava a fumaça para fora do quarto. Ainda assim Amora sentiu o forte aroma da Cannabis invadindo as suas narinas.

___ Você tá fumando maconha? ___ Perguntou, surpreendida.

Letícia virou-se para a amiga, com o cigarro entre os dedos.

___ Fumamos muito quando éramos mais jovens, não sei por que a surpresa.

___ É que eu pensei que você tinha parado. Onde conseguiu?

___ Comprei numa farmácia ali do centro. ___ Respondeu Letícia, depois de dar uma longa tragada.

Uma ruga formou-se na testa de Amora.

___ Farmácia?

___ Sim, minha querida. Farmácia. Você não sabia que a maconha foi legalizada há dois anos? Aaah! esqueci que você, nos últimos vinte anos, estava isolada do mundo. Pois é, a nossa adorada e marginalizada maconha agora pode ser encontrada numa farmácia ou drogaria perto de você. É claro que existe uma quantidade-limite para compra, mas finalmente a Cannabis Sativa conquistou o seu direito legal de ser fumada.

___ Que ótimo. Deixe eu dar um tapa aí. ___ Amora estendeu a mão para Letícia, que prontamente passou o cigarro para a amiga, comentando:

___ Como nos velhos tempos.

___ É, como nos velhos tempos. ___ Repetiu Amora, antes de dar uma tragada e prender a fumaça por alguns segundos. Depois de solta-la lentamente, voltou a perguntar as horas.

___ Já passa das três da manhã. ___ Informou Letícia.__ Desculpe te acordar esse horário, amiga, mas é que estou morrendo de ansiedade. É por isso que estou fumando esse baseado. Só faço isso quando estou muito ansiosa. Estou precisando levar um papo com você, e tem que ser agora. Não dá pra esperar pra depois.

___ Tudo bem. É algum problema?

___ Mais ou menos. ___ Letícia aproximou-se e sentou na beirada da cama, ao lado de Amora. ___ Eu não prometi que ia te falar no que eu estou trabalhando? Pois, vou fazer isso agora. Eu e duas colegas da faculdade estamos desenvolvendo uma máquina do tempo. Na verdade nós já a desenvolvemos. O que está faltando agora é testa-la.

Letícia fez uma pausa para observar a reação da amiga. Esta a encarava como se não tivesse entendido o que tinha escutado.

___ Máquina do tempo. ___ Repetiu. ___ E o que ela faz?

___ Oxente, amora! O que uma máquina do tempo faz? Faz você viajar para o passado ou para o futuro, literalmente. É desse tipo de máquina que eu estou falando.

___ Puta que pariu! ___ Fez Amora, finalmente compreendendo a dimensão do que estava sendo dito. ___ Caralho, Letícia! Isso é simplesmente maravilhoso. Isso vai mudar a ciência, o mundo.

___ É, eu sei. ___ Letícia pegou o cigarro da mão de sua interlocutora. Sugou a fumaça, depois a soltou bem devagar. Uma densa nuvem dançou diante de seu rosto, ainda assim a preocupação em seu semblante era visível. ___ Estamos enfrentando um pequeno impasse, Amora. Eu tenho plena convicção de que o aparelho está pronto para ser testado, mas minhas duas colegas têm uma opinião contrária. Elas acham que ainda é muito cedo para testes; que o aparelho necessita de mais alguns ajustes e que temos de desenvolvê-lo um pouco mais. Besteira! O aparelho está pronto para uso, não há mais nada a ser feito. Eu vou testa-lo sem elas. Se eu tiver êxito, e tenho certeza que vou ter, elas não vão poder mais discordar de mim. E você vai me ajudar nessa empreitada, amiga.

___ Claro. Pode contar comigo.

Letícia deu uma última tragada antes de passar o baseado para Amora. Depois Disse:

___ Está preparada para se tornar o primeiro ser humano a viajar no tempo?

Amora estava levando o cigarro à boca, mas parou no meio do caminho ao ouvir a pergunta de Letícia.

___ Eu vou ser a cobaia?

___ Não encare dessa forma. Pense que você vai ser o primeiro ser vivo a chegar aonde jamais ninguém chegou. Vai ser o maior acontecimento da história da humanidade, e você vai fazer parte disso, Amora. E tem outra coisa: lembra daquela conversa que a gente teve sobre voltar para o passado, e você disse que se pudesse voltar impediria sua cunhada de assassinar Jeferson? E se eu te disser que isso é possível? Não falo de impedir o assassinato, porque isso poderia causar um caos no espaço-tempo, mas de te colocar na cena do crime, como testemunha ocular. Você poderia, por exemplo, filmar, às escondidas, a sua cunhada cometendo o ato criminoso. Essa filmagem, aqui no presente, seria uma prova incontestável de sua inocência. O que você acha disso?

Amora sugou a fumaça do cigarro, que já estava no fim, enquanto encarava a amiga sem saber o que responder. De repente o quarto e tudo dentro dele, inclusive Letícia, pareciam irreais e fugidios como num sonho. O princípio ativo da cannabis certamente já estava agindo no seu cérebro.

___ Isso seria simplesmente maravilhoso. ___ Respondeu ela, empolgada com aquela fantástica possibilidade que parecia mesmo saída de uma visão onírica. ___ Quando vamos fazer isso?

___ Amanhã, ou melhor, hoje. Estou com todas as peças da máquina na mala do carro. É claro que minhas duas sócias não estão sabendo disso. Tive que inventar uma desculpa para ser a última a sair do local em que estamos trabalhando. Assim que me vi sozinha desmontei a máquina, peguei os equipamentos necessários, coloquei tudo no carro e vim embora.

___ E onde vai ser, aqui mesmo?

___ Não, no local onde o crime aconteceu.

___ A casa onde morei com Jeferson. ___ Disse Amora, com certo pesar. ___ E o que foi feito dela?

___ Sua cunhada colocou à venda. Passei pela frente e vi a placa. O ideal é que seja lá, porque é pra lá que vou te enviar vinte anos no passado, entendeu?

___ Tá, e como vamos entrar? Há muito tempo que não tenho mais as chaves.

Letícia pegou o cigarro de maconha da mão da amiga e deu uma última tragada.

___ Vamos invadir. ___ Anunciou.

___ Você só pode estar brincando. Eu acabei de sair da prisão e não estou nem um pouco a fim de voltar pra lá. Eu morei algum tempo naquela casa, mas ela não é minha. É da família de Jeferson. logo, o que você está propondo aí chama-se invasão de propriedade alheia. Se a puta da Marisa descobrir que estou metida nisso, ela vai me denunciar pra polícia com o maior prazer.

___ Mas é ela quem vai ser presa, Amora, porque você já vai estar com as imagens dela atirando em Jeferson. Pense nisso.

___ E quem garante que essa máquina vai mesmo funcionar? _ Rebateu Amora, depois de ponderar por alguns instantes. __ E se suas colegas estiverem certas? Temos que considerar essa possibilidade.

___ Deixe te explicar uma coisa, Amora. ___ Letícia ergueu-se, foi até a cozinha, jogou o que restou da maconha na cesta de lixo, depois voltou e sentou-se de novo ao lado da amiga. ___ É o seguinte: Esse projeto é meu. Eu que iniciei. Depois de dois anos de trabalho árduo, eu percebi que precisava de ajuda. Então resolvi convidar elas para me auxiliarem. Eu propus uma sociedade, mas, na verdade, é só isso que elas são: minhas auxiliares. Eu idealizei o projeto; eu projetei a máquina; eu a construí. Elas se ocupam apenas de alguns detalhes técnicos que eu mesma resolveria se não fosse muito trabalho pra uma pessoa só. O que eu estou querendo te dizer é que se existe uma pessoa em quem você pode confiar em relação a essa máquina, essa pessoa sou eu, porque fui eu que a concebi.

___ tudo bem. Eu confio em você, afinal nós somos amigas há quanto tempo? Que horas exatamente você pretende testar a máquina?

___ À noite. Umas dez horas a gente sai daqui. Está bom pra você?

Amora balançou a cabeça.

___ Sim, está.

Deitou-se na cama e abriu as pernas de forma provocativa. Usava uma das calcinhas de Letícia que, de tão pequena em seu corpo, deixava visível boa parte dos grandes lábios. A cannabis estava agindo em seu cérebro com um efeito deliciosamente relaxante. Havia muito tempo que não experimentava tamanha sensação de bem estar. Mas também, em algum lugar de seu corpo, essa sensação se convertia em uma necessidade inquietante, uma lascívia que exigia que seu sexo fosse tocado, que sua fome fosse aplacada. Letícia a observava, contagiada também pelas mesmas sensações voluptuosas. Suas pupilas dilatadas passeavam sequiosas pelo corpo seminu da amiga.

___ Vem. ___ Convidou Amora.

Letícia atendeu de imediato ao chamado, e as duas se uniram num abraço sôfrego ao mesmo tempo em que bocas e línguas exploravam-se mutuamente. Pela janela o clarear de um novo dia invadiu o pequeno quarto, flagrando as duas amantes em pleno ato carnal.

Letícia despertou após algumas horas. O outro lado da cama estava vazio. Chamou a amiga, mas o silêncio foi a única resposta. Levantou-se e caminhou nua pelo restante da casa, à procura de Amora. Constatou então que estava sozinha na residência. A ausência da amiga, tão repentina e sem aviso prévio, a deixou um pouco apreensiva. Será que a proposta de participar da experiência com a máquina do tempo a tinha assustado, a ponto de fazê-la ir embora sem ao menos se despedir? Essa foi a pergunta que instantaneamente se formou na mente de Letícia. No instante seguinte, entretanto, considerou aquele pensamento totalmente absurdo. Amora tinha saído para resolver algum problema e certamente não a avisou para não ter de acorda-la. Era só isso. Logo, logo ela estaria de volta.

De fato, umas duas horas depois, Amora chegou segurando um pequeno embrulho que consistia em algo com um formato de uma caixa de sapato envolvido por um plástico. Letícia sentiu um certo alívio quando abriu a porta e se deparou com a amiga. Aguardou que ela lhe dissesse o que era o volume que tinha na mão, mas Amora, sem dizer nada, levou o embrulho para o quarto, voltando minutos depois sem ele. Letícia estava prestes a perguntar, porém resolveu frear sua curiosidade por achar que seria inconveniente de sua parte.

Conversaram sobre a invasão que iriam cometer naquela noite, mas, como não poderia deixar de ser, a revolucionária experiência científica que estavam prestes a realizar foi o tema preponderante do diálogo. Estavam na cozinha, almoçando.

___ Se essa máquina realmente funcionar, Letícia... __ Ia dizendo Amora enquanto mastigava um pedaço de bife.

___ Vai funcionar. ___ Atalhou Letícia, com convicção.

___ Tá, mas se eu, por um acaso, impedisse Marisa de atirar em Jeferson? Se eu até mesmo a matasse antes que ela cometesse o crime, o que você acha que aconteceria? Será que o presente seria mesmo totalmente diferente do que é agora? Minha prisão iria ser apagada da existência, e consequentemente da minha memória? Marisa ia desaparecer, enquanto Jeferson ia estar aqui, vivo, como se jamais tivesse morrido?

Amora deu um suspiro, depois continuou como se tivesse pensando alto:

___ Seria um modo muito eficiente de consertar tudo. O mal seria cortado pela raiz, ou melhor, nesse caso seria antes mesmo da própria raiz.

___ Não é tão simples assim, Amora. ___ Replicou Letícia. __ O que nós vamos fazer não tem precedentes na história da humanidade. Nós estaremos lidando com forças que ainda não compreendemos. Não há como prever o que uma interferência dessa pode realmente acarretar. Um caos no espaço-tempo é uma possibilidade, mas não tem como ter certeza. Por isso o mais prudente a fazer é não interferir no que já aconteceu, por mais tentador que isso seja. Você vai apenas observar e registrar, entendeu?

Amora balançou a cabeça.

___ Claro. Entendi perfeitamente.

A noite, nesse dia, demorou a cair. As horas se arrastaram dolorosamente como se o tempo estivesse de má vontade por saber que em breve iria ser violado. Letícia, apesar da certeza que tinha de que o experimento seria um sucesso, sentia uma certa ansiedade que procurou não demonstrar para sua amiga. Esta, depois do almoço, não tocou mais no assunto da máquina, aliás, nem em qualquer outro assunto. Permaneceu em silêncio, pensativa. Letícia observou-a, tentando decifrar o que ela sentia, mas não conseguiu ver nada. A expressão no rosto de Amora era vaga, totalmente impenetrável. As duas estavam deitadas, uma ao lado da outra, na cama. Tinham planejado tirar uma sesta após o almoço, porém não estavam conseguindo conciliar o sono.

___ O que houve, Amora? __ Indagou Letícia. ___ Por que ficou assim, tão pensativa de repente?

___ Estou aqui pensando que rever Jeferson com vida e logo depois presenciar o seu assassinato vai ser algo bastante assustador. É difícil de acreditar que algo assim seja realmente possível. ___ Amora deitou-se de lado, a cabeça apoiada na palma da mão, e encarou sua interlocutora. ___ Me responda uma coisa, Letícia: você já fez alguma coisa viajar no tempo com essa máquina antes?

___ Partículas, protozoários, depois um rato. ___ Respondeu Letícia. ___ E agora chegou a vez de um ser humano.

___ E por que não você?

Letícia olhou intrigada para Amora.

___ O que foi, tá com medo?

___ Não, quero dizer, talvez. Acho que é uma mistura de curiosidade e medo.

Letícia sorriu.

___ Sua medrosa. Mas fique tranquila, você não vai correr nenhum perigo. A máquina vai te manter lá no passado por uns quinze minutos, talvez um pouco mais. Depois disso ela te trará de volta. Foi assim com as partículas e com os protozoários. Bem, e quanto ao fato de não ser eu a viajante, é porque alguém habilitado vai ter que ficar monitorando todo o sistema enquanto a máquina estiver em funcionamento, para que nada dê errado, entendeu? Mais alguma pergunta?

___ Por enquanto não. ___ Disse Amora, voltando à posição de decúbito dorsal.

___ Depois dessa primeira experiência, Amora, ___ Prosseguiu Letícia, com um ar sonhador. ___ vou convocar a mídia: televisão, jornal, internet, a putanhada toda, e vou revelar a minha invenção para o Brasil, para o mundo. Vamos revolucionar essa porra toda e...

Mas Amora não estava prestando atenção ao que Letícia dizia. A possibilidade de reescrever a sua história e mudar completamente o seu passado trágico para materializar um novo e mais agradável presente passava por sua mente naquele momento. As palavras de sua amiga não eram mais que um som distante e ininteligível.

***

A extremidade curva do pé-de-cabra foi introduzida no estreitíssimo espaço entre a porta e o contramarco fixado ao muro. Com um movimento preciso, a ferramenta destruiu um trecho da moldura lateral do vão e deformou a testa da fechadura, liberando assim o trinco. Amora iluminava, com uma lanterna, a ação de Letícia, a fim de dar mais visibilidade ao trabalho desta. Ao mesmo tempo observava nervosamente a rua e as residências ao redor. O medo da aproximação de alguém e de uma presença repentina em uma das janelas próximas era visível na expressão de seu rosto, não obstante, àquela hora da madrugada, o bairro estivesse deserto e as casas adormecidas.

Em menos de um minuto já estavam na área frontal da casa. As lembranças da noite do assassinato avivaram-se dolorosamente na memória de Amora. Ela parou e direcionou a lanterna para o mesmo local em que vira Marisa, envolta pela penumbra, fugindo para os fundos da casa depois de ter atirado no irmão. Sacudiu a cabeça como que para expulsar aquele passado de dentro si.

___ Amora. ___ Chamou Letícia, a meia voz. ___ O que está fazendo aí? Vamos.

Amora direcionou a coluna de luz para o escuro dentro da varanda, iluminando em cheio a amiga, que já havia forçado a porta de entrada e a tinha escancarada à sua frente. Letícia cruzou a soleira e tateou, na escuridão, à procura de um interruptor na parede. Encontrou-o sem dificuldade. Quando o acionou, a luz, que há muito não era ligada, caiu pesadamente na sala ampla e cheirando a mofo. Amora, que veio logo atrás, percebeu, com um mal-estar, que o cenário do crime não tinha sido modificado em nada nos vinte anos que se passaram. Os móveis, os enfeites sobre a estante, os quadros nas paredes, tudo estava exatamente como na noite fatídica. Até o desenho a giz, feito no chão pela polícia, reproduzindo os contornos do corpo de Jeferson na exata posição em que caíra, estava ainda lá, tão intacto e vívido como se tivesse sido feito naquele momento. Era a eternização da tragédia. Aquela sala estava presa a um estado atemporal que a condenava a repetir o crime dia após dia. Tudo aquilo acionou um gatilho na mente de Amora, e uma onda de angústia apossou-se de seu ser. Ela fechou os olhos. As lágrimas começaram a descer. Letícia, percebendo o desarranjo emocional da amiga, aproximou-se e a abraçou.

___ Força, Amora! Temos um trabalho a fazer. Você precisa ser forte.___ Tá tudo bem. ___ Disse Amora, limpando as lágrimas e se recompondo. ___ Vamos em frente.

Transportaram rapidamente o material que estava na mala do carro, estacionado na calçada, para o interior do quarto outrora pertencente à Amora e seu marido. Tinham resolvido, após uma breve deliberação, que a máquina seria montada nesse cômodo, isso porque o local ficava de frente para o ponto da sala onde se dera o crime. Era o lugar ideal para Amora observar e registrar tudo sem ser vista.

O local não estava diferente do resto da casa. A cama de casal, a cômoda, os dois criados-mudos, tudo continuava no mesmo lugar, do mesmo jeito que Amora os deixara no dia fatídico, vinte anos atrás, antes de ser injustamente presa. A única indicação da passagem do tempo ali era o encardido no branco, outrora alvo, da cortina, causado pelo bolor e o acúmulo ininterrupto de poeira. Antes mesmo de montar e utilizar a máquina, Amora já se sentia como se tivesse voltado ao passado.

Todo o material que ia ser utilizado estava no interior de duas grandes e pesadas caixas de PVC. Letícia e Amora levaram, juntas, uma caixa de cada vez a fim de dividirem o peso, que era demais para ser suportado por uma só pessoa. Ainda assim exigiu um grande esforço que as obrigou a parar mais de uma vez, durante o trajeto, para descansar.

O próximo passo, depois de transportada a carga para o quarto, foi arrastar os móveis para um canto a fim de conseguir mais espaço. De dentro das caixas foram retiradas três peças de vidro semicirculares com um par de lâmpadas na superfície interna de cada uma. Essas peças, feitas de um grosso vidro e pesando uns 50kg, foram, sob a orientação de Letícia, colocadas uma sobre a outra, formando assim um tubo com espaço interior suficiente para caber uma pessoa em pé. Dois rolos de cabos grossos de energia, um gerador com as mesmas dimensões de um micro-ondas e um merobook também foram retirados de um dos recipientes plásticos.

Os cabos tiveram uma de suas extremidades conectadas ao gerador e a outra em tomadas, só percebidas por Amora nesse momento, localizadas na base do tubo de vidro. Letícia ligou o merobook e acessou um programa cuja tela simulava um quadro negro, depois foi até o gerador e pressionou um botão azul. Imediatamente os objetos que pareciam ser lâmpadas, no interior da estrutura de vidro, acenderam-se, projetando luzes vermelhas circulares que iluminaram a armação tubular de cima a baixo. Amora observava em silêncio o trabalho de Letícia, até que esta, olhando para a coluna luminosa, anunciou:

___ Tudo ok, Amora. Já podemos dar início.

___ Essa é a máquina do tempo? ___ Perguntou Amora, contemplando a estrutura resplandecente com um ar de quem esperava algo diferente do que estava vendo.

___ Sim. Você está olhando pra ela. ___ Disse Letícia. ___ Máquina do tempo, esta é Amora, Amora, esta é a máquina do tempo.

Amora sorriu com a brincadeira da amiga, mas, na verdade, o que estava sentindo era uma estranha fascinação. Havia uma beleza quase sobrenatural naquela forma transparente, com aquelas luzes vermelhas faiscantes preenchendo o seu interior.

___ Ela é linda. ___ Disse Amora. ___ Essas luzes vermelhas, pra que servem?

___ São lasers. ___ Respondeu Letícia, observando sua criação com o mesmo orgulho com que um artista observa a sua obra.__ Eles causam uma distorção no espaço-tempo dentro do tubo. É como abrir uma porta que dá acesso ao passado. Uma porta que daqui a pouco você vai entrar. E por falar nisso, Jeferson foi morto mais ou menos umas duas horas da madrugada, não foi isso?

___ Acho que sim. Creio que foi nesse horário que eu escutei o tiro. Logo depois eu vi a desgraçada fugindo em direção à lateral da casa. Mas, por que a pergunta?

Letícia agachou-se diante do merobook, que colocara no chão, e consultou as horas na tela.

___ Já passa de 1:40h. Você tem que estar lá antes do assassinato acontecer. O tempo do presente e do passado está sincronizado. Por isso é melhor você se apressar. Entre no tubo.

Amora observou a máquina, e a ideia de entrar nela lhe provocou um frio na espinha. Se deu conta, então, de que estava com medo. Letícia, percebendo a hesitação da amiga, ergueu-se e aproximou-se dela.

___ Tome. ___ Entregou-lhe um objeto retangular, do tamanho de uma caixa de fósforos. ___ É uma câmera. Ela grava automaticamente enquanto filma. É só apertar o botão. Sentir medo diante do desconhecido é completamente normal, Amora. Mas fique tranquila, que nada vai lhe acontecer, assim como não aconteceu com os microrganismos e com o rato. Todos eles voltaram sãos e salvos.

___ Que bom. __ Disse Amora enquanto guardava a mini filmadora no bolso da calça. ___ Isso é bastante tranquilizador. Bem, é melhor eu me apressar, senão vou chegar atrasada pra festa.

___ Não esqueça do que eu te disse. ___ Advertiu Letícia.__ Nada de interação e muito menos interferência no rumo dos acontecimentos. Não se permita sequer ser vista. Limite-se apenas a filmar, e só. Tá okey? Isso é importante.

Amora balançou a cabeça.

___ Okey. Pode ficar tranquila. Não vou interferir em nada.

Os espaços existentes entre as extremidades das peças de vidro, que compunham o tubo, formavam uma abertura vertical e estreita, o que obrigou Amora a passar de lado por ela. Letícia observou a silhueta da amiga através da espessura do vidro. Digitou rapidamente uma equação que preencheu quase toda a tela do merobook. Certificou-se de que não havia nenhum erro de cálculo, em seguida foi até o pequeno gerador e girou uma chave, o que aumentou a potência e a luminosidade dos lasers. Procurou enxergar de novo a imagem distorcida de Amora dentro do tubo, porém percebeu, com um misto de alívio e satisfação, que ela não estava mais lá.

Um breve formigamento por todo o corpo. Essa foi a única coisa que Amora sentiu na sua viagem para o passado, que aliás, se deu de forma absolutamente instantânea. Em um momento estava no interior do tubo, rodeada de lasers, no instante seguinte tudo havia desaparecido. Viu-se no mesmo cômodo, porém mergulhado agora em uma penumbra penetrada por uma luminosidade que a porta encostada permitia passar. Havia também um cheiro, que era o do seu quarto de outrora. Um cheiro já há muito esquecido e que, naquele momento, a encheu de nostalgia. Ouviu um ruído vindo da sala. Amora aproximou-se cautelosamente da porta e, abrindo-a mais um pouco, observou uma figura que parecia ter acabado de entrar na casa. Era Jeferson. Ao reconhecê-lo sentiu de imediato um estremecimento e seu coração bater mais rápido. A imagem de seu marido morto, estendido no meio da sala, presente em sua memória, e a visão dele vivo causaram tal confusão em sua mente que pensou que iria enlouquecer. Recuou e colou as costas na parede. De repente, de seus poros, começou a brotar um suor frio. Sentiu como se fosse desfalecer. Em sua mente um tsunami havia se formado. Um amálgama de pensamentos e memórias revolvia-se furiosamente em sua cabeça, com tamanha pressão que parecia prestes a explodi-la. Seriam esses sintomas o efeito colateral de uma viagem no tempo? Fossem o que fossem desapareceram em poucos segundos.

Sentindo-se melhor, Amora tirou da cintura, na parte de trás da calça, uma arma que escondera de Letícia durante as horas que precederam o experimento, e que comprara de um contrabandista, conhecido da mulher que fora sua protetora e amante no presídio. Aliás, para obter essa indicação teve que ir visita-la no complexo penitenciário. Depois da compra embrulhou o revólver a fim de oculta-lo das vistas de sua amiga. Colocou o volume debaixo da cama e, pouco antes de saírem de casa, aproveitando o momento em que Letícia estava no banho, desembrulhou a arma e escondeu-a na parte de trás da cintura, por baixo de uma blusa longa que vestira justamente para esse fim.

Verificou o tambor. Seis balas. Iria usar todas naquela desgraçada. “Sinto muito, Letícia, mas não vai dar pra seguir as suas orientações de não interferência”. ___ Pensou de si para consigo. ___ “Estou tendo a oportunidade de consertar a minha vida, de impedir a origem do que causou a minha ruína. Desculpe, amiga, mas não posso perder essa chance, que talvez seja a única que terei em toda a minha vida.

Amora segurava firmemente o cabo do revólver com as duas mãos, com tamanha pressão que fez os seus dedos doerem. Agora era só esperar o momento certo. O momento em que Marisa chegaria para matar o irmão. Mas dessa vez não. Dessa vez estaria lá, de tocaia, pronta para impedi-la. Ouviu um ruído vindo da sala. Aproximou-se da porta e abriu-a só o suficiente para observar o seu marido. Foi nesse exato momento que Jeferson adentrou o quarto, deparando-se com uma figura assustada e de olhos arregalados.

___ Ué! ___ Fez Jeferson, acendendo a luz do quarto. ___ Já chegou? Não vi o carro na garagem.

Seu olhar pousou no revólver que Amora segurava.

___ Onde arranjou esse revólver? Que novidade é essa?

Amora abriu a boca para responder, mas percebeu que não sabia o que dizer. Estar ali, cara-a-cara com seu falecido marido era algo a um só tempo aterrorizante, espantoso e enlouquecedor.

“Marisa vai chegar a qualquer momento pra te matar. Ela vai atirar em você. Mas eu vou impedi-la”. Essas palavras fluíram perfeitamente no pensamento de Amora, mas sua boca não conseguiu articula-las.

___ Eu tenho algo pra te dizer. ___ A frase saiu quase num sussurro.

Jeferson encarou Amora com uma expressão interrogativa. Estava estranhando aquele comportamento de sua esposa, mas não era só isso. Havia algo de errado com a aparência dela. Seu rosto apresentava algumas rugas que, tinha certeza, estavam ausentes na última manhã. De repente teve uma leve impressão de que estava conversando com uma mulher completamente estranha.

___ Eu tenho algo pra te dizer também. E é muito sério ___ Declarou Jeferson, subitamente. Ele deu as costas para a esposa e caminhou em direção à sala.

Amora sentiu-se dominada pela curiosidade. Então Jeferson tinha algo para lhe falar antes de ser morto. Algo que ele diz ser sério, mas que, infelizmente, acabou levando para o túmulo antes de revelar. O que poderia ser? Graças à máquina do tempo de Letícia, tinha agora a oportunidade de saber. Seguiu o marido até a sala, onde o observou adentrar a cozinha americana e tomar um copo d’agua. Lembrou-se que Jeferson costumava beber água não só quando tinha sede, mas também quando estava preocupado, tenso. Isso era um indício da gravidade do que ele queria lhe falar.

Amora sentou-se no sofá e procurou relaxar um pouco, porém não conseguiu. A ansiedade e a tensão não estavam permitindo. Levantou-se, segurando a arma com as duas mãos à altura do tórax. A qualquer momento Marisa iria chegar para matar o irmão, mas dessa vez era ela quem seria assassinada. Não podia ser mais perfeito. Eram dois coelhos com uma só cajadada. Iria matar a vilã e ao mesmo tempo dar um final feliz à história.

Jeferson voltou da cozinha e parou na sua frente. Olhava para o revólver sem compreender.

___ Amora, o que diabos está acontecendo? ___ Perguntou, com visível irritação. ___ Onde você arranjou essa porra dessa arma, e pra quê? Ficou louca?

___ Você vai entender, amor. Daqui a pouco tudo vai fazer sentido. ___ Amora avançou para ele e o abraçou. Um abraço apertado, de vinte anos de ausência.

___ Senti tanto a sua falta. ___ Murmurou ela, a voz carregada de sentimento.

Mas Jeferson recebeu o gesto da esposa com extrema frieza. Nem sequer retribuiu o abraço. Ficou imóvel como uma estátua enquanto sentia os braços de Amora enlaçando-o tão fortemente como se fosse a última vez. Por que ela estava agindo daquela forma, dando a entender que estivera ausente por meses ou anos, quando na verdade tinha sido só por algumas horas? Que diabos estava acontecendo?

Jeferson Afastou-a de si, segurando-a pelos ombros.

___ Precisamos conversar, Amora, mas primeiro livre-se desse revólver.

Amora olhou para a porta de entrada da casa. A qualquer momento Marisa iria entrar por ela. Talvez já devesse até ter passado pelo portão e estava caminhando, naquele exato momento, em direção à varanda. Hesitou por alguns instantes, então suspendeu a blusa e guardou a arma na cintura.

___ Pronto, amor, pode falar. Mas seja rápido.

___ Serei. Eu me apaixonei por outra pessoa, e diante disso eu quero a separação.

Jeferson calou-se e aguardou a reação que suas palavras causariam em sua esposa, no entanto esta o fitava com uma expressão de quem não tinha entendido nada do que acabara de ouvir.

___ Então era isso. ___ Murmurou Amora após alguns segundos de um pesado silêncio.

___ Entenda, Amora, foi uma coisa totalmente inesperada. Eu realmente não queria...

___ Quem é ela? ___ Atalhou Amora, olhando fixamente nos olhos do marido.

___ Ora, Amora, não torne as coisas mais difíceis. Que diferença...

___ Quem é ela, Jeferson? Eu preciso saber.

Jeferson suspirou profundamente antes de falar.

___ Letícia.

A menção daquele nome foi como um soco no estômago para Amora.

___ Quem? Letícia, minha amiga? Você só pode estar brincando.

___ Não, não estou brincando. Nós nos apaixonamos. Não queríamos isso, mas aconteceu. Simplesmente aconteceu.

Jeferson fez uma pausa para observar atentamente a expressão no rosto de Amora. O que viu não foi indignação, revolta ou ódio, como esperava, mas algo parecido com uma profunda decepção.

___ Há quanto tempo vocês estão me traindo pelas costas?__ Indagou Amora, com tristeza na voz.

___ Amora, não há necessidade de entrar nesses detalhes. Vamos procurar resolver isso de uma forma menos desagradável.

___ Responda a porra da pergunta.

Um som vindo de fora da casa desviou a atenção de Amora. Marisa. Ela sacou a arma da cintura voltando os olhos para a porta. Seu estado de tensão era tão forte que apertou o gatilho sem perceber. O disparo acidental produziu um estouro seco que estrondou a sala. Tomada pelo susto, olhou para o cano fumegante do revólver e em seguida para Jeferson que, cambaleante, tinha ambas as mãos sobre o peito esquerdo. Seus olhos estavam arregalados e fitavam Amora com um misto de surpresa e indecisão. Seu corpo pendeu para o lado, voltando, em seguida, a ficar na posição correta. Com um grunhido, Jeferson caiu finalmente para trás, chocando-se de costas com o chão da sala.

Amora aproximou-se do corpo do marido e observou, atônita, o sangue brotando de seu peito, onde a bala penetrara. Balançou a cabeça em negativa, como querendo negar a realidade que se apresentava diante de si. Sentiu-se tomada por um desespero avassalador. Deixou cair o revólver ao lado do cadáver.

___ Não! Não fui eu! Não fui eu! ___ Murmurou, dando alguns passos para trás.

Não era para acontecer daquele jeito. Estava tudo errado. Aquilo não podia estar acontecendo, era coisa da sua mente. Um delírio. Aquilo ali não era o passado. Letícia estava equivocada. Era uma realidade alternativa, um universo paralelo. Precisava sair dali, fugir daquela realidade.

Precipitou-se em direção ao quarto, porém mudou de ideia. Voltou-se e dirigiu-se, quase correndo, para a porta de saída. Abriu-a, passando para a varanda envolvida pela penumbra que se estendia por toda a área frontal da casa. Nesse momento estacou, com um calafrio, ao divisar uma mulher parada próximo ao portão. Mesmo à meia luz reconheceu rapidamente a si mesma na figura feminina que a observava a alguns metros de distância. Um deja-vu a transportou instantaneamente para aquele mesmo passado transformado outra vez em seu presente. Correu, aturdida, para a lateral da casa enquanto um “ei”, gritado pela sua outra versão, chegava aos seus ouvidos. Parou, sem saber para onde fugir. Na verdade não havia saída. A propriedade estava cercada por um muro alto, intransponível. Queria desesperadamente voltar para o futuro, mas como? Esquecera de perguntar a Letícia sobre isso. De repente sentiu um formigamento subir pelas suas pernas e tomar todo o seu corpo. Foi com um tremendo alívio que se viu outra vez dentro do tubo de vidro, mas com o alívio veio também um grande desalento. Cambaleou para fora do artefato. Tudo parecia tão sem sentido agora. Passado, presente e futuro misturavam-se em sua mente, formando um amálgama que ela não conseguia entender. Encaminhou-se para a saída da casa com um olhar vago e passos lentos como se estivesse num estado de transe. Ignorou completamente sua amiga que, desesperadamente, lhe perguntava se estava bem e o que havia acontecido. Esta, percebendo que suas tentativas de comunicação não surtiam efeito, segurou-lhe o braço a fim de detê-la. Amora parou e voltou-se para ela, com tamanho ódio no olhar que fez Letícia solta-la imediatamente. Retomou sua marcha, deixando para trás uma amiga totalmente confusa e atônita.

Amora perambulou pelas ruas sem destino certo. Os veículos passavam em alta velocidade ao seu lado, quase a derrubando na calçada com o ar que deslocavam violentamente. Considerou atirar-se na frente de um deles. A ideia realmente não era má. A estranha experiência que vivera havia tirado o pouco sentido que ainda enxergava na vida. Tudo estava conectado. Passado, presente e futuro eram uma coisa só. Pelo menos era essa a sua constatação, e não conseguia enxergar nenhum significado nisso, se é que precisava haver um.

Chegou num ponto de ônibus no exato momento em que um coletivo estava parando. Entrou nele sem se preocupar em saber qual era o seu destino. Obra do acaso ou não, o veículo a levou de volta para Lauro de Freitas. Sempre Achou que tinha alguma espécie de ligação mística com aquele lugar. Amora desceu do veículo e caminhou, dessa vez, sabendo exatamente para onde queria e precisava ir. Em poucos minutos chegou à casa de sua mãe. Bateu na porta. D. Kaila atendeu, e foi com visível surpresa e emoção que se deparou com a filha, que não via há vinte anos.

___ Amora! ___ Exclamou a anciã, transbordando felicidade.

___ Me ajuda, mãe.

Amora caiu de joelhos, entre lágrimas, e abraçou D. Kaila, encostando a cabeça na sua barriga, o único lugar em que realmente esteve segura e para o qual, naquele momento, desejava ardentemente voltar.