Os prisioneiros do tempo

Leo detestava Adolf. Adolf não conhecia Leo. Leo era artista, escritor, inventor, um predestinado que amava a vida e fazia de tudo um pouco. Adolf era general, adorava gritar ordens e mandar nos destinos. Leo tinha um grupo e Adolf o poder quase absoluto. Por enquanto…

Cedo na noite, não se viam muitas estrelas furando com o seu brilho a escuridão. Era apenas mais um “pós fim de dia de trabalho” em dia qualquer de ano qualquer, em rua de metrópole de um planeta onde nós, os humanos ainda não detectámos vida. Os acordes desfilavam saltando irrequietos uns atrás dos outros, enchendo a sala, fazendo Leo ir no balanço e perseguir o ritmo tamborilando na mesa com os dedos da mão direita.

“Este gajo, o Johann é um espectáculo a tocar” deu por si a dizer.

“Pois é. Ele atrai as pessoas, enche esta porra num ápice.”, disse Albert. “Desde que o tem aqui às terças e quintas, o gordo… é só facturar!“. O gordo era Gautama B., dono do espaço de diversão da moda – o “Nirvana”.

Olhou para a geringonça por si inventada e que parecia ser um relógio. Estavam quase todos, faltando apenas Maomé, Isaac e as duas mulheres – Cleo e Flor. Virou-se para o empregado e pediu “Ó Luís, trás mais umas aqui para a mesa que o pessoal está às escuras”. Entretanto levantou-se e dirigiu-se ao W.C.

Assim que Luís virou as costas, eles entraram e cercaram todas as mesas em poucos segundos. Mostraram os distintivos e a voz disse alto e bom som, causando sobressalto

“ Fiquem nos vossos lugares. Ninguém se mexa!”

Depois começaram a agir. Leo ouviu-os e espreitou. Estavam a levar todos; passavam os compartimentos a pente fino. Não restava muito tempo para que o descobrissem.

Carregou no botão do aparelho que afinal não era um relógio e o corpo ficou hirto, rodou noventa graus e subiu colando-se ao tecto. O dispositivo de camuflagem entrou em acção. Em seguida, sustendo a respiração olhou para baixo. Viu-os entrar com as armas em punho, os olhos atentos, examinando tudo cuidadosamente. Chegou a temer o pior mas não aconteceu. Funcionava. Não o detectaram.

Após terem saído arrastou-se até à entrada, mesmo a tempo de ver a partida das naves em forma de disco. Carregou num segundo botão e falou

“Myrian. A operação foi comprometida. Não sei como aconteceu mas eles sabem de tudo.”

A mulher ouviu e respondeu “Ok. Tem cuidado.”. A voz era diferente, precavida, quase artificial. O agente a seu lado virou-se então para a outra mulher, a qual tinha um aspecto estranho, exótico, os olhos claros de pupilas cinzentas sobressaindo na pele e cabelos escuros. A ordem surgiu em forma de interrogação

“Ainda sobrou um. Hanna, tratas tu disso?”

Leo estava debruçado sobre o parapeito de um dos terraços de onde vira as naves partir. Sabia que não havia muito a fazer pelos companheiros. Já seria bom se conseguisse escapar são e salvo de toda aquela história. Preparava-se para voltar as costas quando ouviu

“Fique onde está. Não tente resistir”

Era uma mulher. Os olhos claros, flamejantes contrastavam com o corpo atlético roxo escuro. Virou-se e dissimuladamente accionou o aparelho. O ar à ficou mais denso, biliões de partículas unindo-se para formar um só. Concentrou-se. Mentalizou. Quando abriu os olhos, os dois gigantes de pedra formavam uma barreira entre si e ela.

Patético pensar que aquilo a impediria de prosseguir. Ela ultrapassou-os sem qualquer dificuldade, com um só salto, rolou e estendeu o braço. Os raios surgiram reduzindo o colosso da direita a pó. Entretanto o outro aproximara-se rapidamente. Pegou no corpo feminino e lançou-o em frente com força. A mulher voou como bala de canhão. Passou rodopiando no ar e só parou quando os ossos atingiram a parede. Os olhos claros fecharam-se e Leo pensou que isso era bom. Que tudo tinha terminado. Mas o que os segundos seguintes mostraram foi a reabertura dos olhos frios, o avanço do braço, o disparo e o fulminar do segundo ser de pedra. Por incrível que pareça, ela levantou-se e voltou a apontar. Agora para ele.

“Eu disse-lhe para não resistir. Mais um truque e vou esquecer ter prometido entrega-lo intacto e vivinho da silva”

Anuiu com a cabeça mas decidiu jogar a derradeira cartada. Sabia que não tinha nada a perder. Sendo assim, accionou uma vez mais o aparelho. Desta vez para gerar um efeito imperceptível. O que saiu e se espalhou pelo ar não era visível ao olho humano.

Enquanto estava prostrado no chão, de barriga para baixo, com o joelho dela espetado entre as costelas, biliões de seres minúsculos agrupavam-se e preparavam-se para seguir o plano. De repente a nuvem entrou, invadindo rápida e inesperadamente as cavidades do corpo feminino. Num ápice as miríades de minúsculos guerreiros cibernéticos cortaram por dentro, rasgaram caminhos atacando todos os órgãos vitais. Sentindo diminuir a pressão Leo voltou-se. O corpo que o ameaçara dera lugar agora aquela massa disforme de tecidos e deixara de representar qualquer ameaça. Bendita nano-tecnologia!

Entrou no transportador pessoal e marcou as coordenadas. Passados quinze minutos estava à porta, falando para o intercomunicador

“Helena. Sou eu, o Leo. Necessito da tua ajuda”

Não foi Helena quem abriu mas sim o careca de óculos de ar intelectual. Olhou-o de baixo acima, hesitou por segundos e atirou depois um “Entre, a Helena já desce para falar consigo”.

Entrou e sentou-se. À sua frente desfilavam as imagens num espectáculo patético. O holograma “herói”ajoelhava-se e olhava para a outra figura - tridimensional, morena, de cabelos compridos. Junto aos corpos destruídos dos bandidos, empurrado pelo som doce das cítaras, ele declarava o seu amor enorme, grande como o mundo, a sua paixão firme, forte como o aço. Ouviu a voz

“ Olá ‘máquinas’. Que há de novo?”

As alcunhas podem nascer de tiques, actos falhados ou características físicas peculiares. Mas também de hábitos ou capacidades. E ele tinha uma capacidade única para a invenção. Para criar engenhos que espantavam a todos. Já se habituara a ouvir aquele “máquinas” bem escolhido. Isso significava a presença de alguém que o conhecia e o apreciava. Um amigo. Virou-se e encarou-a. Estava como sempre, sorriso franco aberto na cara redonda, os cabelos vermelhos com o corte curto, prático, a roupa de cores vivas, alegres. Leo respondeu

“Bem… umas complicações. Não posso ir ficar a casa esta noite. Tens aí um canto para mim?”

A voz disse “Claro, querido. Olha… tens um ar cansado. Porque não tomas um bom banho e descansas? Vou-te mostrar onde podes ficar.”

Seguiu-a. Se o corpo agradeceu o banho delicioso, ainda mais apreciou a cama limpa e aconchegante. A noite trouxe um sonho lindo e reconfortante no qual pensou na utopia de um mundo mais simples, menos violento e no qual os seres se podiam manifestar livremente. Onde existia espaço para todos e toda a gente nutria o maior respeito pela pessoa humana. Onde não existia corrida por poder cego, surdo e mudo nem qualquer fanático seguir de truísmos. Onde existia sempre lugar para o espanto, a interrogação e o mistério.

Deambulou várias horas perdido nesse mundo mágico e improvável até que a claridade entrou de mansinho pela janela do quarto e instalou-se enchendo todo o espaço. Acordou com a sensação estranha de “sentir-se preso”. A vista encontrou então as mãos algemadas (afinal era verdade) e revelou-lhe a fragilidade da sua situação actual.

Sentiu-se traído e não necessitou de pensar muito para descobrir o autor pois a cara feia, de óculos, estava ali. Por detrás do cano frio que encostava à sua cabeça. Dizia com ar trocista

“Então ‘máquinas’? Quem te salvará agora? Não estou vendo nenhuma mamã nem papá que te possa acudir. Porta-te bem e não te acontecerá nada. Não ficarás muito tempo sozinho comigo. Já os chamei.”

Olhou melhor e descobriu não ser a única vítima. Ao fundo, junto à entrada do quarto de vestir jazia um corpo inerte de mulher. “Filho da p…”. Quis gritar de raiva e fazer o “caixa de óculos” em mil pedaços. Mas não podia. Então sentiu o desalento entrar, abriu-lhe a porta, tornou-se uno com ele. Já nada importava como dantes. Agora podiam levá-lo e fazer-lhe o que quisessem.

Tiveram todos – Leo e os outros - um julgamento sumário, sem direito protestos ou a qualquer defesa. A execução das deliberações seria efectuada ali mesmo, dentro de minutos. Olharam o instrumento que iria ser usado – o objecto cilíndrico que os levaria para a sua prisão. Onde ficariam os seus corpos em estado suspenso, em letargia enquanto a mente era projectada para coordenadas específicas de tempo e espaço de modo a habitar outro ser. A voz ecoou, comunicando a decisão

“Por crime contra a autoridade, tentativa de subversão e perturbação da ordem pública, o estado condena-os a vivência em coordenadas de tempo e espaço pré-determinadas, em mundo primitivo só podendo regressar após morte do organismo hospedeiro. De acordo com o estipulado na lei, os reclusos não manterão qualquer recordação sobre a sua vida neste mundo. Cumprirão pena Leonardo da Vinci, Albert Einstein, Luís de Camões, Cleópatra, Florbela Espanca, Johann Sebastian Bach, Isaac Newton, Maomé, Gautama Buda, …”

E assim partiram. Rumo a um mundo primitivo e um tempo esquecido. E a cena repetir-se-ia muitas mais vezes, sendo sempre frustradas desta forma as várias tentativas de golpe de estado - de alteração da governação ditatorial de Adolf. No entanto, qual cauda de lagartixa que se regenera a ela própria, qual Fénix que renasce das cinzas, a resistência não morria. Continuava a luta teimosa.

Um dia o golpe chegou. E (ironia das ironias) não partiu de nenhuma acção da resistência. Em vez disso, um tipo chamado Brutus, amigo pessoal e protegido do ditador foi o autor da façanha, colocando no seu lugar o gordo Nero, um energúmeno ainda pior.

Á vítima Adolf restou apenas a contemplação irritada do objecto cilíndrico, frio, que o esperava! O ditador mal acreditava no que estava acontecendo e quase chorou de raiva quando ouviu as palavras solenes da deliberação.