Supérstites

O enigma no noticiário

Talvez eu seja o mais desgraçado dos homens. Se ao menos eu pudesse esquecer tudo o que aconteceu. Não estou vivo. Apenas sobrevivo e restará neste ambiente inadequado o pó do que um dia fui. E àquele que por acaso encontrar estes escritos, saiba que é um relato do que vivi. Escrevo com grafite esbranquiçado e com grande perturbação.

Era uma noite normal em São Eleonor, morávamos há cinco meses na casa que ganhei de minha mãe, uma casinha simples e aconchegante numa cidade pequena e pacata. A noite seria ainda mais comum se a temperatura estivesse um pouco mais baixa, o termômetro marcava 36° C às seis horas e trinta minutos.

Saímos até a varanda e ficamos a observar o céu, a pequena Isa pediu água e Mili quis jantar mais cedo. Entraram, enquanto eu fiquei alguns minutos sentado ainda fitando o céu. Entrei e jantamos uma refeição fria, a cozinha não era o ponto forte de Mili, sanduíche com presunto mal passado e coca-cola, eu preferi sempre café, já elas amavam refrigerantes, nunca aprovei isso. Depois que terminamos, Isa foi brincar com suas bonecas. Eu e Mili ficamos sentados no quarto olhando nossa filha brincar. Após alguns minutos o celular dela tocou, era sua amiga.

— Alô...

— Coloque no viva-voz, querida.

— Mili, aqui está uma loucura! Você viu o noticiário?

— Não. O que houve?

— Ligue a TV e... Tum! Tum! Tum!

— Alice? Alice!

— O que houve, querida?

— Ligue a TV.

Rapidamente levantei-me e fui até o controle remoto, peguei-o e liguei a televisão, o noticiário mostrava pessoas na rua tendo convulsões, atacando umas às outras, suicidando-se, parecia um filme de terror ao vivo, a repórter assustada e nervosa por está diante daquilo e transmitir a notícia em tempo real, falava com voz trêmula que não havia ainda uma explicação para aquela onda de comportamentos estranhos, todos os militares de folga foram convocados novamente para o trabalho, e em todos os Estados do país estava acontecendo a mesma coisa. Foi o que conseguimos assistir antes de a repórter ser atacada pelo cinegrafista.

São Eleonor era um povoado pequeno da cidade de Cruasco, havia no máximo umas trinta pessoas e umas cinco famílias. Mili ficou apavorada com o que viu, era medrosa, mas eu também estava com medo do que vi e do que poderia acontecer conosco. Ela quis ir até à casa da vizinha e amiga Luiza Cruz, cozinheira aposentada casada com Evandro Cruz, um carpinteiro local. Andamos por alguns metros até a casa deles e antes de chamarmos já ouvimos o rádio ligado e fora de sintonia, pelo que sabia deles, ou melhor, de Evandro, gostava de coisas antigas então deduzi que seria um rádio AM, talvez uma relíquia como um Sonoros com mais de quarenta anos. Bati palmas e gritei. Luiza veio atender-nos com grande simpatia, mas estava com um semblante decaído.

— Olá, boa noite!

— Boa noite — respondemos todos juntos.

— Vamos, entrem.

Perguntei se viram no noticiário o que estava acontecendo na sede de São Eleonor e em todo o Estado de Normalina, Evandro voltou-se para mim e respondeu:

— Sim, quando meu rádio ainda captava a Rádio Norma, agora não ouço mais nada.

Estávamos sendo frios, não poderia ser verdade aquilo que vimos no jornal. Estava a morar há cinco meses naquela localidade, eu não conhecia todos os que ali habitavam. As casas eram distantes, algo bem exemplificador de tempos antigos, antes do nascimento das cidades, todos os habitantes de São Eleonor viviam ali como uma forma de terapia, longe da cidade e toda sua turba de pessoas e automóveis. Eu e minha esposa resolvemos nos mudar logo após eu assinar um contrato com uma editora, precisava de sossego para dedicar-me ao meu trabalho artístico de forma plena.

— Sr.Evandro, quantas pessoas moram em São Eleonor?

— Mais de dez.

— Pensei que fosse umas trinta.

— Exatamente, mas só vêm no fim de mês. Se contente, fora nós só existe residência habitada uns três quilômetros daqui para lá — disse ele apontando para a estrada mal iluminada.

— Sr.Evandro, não há outra estação de rádio que possamos nos informar?

— Há sim.

— Então...

— Esse meu rádio é uma porcaria, não serve muito. Não consigo sintonizar a estação Girão.

— Deixe-me dar uma olhada nele.

Meus conhecimentos em eletrônica ajudaram bastante, o problema do rádio era apenas o botão seletor, dei um jeitinho nele e consegui sintonizar uma estação, ouvimos um homem falar sobre uma sociedade secreta e um projeto análogo a ela.

— Têm certeza que querem ouvir isso?

— Cale-se, disse Evandro.

Resolvi escutar o noticiário.

— Ah! Talvez vocês se perguntem o motivo de um irmão como eu ainda estar vivo num mundo como esse, mas eu vou dizer o motivo, eu estou aqui porque sou um sobrevivente como vocês. Tardou, mas chegou a hora, a hora do Armagedom chegou ao povo. Sabe como é? Os Illuminatis estão por trás de toda essa loucura, vocês sabiam que os telefones não funcionam mais? Nem internet. Boo! Boo! Boo! Boo! Aham! Mataram a charada? É isso mesmo, estão nos isolando. É, nos i-so-lan-do. Vocês não sabem, mas eu tenho informações sigilosas, talvez não sejam completas. Já ouviram falar sobre o Projeto Luz Negra? Pois é, vamos todos morrer como peixe fora d'água, como gados estamos prontos para o abatimento. Mas eles pintam e bordam como querem. Inventam suas verdades e dizem que tudo começou através de uma simples criança contaminada com encefalite viral. Raiva é o que eu sinto agora! Todos sabemos que a decorrência da raiva humana aumentou mas foi controlada há tempo. Agora dizem que a letalidade é de 99,9%. O que não dizem é que querem reduzir a população mundial em um átimo. O Apocalipse chegou!

Mais mortes

Tudo apagou, em poucos segundos a energia voltou e pude ver o semblante de terror em todos, Isa continuava com sua carinha de inocente assustada, a noite causava medo nela, naquele momento até eu estava começando a ficar assustado. Estávamos na sala da casa do casal Cruz, quando pude ver pela janela que haviam luzes de carro vindo na estrada que dava acesso para nossa localização.

— Luiza, disse Evandro, vá para a cozinha junto com elas. E você Land, prepare-se para proteger-se, não sabemos quem são, ninguém nunca aparece por aqui, não nesse horário.

Peguei uma barra de ferro e pus-me junto a Evandro atrás da porta da entrada da casa. Os carros, pelo que percebi eram dois, pararam em frente minha casa, vi pela frincha da janela que estava entreaberta, a esposa de Evandro não havia fechado-a completamente. Eram dois homens, um deles idoso e duas mulheres, arrombaram minha porta, demoraram lá dentro por alguns minutos e saíram em direção a casa onde estávamos.

— Prepare-se, rapaz! — disse Evandro.

Segurei firmemente a barra de ferro, olhei para Evandro, suspirei, exatamente no momento em que chegaram diante da porta minha filha gritou pedindo socorro, não pude fazer outra coisa a não ser correr para a cozinha, cheguei tarde. Isa estava só, o chão banhado de sangue.

— Papai, a mamãe!

— Calma, querida!

Escutei um tiro vindo da sala; porém não encontrei Mili e nem Luiza, apenas Isa e uma porção de sangue. Coloquei Isa atrás de mim e cuidadosamente com passos lentos fui caminhando em direção a trilha de sangue, de repente Luiza veio em minha direção correndo, estava suja de sangue. Pensei em revidar com a barra de ferro, mas preferi correr para a sala, peguei Isa rapidamente e corri até Evandro que tinha sido dominado por um dos estranhos que haviam entrado na casa dele. Uma das mulheres apontou a arma de fogo para mim e atirou, por um momento pensei que ela iria acertar-me, porém acertou na testa de Luiza que caiu sobre o tapete, morta. Isa começou a chorar no mesmo instante em que Evandro deu um soco no homem que havia lhe dominado e tomado sua arma e foi correndo para velar sobre Luiza. Corri até Mili, pois ela não apareceu na sala. Estava caída na cozinha desfalecida e com uma marca de unhas nos braços e rosto. Quando recompôs os sentidos a sensação de pânico tomou conta dela e nesse momento todos estavam assim, atônitos e perdidos.

— Mas afinal, o que está acontecendo aqui? — perguntei nervoso, enquanto segurava Isa junto a sua mãe.

— É algum tipo de agente infeccioso... seja viral, fúngico, bacteriológico ou parasitário, não sabemos.

— E você quem é? — perguntei-lhe.

— Sou a Doutora Aline Joice, cirurgiã, ex-bióloga, especialista em doenças tropicais e raras. Este é o professor Joaquim Bastos, mestre em química, este é Pietro Conrado, vigilante e esta é Jane Amaro, aluna de Joaquim.

De súbito Mili começou a chorar e tremer como se estivesse recebendo uma descarga elétrica, consegui acalentá-la e ela pegou Isa.

Qualquer informação naquele momento era de suma importância, então pedi que explicassem o que poderia ser aquilo.

— Como disse, não sabemos exatamente o que é, não temos meios de poder analisar. Pelo que percebi algumas pessoas têm imunidade, não tendo loucura ou apresentando sinais de canibalismo.

Pietro e o professor Joaquim estavam estranhos desde quando os vi, mas o velho não piscava os olhos e olhava fixamente para mim, de súbito caiu e apresentou convulsões, Jane e a doutora tentaram socorrê-lo, mas ele não resistiu. Pensei que seria bom sairmos dali para outro lugar onde pudéssemos encontrar algum tipo de ajuda.

— Doutora, pelo que aconteceu sua hipótese está errada, o professor não era, segundo você, imune? — perguntei.

— Sim, você está certo.

— Então todos nós iremos morrer? — perguntou Mili.

Abracei-a junto a Isa, disse que ficaria tudo bem se tivéssemos fé em Deus e Ele piedade de nós. Estava desesperando-me, chegaram à conclusão de que seria uma boa ideia ir em busca de algum tipo de ajuda em algum lugar. Nos preparamos para sair daquele local, a jovem Jane teve uma crise de loucura, atacou a doutora Aline. Ambas travaram luta corporal e num descuido de Jane a doutora sacou a pistola e atirou. Aquela coisa estava reduzindo toda vida em cadáveres.

Justamente por não saber muito sobre os acontecimentos e ter certeza de que a doutora havia falado a verdade, eu entreguei-me ao choro, pois sabia que iríamos todos morrer um por um. Naquele momento estávamos isolados de tudo, como antes do advento da revolução das comunicações. Confesso que senti vontade de suicidar-me, mas em plena consciência, sem estar infectado com aquela coisa que nem sabíamos o que era.

— Dará tudo certo meu parceiro — disse Pietro com a mão no meu ombro.

Olhei para a doutora e perguntei:

— Se sua teoria está errada, nesse caso nós também estamos infectados como o professor, a aluna e a Luiza. Morreremos em uma questão de tempo da mesma forma. Certo?

— Não tenho certeza, estou desnorteada tanto quanto todos aqui.

Abracei minha esposa e minha filha, foi um abraço tão forte, como se fosse o último. Eu só queria oferecer segurança para elas, mas nem eu estava seguro diante daquela situação aterradora. Saímos, enfim, daquele local lúgubre rumo a qualquer outro lugar que pudesse ter ajuda. Naquele átimo sabíamos que não havia ajuda, pelo que tínhamos de informação nada podia nos salvar da praga. Estarrecidos, nos dirigimos para outra cidade. O silêncio reinou durante toda a viagem. Naquele momento estávamos mais unidos pelo espanto do que pela vontade de sobreviver. Adormeci, lembro que acordei já na cidade de São Guto, estávamos no centro, mal conseguíamos passar com o carro devido aos muitos cadáveres deitados sobre o chão, corpos brancacentos tingidos de vermelho, outros apenas brancacentos.

— Vamos descer e procurar algum sobrevivente como nós — disse Pietro.

— Não é uma boa ideia — respondi-o.

— Eu vou com ele — disse a doutora.

E desceram do carro, não sei o que passava-se na cabeça deles para quererem achar mais mortos como nós. Eu já estava com uma frialdade há tempo e mormente naquele instante. Escutamos disparos de pistola, era a doutora que havia acertado dois dos homens incomuns que vinham na direção dela. Pedi que Mili ficasse com Isa, que dormia profundamente. Evandro se encarregou de ficar com elas e antes que eu saísse para ajudar Aline, minha esposa segurou meu braço e disse:

— Não quero que você vá.

— Escute, Mili, precisamos sobreviver, preciso ajudá-los.

— E se você não voltar? Isa precisa da gente.

— Eu vou, mas voltarei para vocês.

De-lhes um beijo e fui ajudá-los. Dei um golpe em um dos homens enraivados e foi um nocaute fatal, um chute com impulso na cabeça. O outro veio em minha direção, peguei uma pedra e acertei em sua testa e ele caiu morto. Estava já há alguns metros do carro quando uma mulher atacou o carro com socos violentos. Evandro tinha um instinto protetor e nesse momento aflorou, desceu do carro antes que a mulher quebrasse o vidro. Antes que conseguisse dominar aquela criatura, pois já não era mais humana, Evandro foi surpreendido por outras que o dominaram e arrastaram para a penumbra da rua.

Pude ver Isa dentro do carro chorando e sua mãe desacordada. Foi o momento de maior desespero para mim.

O fim

Entramos no carro e saímos sem rumo certo. Mili após tornar os sentidos começou a tossir, na verdade, era uma crise de tosse que ela nunca tivera. Fiquei preocupado, aquela tosse não era normal, nunca é. Comecei a aventar, mas não queria chorar. A tosse amainou e Mili teve mais um desmaio, chamei a atenção da doutora que estava indolente.

— Sinto muito. — foi a resposta fria que ouvi.

— Não entendi, doutora. Seja mais direta, como assim "sente muito"? Explique.

Havia entendido perfeitamente as palavras da doutora: "sinto muito". A verdade é que foram pesadas demais para meus ouvidos, Isa ficaria sem a mãe e eu sem a esposa que tanto quis. Eu sei bem que a dor de perder alguém machuca a alma. Uma dor enorme que não passa.

— Sinto muito, sua esposa não suportará. Não entendo o motivo de ela ainda estar viva. Depois do ataque e arranhões que ela sofreu daquela velha já deveria estar… desculpa falar isso. Mas é o que geralmente acontece.

Sem medo abracei Mili, dei um ósculo em seu rosto e permaneci abraçado com ela por um longo período. Ela tossia muito, estava já repleta de secreção avermelhada e eu havia também sujado-me com a mesma. Isa estava no colo de Alice quando de repente senti algo agitar-se violenta e desordenadamente, era Mili. Desesperei-me, nada podia fazer, segundo a doutora ela morreria e eu preferi morrer no lugar dela. Não obstante ela parou, não achei sinal vital nela, estava morta, Isa gritava por ela aos prantos:

— Mamãe, mamãe, mamãe!

Ela não entendia tudo que acontecia, queria apenas o colo da mãe que já não estava mais entre nós. Acalentei-a por uns minutos e como se tudo estivesse contra nós o carro parou, não havia mais gasolina no tanque. Descemos do carro desorientados, estávamos na rodovia que ligava São Guto e Brakara, resolvemos caminhar em direção a próxima cidade que ficava a 3 quilômetros do ponto onde estávamos. Coloquei Isa no braço. Parecia loucura, mas na verdade era a única solução pois contrário morreríamos ali mesmo. Havia uma lanterna no porta luvas do carro e outra que pertencia a Evandro.

— Querida, nós vamos caminhar um pouco, a mamãe vai ficar dormindo aqui e esperando-nos. Tudo bem?

— Tudo. — respondeu com uma vozinha baixa e triste, os olhos brilhando repletos de lágrimas sem saber absolutamente nada do que estava acontecendo.

Tive que ser forte para enfrentar aquela situação, nos preparamos e iniciamos a caminhada cortando a estrada ao luar com nossos passos incertos. Após dez minutos caminhando Isa dormia em meus braços, por um segundo senti que seu coração não batia, ignorei por achar uma confusão dos meus sentidos, mas depois senti-a mais fria e então tentei acordá-la sem êxito. Depois disso não sei o que aconteceu. Só lembro de ter acordado em uma base militar, na verdade, um campo de concentração, havia dezenas de pessoas como eu, chorei muito. Nunca descobri o que realmente aconteceu, o que sei é que somos obrigados a obedecer um líder em um mundo dizimado, o que aconteceu já passou, é o que fizeram-nos aceitar; entretanto, não aceitei.

Leandro Ferreira Braga
Enviado por Leandro Ferreira Braga em 04/09/2023
Código do texto: T7878072
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