PEÃO PRETO PARA RAINHA BRANCA

O movimento do cavalo branco fez com que este passasse a ameaçar diretamente o peão do rei preto. Perder aquele peão significaria abrir mão do controle sobre o centro do tabuleiro e isso poderia ser fatal para as pretensões das peças pretas.

- Você é rápido no gatilho, mister Manoel. Reconheço que aprendeu bastante nos últimos tempos, mas ainda precisa treinar muito para começar a pensar em fazer frente a um grande mestre internacional como eu.

Levantou-se subitamente, tirou o velho casaco desbotado e jogou-o no sofá ali próximo, fez um rápido movimento com uma das mãos para despentear o cabelo. Deu a volta na pequena mesa e sentou-se, olhou a disposição das peças no tabuleiro e realizou um novo movimento.

- Você me menospreza, mister Max, mas acho isso muito bom. Sinal de que minha vitória será muito mais dolorosa para o senhor.

Manoel Taveira aprendera a jogar xadrez há pouco tempo, sempre havia visto aquele jogo como algo sem graça, muito silencioso para o gosto dele, uma coisa meio idiota em que duas pessoas ficavam olhando um monte de peças e de vez em quando movimentavam uma delas. Não tinha ação naquela coisa insípida. Mas isso havia mudado. Tudo mudou quando se viu sozinho naquele porão após o fim do mundo.

Quando aquilo que era conhecido como civilização humana deixou de existir tudo o que restou foram umas poucas pessoas perdidas na imensidão das cidades calcinadas. Manoel Taveira era uma delas.

Isolado em um porão, racionando comida enlatada na ilusão de que esta durasse até um improvável resgate salvar milagrosamente sua pele. Respirando um ar saturado e sem saber se lá fora era dia ou noite. Esse era agora o seu novo cotidiano.

Os primeiros dias naquele porão foram de um completo desespero. Sua cidade, sua família, seus amigos, sua namorada, seu emprego, seu time de futebol, seus projetos pessoais, tudo havia virado pó. Só restou ele e sabe lá mais quem naquela merda toda.

Houve o dia em que a velha caixa fora descoberta na empoeirada estante que compunha os poucos moveis do acanhado porão. Dentro dela um livro de xadrez para iniciantes e um belo conjunto de peças entalhadas em madeira. Tanta coisa para ele ter achado naquele buraco e ele vai descobrir logo um inútil jogo de xadrez...

*****

Uma longa, silenciosa e sangrenta batalha entre as peças brancas e pretas haviam desembocado em um capitulo final envolvendo uns poucos peões e seus respectivos reis. Cavalos, bispos, torres e rainhas já tinham sido destruídos. Os movimentos tinham que ser meticulosamente planejados, o menor deslize e a derrota iria abraçar um dos contendores.

- E agora, Mister Max? Nada mal para um simples filho de costureira, não é? Ainda insiste em não me reconhecer como seu algoz?

- Devo dizer que você evoluiu muito nos últimos tempos, mister Manoel, mas ainda lhe faltam o traquejo e a segurança que só um veterano de tantas batalhas como eu tem.

Encurralado em um canto do tabuleiro restou às peças brancas derrubarem o seu rei reconhecendo a vitória do adversário.

- Parabéns, mister Manoel. Hoje você foi superior e mereceu vencer, mas aviso-lhe que ainda restam muitas batalhas. Tornaremos a nos encontrar...

Manoel Max Taveira levantou-se em silêncio. Seu estomago acusava uma fome avassaladora. Estava na hora de abrir mais algum enlatado...

* Este pequeno conto é dedicado aos bucaneiros Affonso Luiz Pereira, Fernanda Rodrigues, Iolanda Pinheiro, Juliana Duarte Honorato, Max Rocha, Manoel Sobrinho, Manassés Abreu, Marise Castro e Vanessa Honorato, todos responsáveis por levarem-me aos mais distantes mares literários.

Jota Alves
Enviado por Jota Alves em 05/01/2024
Reeditado em 05/01/2024
Código do texto: T7969239
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