O JARDIM DE LÚCIFER (PARTE I)

O homem de barba rala caminha com rapidez, seus passos erráticos irradiam medo e insegurança. Sua respiração está ofegante e ele não confia mais nos seus sentidos. O suor que escorre dentro de seu traje desconfortável parece se misturar com as mensagens contraditórias que sua mente processa: algo sobre uma mulher que um dia lhe deixou esperando para um jantar a luz de velas e o medo de encontrar a coisa que habita aquele lugar maldito.

Sempre foi assim, nas piores situações, nos conflitos mais desgastantes ele costumava ficar focando e desfocando do problema. Uma espécie de jogo mental. Se isso de fato ajudava em alguma coisa ele nunca parou para pensar. E ali naquele lugar estranho não era diferente, lembranças de coisas antigas se misturavam com a expectativa e a tensão de se deparar com algo que ele sequer sabia nomear.

É muito tarde para se arrepender de ter aceitado tal empreitada. Ele está muito longe de casa e sequer sabe que lugar é esse aonde veio parar. Enquanto corre de maneira atabalhoada fica pensando se o melhor não seria simplesmente fechar os olhos e só abri-los quando tudo aquilo já tivesse deixado de existir.

Os belos jardins já haviam ficado para trás, bem como uma parte importante de sua sanidade mental. Agora algo incompreensível estava atrás dele.

*****

Quando aquela coisa surgiu próxima à órbita de Marte o mundo ainda discutia quem tinha razão na escaramuça envolvendo as duas maiores potências. Uma coisa idiota, mas com muitas mortes. A hegemonia sobre algumas ilhotas no oceano Pacífico compensava o sangue derramado? Tinha sido um conflito rápido, mas o suficiente para mostrar ao mundo que ainda havia um longo caminho a ser percorrido até a convivência justa e harmoniosa entre os seres que dominavam o terceiro planeta a partir do Sol.

Pouco tempo após o conflito sino-americano a Terra foi atingida, durante alguns milionésimos de segundo, por uma poderosa rajada de ondas de rádio Este evento iluminou radiotelescópios espalhados na Ásia, América do Norte e África. Os sinais rastreados indicavam uma região do sistema solar próxima ao planeta Marte.

As fotos obtidas pelos telescópios espaciais Copérnico e Lao-Tsé sugeriram inicialmente a presença de um miniburaco negro, mas isso não se confirmou. Aquele estranho evento emitia sinais de rádio em uma frequência específica e em ciclos que, em hipótese alguma, poderiam ser naturais. Aquilo que surgiu repentinamente em nosso sistema solar não parecia ser uma força da natureza.

Nunca se soube quem lhe deu o nome e nem como surgiu, mas de repente todos só chamavam aquela coisa de Olho de Lúcifer. A rede mundial de computadores ficou congestionada com os milhões de informações e especulações compartilhadas entre as pessoas. Comunidades de todos os tipos discutiam o que era aquela coisa que surgiu do nada e que havia deixado os cientistas, governantes e autoridades religiosas em polvorosa.

Muitos tinham medo de afirmar, mas aquilo próximo de Marte provavelmente havia sido criado por uma inteligência desconhecida e era um evento com forte potencial para causar grande comoção social.

Explosões rápidas de rádio sempre estiveram entre os maiores mistérios do universo. O problema é que eles sempre foram rastreados a partir de conglomerados estelares distantes. Esses agora estavam praticamente em nosso quintal e demandavam uma completa e cautelosa investigação.

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Após mais de setenta milhões de quilômetros e três longos meses de tédio, checagens constantes de múltiplos equipamentos e muito exercício físico para diminuir a perda de calcificação, três solitários astronautas divisavam pela escotilha da nave a presença avermelhada de Marte. Lá embaixo estava um planeta muito frio, árido e rochoso. Próximo a ele, com um diâmetro apenas ligeiramente maior do que o seu satélite Deimos, encontrava-se algo desconhecido, com um aspecto bonito, mas também ameaçador.

Pouco mais de um século após o início da era espacial um artefato humano aproximava-se de um fenômeno completamente desconhecido para a ciência humana. A comunicação entre a solitária nave e sua base na Terra levaria longos dez minutos e meio. Qualquer dificuldade ou problema que pudessem surgir não seriam resolvidos em tempo real.

Três homens tripulavam a ATENA. Homens muito diferentes entre si e que tiveram apenas o tempo do treinamento para se conhecerem: um mês. Provavelmente eles não eram os mais capazes que havia no grupo multinacional selecionado, mas foram os únicos que se ofereceram para aquela jornada quando os demais haviam se mostrado receosos.

Três astronautas ansiosos mal viam a hora de começarem a descobrir um pouco mais daquilo que, até agora, se mostrava fora de tudo o que já havia sido catalogado em termos de mistérios do espaço.

As primeiras imagens enviadas foram captadas a uma distância que se presumiu ser segura, de apenas seis mil quilômetros. Percebia-se de maneira nítida uma estrutura parecida com um redemoinho, alaranjado nas bordas e escurecido no centro. Era inegável que aquilo lembrava em muito um globo ocular, mas era justo também dizer que ele causava uma forte impressão de estranhamento que sobrepujava a beleza de sua forma.

Na Terra essas imagens resultaram em um aumento significativo na frequência às igrejas.

Usando uma órbita na altura de Fobos e Deimos a ATENA enviou um pequeno veículo dotado de detectores para captação de raios cósmicos, magnetômetros, câmeras de diversos tipos e equipamentos para detecção de partículas variadas. Os dados obtidos propiciariam meses de análise e debate para a equipe em terra.

A segunda parte da investigação pressuponha uma abordagem humana. E assim foi feito. Um dos tripulantes permaneceria na Atena e os demais iriam ao encontro do fenômeno.

O módulo de exploração encontrava-se a menos de quatro mil quilômetros de distância quando o inusitado aconteceu. Sem nenhuma espécie de sinal que pudesse ser detectado ele simplesmente foi sugado em direção àquele vórtice espacial. Em segundos, de maneira completamente inexplicável, ele sumiu das telas.

A estação de comando na Terra levou aproximadamente dez minutos para receber a informação do sumiço do módulo de exploração. Outros dez minutos foram necessários até o sinal de comunicação por laser ser recebido pela Atena. O teor da mensagem era claro: se após vinte e quatro horas, tempo da Terra, não houvesse nenhum indicio dos dois astronautas desaparecidos, um artefato contendo uma ogiva nuclear seria disparado em direção ao Olho de Lúcifer.

*****

Dentro do módulo, dois astronautas despertam de um estranho sono. Ainda atordoados descobrem que quase todos os equipamentos estavam misteriosamente inativos. Navegação, comunicação e pesquisa estavam inertes. Apenas o suporte de vida funcionava integralmente. Alguma coisa parecia ter desligado tudo dentro da pequena capsula.

Havia uma intencionalidade em tudo o que tinha ocorrido até então. Estava claro que um tipo de inteligência extraterrestre os havia capturado. Onde eles estavam? Que lugar era aquele? Existia uma atitude hostil? Qual era o objetivo de tudo aquilo? As perguntas iam se acumulando...

Em uma rápida confabulação decidiram que uma exploração do ambiente se fazia necessário.

Mesmo achando que a atmosfera daquele lugar era semelhante a da Terra os dois exploradores resolveram sair utilizando os trajes para atividade extra-veicular. Não se sentiam muito confortáveis dentro deles, mas a segurança era essencial naquelas circunstâncias. Completamente vedados, permitindo uma melhor movimentação e contando com baterias, ar e sistemas de filtragem de gás carbônico duplicado os novos trajes fizeram os astronautas se sentirem mais confiantes.

Os primeiros passos fora da segurança da nave mostraram que eles pisavam em uma relva muito macia, tão macia que pensaram em se despir dos trajes e ficarem rolando nela. A paisagem que se vislumbrava encantava aos sentidos. A sua frente estava um imenso jardim onde pululavam flores multicoloridas em nichos espalhados harmoniosamente. Pequenas árvores em cores violácea, azulada e amarelada entremeada por muros de cerca viva perfaziam um mosaico de rara beleza. Um céu azul claro e sem nuvens forneciam a pincelada final para aquele quadro.

Santiago e Zhang não tinham muita coisa em comum, haviam tomado conhecimento da existência um do outro apenas durante o treinamento para a missão, agora estavam sozinhos em algum lugar há milhões de quilômetros da Terra e contando apenas um com o outro. O que mais incomodava a ambos era o fato do ambiente ao seu redor parecer tão familiar. Aquele jardim imenso poderia muito bem fazer parte da arquitetura de um antigo palácio medieval e seria, com toda a certeza, uma atração turística muito visitada.

- Juro que não estou entendendo nada. Que forças trariam a gente até esse lugar? – Zhang, o astronauta chinês, movimentava o pescoço de um lado a outro tentando se familiarizar com o inusitado ambiente.

Santiago não respondeu de imediato, preocupado que estava em checar a funcionalidade de seu traje.

Zhang continuava fazendo perguntas.

- Alguém sabe me explicar o que diabos um jardim gigantesco está fazendo aqui nas imediações de Marte?

Santiago queria ficar em silencio, mesmo sabendo que isso era uma coisa impossível naquela circunstância. Elaborar uma resolução para um problema sempre lhe exigiu primeiro certa quietude, depois pensamentos desfocados eclodiam e finalmente uma resposta era elaborada. Sempre havia sido assim ao longo de sua vida. Só que agora ele estava perdido em algum lugar do universo e isso, com certeza, exigia outros parâmetros adaptativos.

- Olha, não acho que estamos em Marte ou sequer perto dele. Nós já pousamos várias sondas lá e vocês também. Muito material já foi coletado e nunca encontramos nada que dissesse que havia vida por lá. Então não, definitivamente não estamos em Marte e acho que nem perto dele.

A voz de Zhang demonstrava leve tensão ao novamente perguntar.

- Se a gente não está em Marte onde é que nós estamos afinal?

Dessa vez Santiago não respondeu.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 26/03/2023
Código do texto: T7749582
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