Primeiro dia

Isabel era uma engenheira cartográfica de uma empresa comum. Ela ainda era nova na profissão mas queria construir uma carreira invejável. Sempre entrava nas Passarelas Virtuais — locais acessados através de seu computador cerebral — para pesquisar sobre novas oportunidades na área e fazer cursos de atualização. Sem dúvidas era esforçada em sua profissão.

Um dia recebeu uma mensagem de alto nível, o remetente era a BrasDATUM, a maior empresa de geotecnologia do planeta. A voz gravada dizia para comparecer à cede da BrasDATUM. Ela ficou muito animada pois, “uma oportunidade dessas não se tem todo dia”.

A empresa que a chamara não era qualquer companhia, foi fundada em 2021 como uma empresa de cartografia, mas então expandiu os negócios ao longo dos séculos para diversas áreas, inclusive construindo uma malha de trens a vácuo e magnéticos que passava por todos os trópicos e meridianos da Terra. Em alguns dias, a empresa iria completar quinhentos anos, cinco séculos governada pela mesma família e há quatrocentos a frente da primeira uma Nação Privada.

No seu grande dia colocou seu melhor terno, um cinza com detalhes pretos. Ela foi de madrugada pegar uma das linhas de trem e chegou na cede numa região um dia conhecida como Brasil. Ao entrar no prédio, ficou maravilhada com a grandiosidade e suntuosidade de cada detalhe.

— Senhorita Sussel, sou Carlos e serei seu guia. Me acompanhe por favor.

Disse um androide de terno, com cabelos que eram semi-transparentes e cujos olhos eram mecânicos mas cheios de vida. Há alguns anos que os androides começaram a entrar com processos judiciais para ganhar sua liberdade e serem reconhecidos como cidadãos. A BrasDATUM foi a primeira nação a conceder cidadania para todos os androides e permitir a união entre androides e humanos, esta foi decisão da Presidente Geral Tarsila logo quando assumiu o posto.

Isabel olhou nos olhos de seu agora igual, sorriu e encheu os pulmões com confiança.

— Estou à sua disposição!

O androide devolveu o sorriso com seus lábios metálicos, se virou e começou a andar em direção aos elevadores a vácuo.

— A senhorita foi chamada aqui para falar diretamente com a Presidente Geral. Peço que não seja grosseira, ela não tolera fugir do protocolo.

Isabel sentiu um frio na espinha pois nunca havia falado com alguém desse nível, apertou as mãos e tentou se acalmar “afinal, ela me chamou, eu tenho a vantagem”. E o androide continuou:

— Ao chegar na sala, a senhorita deverá se ajoelhar e por suas duas mãos nos leitores de digitais no pé da escada que leva para a mesa dela, depois deve encostar a cabeça no degrau para ser feita a varredura no seu computador cerebral. Quando acabarem essas etapas de verificação de identidade, faça o que ela disser.

Eles entraram no elevador e lá o guia deu mais instruções para Isabel até até chegarem ao último andar disponível. Saíram para um corredor, foram até a outra ponta onde havia outro elevador e subiram até o antepenúltimo andar, quando a porta se abriu a convidada pôde ver o grande salão com o pé direito alto, grandes cortinas emoldurando algumas janelas e algumas paredes, muitos servidores e várias mesas com terminais onde o computador cerebral de alguns humanos e androides estavam conectados, trabalhando. No fim do salão havia uma escadaria que levava a um balcão circular com uma grande janela no fundo, a frente desta janela estava Tarsila, a Presidente Geral, que olhava fixamente para Isabel, de sua mesa terminal, com uma expressão séria e rígida. O guia então fez uma mesura e se virou para a convidada quebrando o silêncio monumental do salão.

— Daqui em diante a senhorita prossegue sozinha, já lhe passei as instruções.

Isabel ficou nervosa e parou para pensar que nem ao menos sabia o motivo de estar ali. Começou a suar nas costas, mesmo assim assentiu com a cabeça.

— Certo, obrigada pelas dicas.

O androide sorriu e foi embora, a moça tomou coragem e andou até a escadaria, fez os procedimentos necessários e só após todo o protocolo ser cumprido Tarsila se levantou, mostrando seu terno de brocado preto com gola mandarim e detalhes em branco.

— Venha, sente-se.

Ao dizer isso, vários finos paralelepípedos saíram do chão à frente da mesa e se configuraram em uma cadeira. Isabel subiu em silêncio e se sentou, Tarsila fez o mesmo.

— Senhorita Sussel, uma jovem brilhante que foi demitida hoje. Devo dizer que é uma pena…

Isabel ficou confusa e isso era visível em seu rosto, mas a empresária sorriu levemente e disse.

— No entanto, foi contratada pela BrasDATUM. A partir de hoje a senhorita trabalha diretamente para mim. Suas qualificações me chamaram a atenção e por isso eu gostaria que hoje você fosse me representar em um grande evento, um que será para comemorar os quinhentos anos do meu império. Acredito que esta oportunidade é ímpar e por isso tomei a liberdade de já deixar tudo pronto para você partir agora. Algum problema com isso?

Isabel não sabia o que dizer, ficou muito nervosa e sua expressão de confusão parecia não surpreender a empresária. Ela estava muda, como se a voz houvesse sido roubada enquanto buscava entender tudo aquilo. No entanto, ela entendeu que agora tinha uma chance de construir uma carreira sem precedentes, já começaria praticamente no topo, ela sorriu e quis chorar pois viu que sua vida iria mudar para muito melhor.

— Sim, é claro, lógico. Como vou para lá? Onde é?

Tarsila sorriu um pouco mais, mas sem perder a postura rígida.

— É numa cidade estado chamada República Livre do Brasil, o último território brasileiro que não foi comprado ou conquistado pela minha família. Você vai para lá anunciar um novo produto e firmar um tratado de paz. Esta será a comemoração dos mil anos. O produto é um drone que irá georreferenciar toda a cidade para poder entrar no nosso sistema global. Agora pode se retirar da minha sala, Carlos a está esperando lá fora para levá-la até a nave, lá você poderá ler suas instruções e o discurso que preparei para que você faça. Então adeus.

Prontamente Isabel se despediu, fez uma mesura sorrindo e desceu as escadas sorrindo mais ainda. Carlos a levou para a nave e lá ela pôde ler a respeito de todo esse grande evento que convocaria toda a cidade. Do alto, viu rapidamente a paisagem urbana super desenvolvida se transformar em prédios antigos marcados por guerras passadas. A nave pousou no pátio dos três poderes e de lá foi direto para o palanque, onde viu o presidente e toda a população a observando.

Isabel estava tão feliz com seu novo emprego que nem mesmo estava nervosa. Prontamente fez a solenidades e no final trouxeram uma grande caixa preta onde o drone estava. Ela foi para a frente do objeto e começou a ler o discurso que era projetado em seus olhos.

— Esta carta que lerei é da Presidente Geral Tarsila Coelho Herenio. “Caros cidadãos da república Livre do Brasil, caro Presidente, ministros e demais autoridades, é com grande pesar que peço desculpas por não comparecer, mas espero que minha Secretária Geral possa lhes causar tão boa impressão quanto eu poderia.

Fez uma pausa, aparentemente esse era o seu cargo. Seu entusiasmo aumentou e por isso continuou com mais euforia.

— “Nossas nações viveram em guerra por séculos, o povo desta terra a conhece bem, conhece seus esconderijos e segredos, motivo por já ter sido conquistada por meus ancestrais e retomada diversas vezes, mas agora isso é passado. Quero abandonar todas as mágoas de dias obscuros e construir algo novo! Hoje, minha Nação Privada completa quinhentos anos e vejo que não podemos mais prosseguir com hostilidades contra nossa nação irmã, minhas intenções são sinceras, visto que desde que assumi o manto de Presidente Geral eu não os ataquei e sim iniciei negociações para que este dia fosse o grande presente para nossos povos. Que a paz seja simbolizada por vocês entrarem no nosso Sistema de Informação Geográfica, tudo graças ao novo drone, que será lançado hoje no mercado para atualizar os sistemas do mundo! Que seja lançada a paz!”

Quando Isabel terminou o discurso a grande caixa se abriu e o drone foi fazer o seu trabalho. Enquanto isso, a nova Secretária Geral foi levada para a cede do governo para um almoço oficial. Lá, teve boa desenvoltura com os políticos mas, como leu na nave, não disse que havia sido contratada naquele mesmo dia. Após algumas horas de conversas bem humoradas, um oficial do exército irrompeu pela porta do salão, ele estava completamente ensanguentado.

— Estamos sendo atacados!

O homem desabou no chão, os políticos e Isabel não souberam o que fazer, logo após o ocorrido os seguranças entraram para escoltar todos da mesa para um local seguro. Isabel estava aterrorizada, já não sentia mais alegria, sentia medo pois acabara de ver um homem morrer e estava ouvindo explosões do lado de fora. No meio da escolta Carlos apareceu e puxou o braço de Isabel.

— Venha comigo, senhorita.

Ela não conseguiu responder, estava em choque, mas confiou nele, pois, era o mais próximo de algo familiar que ela tinha naquele lugar. Foi levada de volta pro salão e depois ao hall da cede para sair pela porta da frente. Enquanto desciam as escadas do palácio do governo, Isabel viu que naves da BrasDATUM estavam paradas sobre a cidade e tropas também estavam subindo as escadas do palácio, parecendo nem os notar. Não conseguia entender o que estava acontecendo “eles estão atacando a cidade?” ela pensou e depois gritou.

— Carlos?! Carlos?! O que está acontecendo?!

Carlos não respondeu e a levou para uma plataforma no meio do pátio. Eles foram erguidos até a maior nave que tinha no céu e então Carlos a conduziu para a ponte de comando, onde encontraram Tarsila ao lado de uma mulher fardada, a presidente se virou para Isabel e Carlos a empurrou no chão para se ajoelhar.

— Vejo que Carlos ainda tem muito o que te ensinar. Cristina, esta é Isabel, minha nova Secretária Geral, Isabel, esta é minha esposa, a Marechal Cristina.

Cristina sorriu, seu uniforme era impecável, a maioria do tecido era de um azul escuro que se alterava conforme a iluminação variava sobre sua superfície. O resto era branco e dourado.

— É um prazer conhecer aquela que tornou a nossa dominação do antigo Brasil completa. Você deve estar se perguntando o que houve, bom, o drone não georreferenciou os prédios daqui, mas sim as pessoas. Utilizamos redes integradas de nano robôs que se aderem ao organismo humano e se comunicam com nossos satélites. Eles sempre usaram a velha técnica de guerrilha, de se esconder e montar uma revolução, mas graças a ideia de Tarsila e seu papel tão bem desempenhado, ninguém mais escapará de nossos olhos.

Cristina rapidamente se virou e voltou a dar ordens. Isabel foi tomada por uma raiva profunda e se levantou, jogando Carlos para trás.

— Vocês são loucas! Traíram aquelas pessoas! Me enganaram, mataram pessoas inocentes e quase me mataram!

A garota correu em direção a Tarsila, mas Cristina rapidamente a acertou com um soco no estômago e Isabel caiu no chão com falta de ar. A presidente se abaixou, ainda séria e sem demonstrar raiva.

— Vou entender a sua raiva e quebra de protocolo como efeito de um primeiro dia de trabalho estressante. Se quiser continuar nesse cargo, vai ter que aprender a se controlar, pois, ainda tenho muitos planos para minha gestão e não vou tolerar crises de consciência.

Tarsila se levantou e Carlos fez menção de pegar Isabel, mas sua chefe o parou levantando uma das mãos. Isabel ficou no chão e começou a chorar desesperadamente ainda sem ar, só sentia raiva e medo, ela foi traída e sabia disso. Ela sentiu que não podia fazer nada e que confiar nas boas intenções de uma magnata da informação foi sua pior decisão.

Assinado, Antonio Core.

Antonio Core
Enviado por Antonio Core em 11/04/2024
Código do texto: T8039780
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