O JARDIM DE LÚCIFER (FINAL)

Os exploradores avançavam de maneira cautelosa, coletavam folhas, lascas de árvores e areia. Colocavam tudo em recipientes hermeticamente vedados. Estranhamente não percebiam a presença de insetos e nem observavam movimento nas folhas das árvores que indicassem a existência de ventos.

- Reparou que não vimos um mísero inseto aqui? Que lugar é esse que nem vento parece ter? Vamos ver o que o pessoal do laboratório vai descobrir quando analisarem essas amostras. – Santiago ao escutar Zhang falar sentiu, por um breve momento, uma ponta de inveja de seu companheiro de empreitada, ele sempre quis ser melhor com as palavras, mas terminava mesmo por ser um sujeito mais calado que falante.

Os astronautas caminhavam cautelosamente por entre o labirinto de cercas vivas quando, ao dobrarem uma pequena bifurcação, se depararam com algo que os fez estancar de súbito.

- Mas que merda é essa já? – Bradou o astronauta chinês dentro de seu traje.

O que os exploradores divisavam à sua frente era algo inusitado e surpreendente: a estátua de um homem montado em seu cavalo impactava os seus olhos. A harmonia dos detalhes chamava a atenção, os entalhes feitos com uma precisão que impressionou os dois astronautas.

- O artista que fez essa escultura deve ter tido um trabalhão danado. – Essa frase proferida por Santiago foi seguida por um suspiro captado plenamente pela radiofonia de Zhang.

- É como se ela estivesse quase viva... Como se a qualquer momento fosse ganhar vida – Santiago percebeu um leve tom de medo se insinuando na voz de Zhang.

Aquela estátua parecia não ter sido feita com nenhum material conhecido. Não era algum tipo específico de pedra, não era metal ou argila, muito menos plástico o que foi usado para a sua construção. Havia algo naquele conjunto que incomodava aos dois astronautas. Demorou um pouco até atinarem com o que era. O que havia lhes deixado pasmos era a posição em que se encontrava o cavaleiro e seu animal: eles foram retratados no exato instante em que estavam iniciando um retorno. Como se o escultor tivesse decidido que o cavaleiro deveria voltar imediatamente. O mais certo não seria esculpir ambos em uma posição altiva e não naquela que parecia mais uma fuga desesperada?

Eles já tinham caminhado bastante naquele imenso jardim e sentiam a curiosidade arder. O que significava uma estátua de um cavaleiro perdida em algum lugar próximo da órbita de Marte? Aquilo não fazia sentido.

O que eles iriam divisar logo adiante os deixaria com a curiosidade mais aguçada ainda.

Era nítido que a escultura que eles viam a sua frente não retratava um ser humano. Olhos incrivelmente grandes e situados quase ao lado da cabeça lembravam muito alguns lagartos do deserto. A expressão de pavor em sua face deixou os dois exploradores com a respiração em suspensão. Aquela criatura tinha uma estrutura física maior que um ser humano e em uma de suas mãos segurava um objeto estranho, muito parecido com um relógio de parede, só que com quatro ponteiros.

Aquele ser congelado demonstrava terror em suas feições. O que ela viu que a deixou com tanto medo?

- Juro que eu queria ter uma arma aqui – Falou o astronauta chinês olhando incessantemente ao redor.

- Não tenho muita certeza se uma arma iria adiantar de alguma coisa – Respondeu Santiago.

- Você acha que isso que essa criatura segura é uma arma? Está parecendo mais um instrumento de algum tipo – Perguntou Zhang.

- Sinceramente isso não parece uma arma. Talvez seja um instrumento para medição de alguma coisa, algo para comunicação, não sei – Respondeu Santiago.

- Santiago, deixa eu lhe dizer uma coisa... E se essa criatura estava tranquilamente lá onde ela morava e de repente foi trazida para cá do mesmo jeito que a gente?

- Eu também fiquei com essa impressão – Suspirou Santiago.

- Esses seres parecem respirar oxigênio e meu equipamento diz que temos 21% de oxigênio aqui. Bem que poderíamos retirar os capacetes e...

- Não! – Interrompeu Santiago de maneira abrupta – Pode haver microrganismos nocivos aqui. Não é hora da gente se

arriscar.

Os dois astronautas, treinados para analisar friamente dados e situações diversas, encontravam-se perdidos em mil conjecturas. Nenhum dos dois falou em medo, mas em cada um deles surgiu uma sensação desagradável desencadeada pela percepção de um perigo real, como se uma coisa ancestral estivesse presente naquele lugar, algo que se situava para além da compreensão humana.

Seguindo em sua jornada o que eles viram em seguida faria a alegria de toda a comunidade de paleontologistas do mundo. Três seres, um macho, uma fêmea e seu filhote estavam ali, como que congelados. O macho segurava de maneira agressiva um osso longo, provavelmente o fêmur de algum grande mamífero, logo atrás dele a fêmea segurava no colo o filhote. Estava mais do que claro que aquelas criaturas pareciam ser ancestrais dos humanos atuais. Baixos e atarracados pareciam estar se defendendo de algum tipo de ameaça.

- Isso está ficando cada vez mais difícil de entender. Como estátuas de homens pré-históricos foram parar bem aqui na nossa frente? Tem alguma merda de alienígena escultor morando aqui? Juro que esse lugar me dá calafrios...

- Precisamos decidir o que fazer agora. Prosseguimos explorando ou não? – Santiago percebeu que havia se esquivado das perguntas de Zhang.

O que aconteceria nos próximos minutos não teria uma explicação fácil.

Os dois astronautas confabulavam acerca do que deveriam fazer, sobre quais seriam os próximos passos daquela missão que parecia fadada ao fracasso quando um deles rapidamente desviou o olhar para algo situado atrás de seu parceiro.

- Santiago, tem uma coisa esquisita ali olhando pra gente... – A voz de Zhang era uma mistura de alerta e medo.

Em um tempo muito curto ele parou de falar e ficou imóvel.

O astronauta restante imediatamente deixou de ouvir a voz de seu companheiro na radiofonia de seu capacete. Percebeu que este assumia uma posição de completa paralisia. Tocou com força em seu braço e não obteve reação alguma. Gritou alto pelo rádio e não escutou nada. Ao tocá-lo sentiu que seu traje havia perdido textura e mostrava-se agora endurecido como se fosse uma estátua.

Toda a tensão acumulada desde o inicio daquela missão entornou de vez e o astronauta sobrevivente saiu daquele lugar em um arremedo de corrida. Enquanto se precipitava de maneira desordenada agradecia aos céus pelos novos trajes serem mais leves e facilitarem uma melhor movimentação.

Sua mente fervilha, ora focando, ora desfocando do horror que acabara de vivenciar. Lembranças pueris de seus anos de adolescência misturam-se com esboços de explicações sobre o que aconteceu ao seu companheiro. Um tipo de energia capaz de causar um dano neuronal permanente? Um microrganismo com propriedades parasitárias desconhecidas? Uma tecnologia com o poder de mapear instantaneamente o código genético de qualquer espécie gerando uma alteração morfológica? Algo intencionalmente maligno?

Ele está cansado e tem medo de estar perdido. Sequer sabe se está indo na direção certa de onde sua nave pousou. Uma dúvida de repente o assalta: a nave seria um refúgio seguro contra aquilo que está atrás dele?

Ele não viu o que os atacou, não sabe dizer como é a criatura alienígena, mas sabe que ela está por perto. Algo escondido na porção mais recôndita do sua consciência faz com que ele feche os olhos. Ele não pode e não deve olhar o que está se aproximando. Não existem ilusões agora, pois sabe que não há como enfrentar essa entidade.

Ele fecha os olhos com toda a força do seu medo. Apesar do traje sente que algo parece lamber seu corpo, como se uma língua em forma de bruma lhe invadisse a epiderme. Uma sensação indescritível de ausência de realidade lhe acomete. Ele tenta desfocar o pensamento daquilo que lhe parece amalgamar a sanidade, tenta se refugiar em suas lembranças.

Sua mente voa para uma piscina de águas azuis muito límpidas, risadas e cheiros familiares lhe assaltam, uma noite estrelada, uma música alegre que desperta a lembrança do rosto de uma mulher... Mesmo assim sente que houve uma invasão, como se o lugar mais profundo de sua humanidade houvesse sido revirado de ponta cabeça, como se as mais ínfimas conexões sinápticas que compunham o seu cérebro estivessem sendo dissecadas. Por um breve segundo achou que aquela criatura diáfana estava tentando entendê-lo, como se ele também representasse um grande enigma para ela.

Tão rápida como chegou, a percepção de irrealidade cessou. O astronauta sobrevivente sente que a entidade foi embora, mas para onde ela retirou-se? Ele tenta encontrar palavras para descrever o que está sentindo, mas tudo o que consegue são sensações de incompletude e de vazio.

Sua mente luta para avivar uma lembrança, algo que explicaria parcialmente a criatura que habita aquele lugar, como se ele já houvesse escutado um nome que designasse aquele estranho ser. Por mais que se esforce é inútil e não consegue lembrar o que era. Tudo o que ele quer nesse exato momento é buscar um refúgio contra aquilo que está atrás dele.

Em desespero o astronauta restante consegue achar a pequena nave de exploração. Ao abrir a escotilha de acesso consegue finalmente lembrar-se daquilo que sua mente desesperadamente tentava associar ao terror que vira naquele lugar: aquele estranho jardim era habitado, ou fora criado, por uma criatura semelhante a uma Górgona, não a figura da mulher com a cabeça envolta em cobras da mitologia grega, mas sim algo muito mais difícil de explicar.

Ele sabe que isso é uma resposta muito frágil para explicar o terror que havia vivenciado, mas sequer tem tempo de refletir sobre isso já que sua consciência apaga no instante em que, ofegante, fecha a escotilha da nave.

Ao voltar a si ele se encontra a bordo da ATENA. Deitado em um leito ele se depara com o rosto assustado de seu outro companheiro de missão.

*****

Sentado na varanda de sua casa, Jorge Santiago, agora sem a barba rala, ainda guardava lembranças muito vívidas de todos os acontecimentos ocorridos naquele estranho lugar, de vez em quando ainda se indaga se aquela entidade não havia levado alguma coisa dele com ela. Até quando ele iria sentir aquela sensação de incompletude?

Muitas perguntas haviam ficado sem respostas. O lugar onde ele esteve era uma espécie de astronave? Por que as amostras coletadas sumiram quando ele acordou na Atena? Que força misteriosa faria surgir do nada um ambiente como aquele? Qual era a intenção de tudo aquilo?

Ele agora não viajava mais entre as estrelas, contentava-se em ministrar aulas e em apreciar todas as tardes o pôr do Sol ao som de suas músicas favoritas. Algumas vezes ele se pega olhando para o céu e imaginando que em algum lugar do universo existe um jardim com a estátua de um astronauta.

Um dia o Olho de Lúcifer irá retornar e ele espera que quando isso ocorrer a humanidade esteja mais preparada para responder a algumas questões.

Quando esse momento chegar ele já terá partido há muito tempo.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 29/03/2023
Código do texto: T7751658
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