O BIG BANG

“Você acha que o mundo faz um belo som quando se parte”?

Partindo do princípio que cada ser humano é seu próprio universo, Devon gostava de pensar que sim: fossem o som de ossos quebrando ou de corações partindo. Não importava a razão, afinal, todo espécime de homem vivente de exemplar masculino ou feminino estava sujeito à corrupção.

O que o tornava corruptível também, de fato.

A única coisa que os iguais a ele não compartilhavam da mesma forma era o tempo: uns com mais, outros com tão menos. Sempre aquela disparidade maldita... Artefato intangível que se tornou uma moeda de troca valiosa aos Piratas do Tempo e o mesmo que arrancou Ana de seus braços quase uma década atrás.

Beirando seus trinta anos, ele carregava as marcas da idade como beijos que o véu dos tempos lhe dera às faces coradas de sol. Linhas expressivas em torno dos olhos e na testa, mas que não condiziam com a vivacidade de suas viagens. Assim como muitos, Devon era um viajante do tempo.

Como ele, centenas.

Seu avô, Almirante do exército inglês e veterano da Primeira Grande Guerra, deixou ao filho uma carta e um mapa em seu leito de morte, cujas coordenadas apontavam não apenas para um, como para dezenas de portais que atravessavam a História, cortavam as dimensões da física e da biologia e moldavam um homem com sua carne, ossos e vestes em qualquer data ou período que ele desejasse.

Sendo o terceiro de seu sangue a se aventurar por entre as linhas do etéreo, Devon tinha como objetivo apenas uma coisa: livrar o mundo da peste que destruía o planeta dia após dia: a raça humana. Ele entendia que, como animais, os seres humanos eram a única espécie capaz de destruir completamente o próprio habitat, sem qualquer controle. Apareciam, utilizavam e exploravam todos os recursos à mão, então simplesmente partiam para um novo terreno, deixando um rastro de destruição.

Tinha sido assim desde os primórdios da humanidade. Acredite, ele viu com os próprios olhos!

Pelo radicalismo, seu vocativo entre os seus e como fora “carinhosamente” apelidado pelos Protetores do Tempo (a polícia que o condenava) era Xeque-mate: definitivo, cruel e sem retorno.

Mas, houve um tempo, dentre suas viagens, quando salvou certa bruxa de ser queimada durante a Santa Inquisição, que o homem ostentava ainda um pouco de vida nos olhos azuis feito miosótis. Esse brilho chamou à atenção de Ana, condenada antes em um livro de milhares de nomes como uma das vítimas daquela chacina religiosa. Não mais.

Salvar a moça de cachos robustos e sardas na pele não fora suficiente. Devon queria tê-la consigo para sempre: sua risada, seu gosto, sua admiração... Porém, a pouca idade e o sentimento de invencibilidade que corrói um coração apaixonado o cegou, deixando o pirata vulnerável em sua própria fantasia.

Eles viveram poucos anos juntos em um presente que agora jazia anos atrás, enterrado ao passado. Memórias que Devon deixou de visitar incansavelmente há apenas algumas semanas. Já não existia um traço das feições de Ana que não conhecesse. Decorou até os movimentos dela, a maneira como segurava uma xícara de chá ou partia um pedaço de pão para um cão faminto nas ruas nojentas de Boston.

Assim como conhecia, de olhos fechados ou abertos, o tom vivo de sangue contrastando com o chão de mármore no qual o corpo pálido dela jazia, já sem vida, numa noite hedionda de um domingo que jamais lhe deixou a mente.

Eles diziam proteger o tempo, mas não faziam nada além de acobertar os próprios traseiros! Ana era inocente, gentil e bondosa. Ana merecia viver.

— Você acha que o mundo faz um belo som quando se parte? — E por que faria? Ele se perguntou, uma vez mais, respondendo àquela voz tão familiar que existia apenas em seus sonhos mais tenros.

Eles estavam parados em um terraço antigo de um prédio ainda mais velho, o vento galopando em seus cabelos e toda uma vida pela frente. O Palácio de Westminster era uma visão e tanto àquela hora do dia e Ana nunca se cansava de admirar o som potente do Big Ben às seis da tarde.

Quando Devon a explicou sobre a teoria física de que o universo havia sido criado de uma enorme explosão cujos pedaços formaram aquilo que conhecíamos, ou parte disso, ela se perguntou se o som da explosão era tão bonito quanto o tremor estridente das ondas que lhe sacudiam os tímpanos a cada badalada do relógio.

Agora, diante do Big Ben em todo seu esplendor, ele virava a última golada de uma garrafa de rum velho: o ano era 1859, exatamente no final de tarde do dia 31 de maio em que Augustus Welby Pugin e Charles Barry entregaram a torre finalizada e toda Londres se reunia para escutar a primeira badalada de seus sinos e engrenagens.

Rostos estranhos se alinhavam e apontavam para cima, tentando enxergar entre os últimos raios de sol, detalhes daquela construção magnífica.

Devon limpou a garganta e deixou a garrafa de lado. Ele não sentia culpa ou empatia por qualquer uma daquelas pessoas, mas havia, bem no fundo do estômago, uma pontada de amargor. Mesmo se quisesse voltar atrás, não daria tempo. Tão logo o crepúsculo tingiu o céu de um laranja rosado, o ponteiro maior atingiu o número doze em estilo romano e, ao invés de sonoras badaladas, dezenas de explosões iniciaram desde o meio até o topo da estrutura.

Por entre todo o vidro estilhaçado, as labaredas dançantes e os gritos da multidão, Devon admirava aquela orquestra de sensações inflamar seu peito, roubar o ar dos pulmões e marejar os olhos.

Belíssimo, pensou. Uma verdadeira sinfonia épica de transformar os pelos em farpas pontiagudas.

Ele recriaria o mundo, década a década, explosão a explosão, disseminando seus pequenos Big Bangs pelos quatro cantos do mapa, até ter conseguido, finalmente, limpar o planeta de toda podridão.

Descobriria, por bem ou por mal, a resposta para a pergunta de Ana. Mas, até então, o que o pirata tinha em mente antes de vestir o capuz e desaparecer nas ondulações do portal prateado atrás de si era simples:

Sim, o mundo faz um som incrível quando se parte.

Ladra de Tinta Seca
Enviado por Ladra de Tinta Seca em 01/03/2023
Código do texto: T7730611
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