Dependente Em Tempo Integral

 

 

Prólogo Em Uma Carreira… Sniff!

 

 

No ano de 2XXX, um homem estava prestes a realizar um transplante de cérebro. Nesse século, a clonagem evoluiu demasiadamente a ponto de tornar obsoleta a necessidade de esperar o óbito de um doador compatível. Através de técnicas científicas avançadas, tornou-se possível gerar perfeitamente o órgão clonado do órgão de referência. O procedimento era caríssimo. Como se pode imaginar, somente alguns ricaços usufruíam dessa técnica. Já na hipótese de clonar um cérebro, as circunstâncias eram mais complexas, visto que a alteração de um conjunto de células nervosas poderia tornar o paciente uma pessoa inteiramente nova, com nova personalidade e sem as memórias que a tornaram ser o que era. Contudo, tais episódios eram raríssimos.

 

Sabe-se que uma vez um simpático senhor vendedor de hambúrgueres de rua, sofredor de alzheimer, conseguiu ser selecionado através de um programa do Governo a fazer a operação. Entretanto o transplante cerebral foi mal-executado. Depois de anos, ele milagrosamente se tornou o Governador. De administrar uma singela barraca de fritura, ele passou a administrar com excelência um Estado. Muitas riquezas foram geradas sob suas políticas. E não! Infelizmente ainda não somos capazes de criar políticos decentes. O caso desse senhor foi um em um bilhão, talvez trilhão. Que merda, não?  Enfim!

 

 

Fritando O Coco No Pó

 

 

Vamos, agora, conhecer o nosso paciente que está na clínica de transplantes. Ele é um homem adulto por volta dos seus quarenta e sete anos. Apesar da pouca idade numa era onde a estimativa de vida é de cento e vinte e cinco anos —, ele abusou excessivamente de drogas sintéticas por muitos anos até alcançar o ponto de lesionar severamente seu córtex pré-frontal a região do cérebro responsável pela tomada de decisão. Logo, ele não conseguia mais refrear seus impulsos. “Zumbificou-se”.

 

Longe dali, no laboratório de clonagem, o seu novo cérebro foi sintetizado perfeitamente e posto para transporte a fim de ser enviado até a clínica onde ele estava aguardando para o procedimento. Tudo saiu bem, mas deu bosta. Durante o percurso, o veículo transportador sofreu um acidente. Colidira com um caminhão de carga de peixe. Desafortunadamente, o recipiente onde acondicionava o cérebro foi gravemente violado. Sem muitas opções, os técnicos do laboratório tiveram que conservar o material biológico em um aquário que estava no caminhão de carga de peixe. Isso não foi à toa, pois o órgão clonado necessitava de um ambiente úmido para não ser depreciado.

 

Chegando ao local, os técnicos informaram para a equipe de cirurgia o ocorrido. Esta realizou testes e viu que o material biológico ainda poderia ser transplantado, mas, como permaneceu num espaço aquoso distinto do padrão, o órgão se tornou dependente da condição química da água do aquário antes de se ajustar ao ambiente fisiológico do homem. Assim, uma nova mudança de ambiente aquoso poderia desfazer notavelmente as suas características e transformar o paciente em outra pessoa. Ele já estava sem seu cérebro original. Estava vivo por máquinas. Não havia tempo para a síntese de um novo. Portanto, optaram em fazer a cirurgia, mas ajustando o processo.

 

Horas passaram... E passaram... Até que...

 

A cirurgia foi um sucesso! Cheers! Apesar dos pesares, o homem enfim poderia voltar a viver sua vida sem se preocupar com o poder das drogas sobre ele, porém havia um detalhe cabeludo... Um bem merecedor de mencionar: o homem agora portava um capacete, como aquele dos mergulhadores, no qual sempre deveria estar preenchido por água, mais os solutos típicos de um aquário, porque seu cérebro necessitava de contato direto com ela. De certo modo, era um aquário, mas os peixes aqui eram os seus olhos. Fizeram-lhe uma traqueoscopia para que pudesse respirar e inseriram nele tubos auditivos que ligavam seus ouvidos ao meio externo. Sensores ligados ao seu cérebro poderiam transcrever o que ele quisesse dizer em letras que surgiam no visor de seu capacete. Falar era impossível para ele. A cirurgia foi mesmo um sucesso! Um ex-viciado poderia voltar a viver normalmente… É, meu amigo, “normalmente”. Os médicos foram bem incisivos em orientá-lo a nunca esquecer de trocar a água regularmente. Esse procedimento era fundamental para que ele pudesse viver e manter intacto o seu cérebro.

 

 

Admirável Dependência Nova

 

 

 

Dois anos se passaram, e o homem religiosamente trocava a água de seu "aquário" regularmente. Já estava habituado àquilo. Houve, porém, um acidente ambiental na cidade o qual afetou as fontes de águas que abasteciam a região. As águas tornaram-se poluídas. O homem desesperado foi para a clínica receber assistência. Aconteceu que toda água da clínica também estava poluída. Visto a situação entre a vida e a morte do homem, levaram-no para o laboratório de mecânica. Lá instalaram nele uma bomba de purificação de água perfeita para um aquário.

 

Ufa! O homem pôde relaxar agora, mas o mecânico lhe disse que a bomba dependia de energia elétrica para funcionar. Então entregou a ele um carregador à bateria para casos de emergência quando não houvesse fontes de energia disponíveis. O homem retornou para casa e precisou instalar fontes de energia por toda a casa. Assim ele viveu… Melhor sobreviveu. E passava a maior parte do tempo em casa, sempre próximo de uma tomada.

 

 

Um Gole De Pinga Pra quem Já Tá “Bêbu”

 

 

Seis meses depois, um terremoto atingiu o principal ponto de distribuição elétrica da cidade. Um grande apagão assolou a cidade. O nosso estimado homem, já estremecendo as pernas, imaginou o quão na merda estava. Pegou o carregador e entrou em seu carro e se dirigiu velozmente para outra cidade. Lá também não havia energia elétrica, então ele foi procurar uma loja de carregadores. Encontrou uma, mas o vendedor disse que o estoque estava em falta. O homem desesperado relatou sua história. O dono da loja, por um momento, pensou no que poderia ser feito e “bingo!”, ele tinha estoque de placas de energia solar. O preço delas era salgado, mas o homem não se importou em pagar. O dono da loja então as instalou em seu capacete. Pronto, agora ele tinha energia para manter a filtração da água de seu capacete. As placas solares armazenavam boas quantidades de energia, logo a noite não o preocuparia.

 

 

Um Vício Para Sanar Outro

 

 

Desastres têm um senso de humor característico. O ano era 2XXX, como vimos, e nesse século, a humanidade fez um bom estrago no planeta. A poluição criou camadas densas na troposfera. Raios solares ainda as atravessavam, mas o limite foi alcançado. A Terra escureceu consideravelmente. O apocalipse da raça humana estava para chegar. Cientistas e políticos tinham planos de contingência. A escuridão não duraria para sempre, mas levaria muito tempo para reverter essa cagada que o ser humano fizera.

 

O nosso amigo de cérebro clonado desesperou-se. Não havia mais como purificar a água de seu aquário. A luz solar não lhe alcançava! O mundo se encontrava em poluição alarmante. Um litro de água limpa custava centenas de milhares em dinheiro. Todos os seus esforços nos últimos anos tornaram-se ineficazes. Abalado e deprimido, e cansado daquela vida de sujeição às bugigangas ele foi até uma praça.

 

Lá sentou-se num banco e ele se desfez de seu capacete. Este que fora sua prisão em nome da renovação de sua vida. Tirou do bolso uma unidade daquela droga que o levou a essa situação em primeiro lugar. Acendeu seu cachimbo e sorveu o conteúdo. Sua alma se acalmou, mas ele pôde sentir dores na cabeça, porém não se importou. Claramente elas eram do seu cérebro clonado se desfazendo. O homem realizou que sempre fora um dependente fosse de drogas, água, energia ou sol. No entanto, ali, sentado no banco da praça, ele estava em paz. Se antes ele era limitado a viver inteiramente, devido ao vício químico ou a mecanismos tecnológicos, ele escolheu fumar como um homem livre e morrer sem aflição.  

 

 

Epílogo "Brisalíptico"

 

 

Um mendigo, catador de lixo, ao perambular pela praça, vasculhando os lixos, encontrou o corpo do nosso homem. O mendigo olhou para um lado e depois para o outro, então recolheu tudo o que o nosso homem tinha e também levou o seu capacete de aquário embora, pois isso poderia lhe render uma boa grana para comprar aquela porção generosa de droga.

 

 

 

 

 

João Flávio
Enviado por João Flávio em 01/04/2024
Reeditado em 04/04/2024
Código do texto: T8032215
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