A NAVE E A FERA

Uma floresta já devastada? Somente um tigre rugindo?

Uma luz afinal, luzes... É uma nave resplandecendo sob a vegetação. Luzes distantes aproximando-se. A nave projeta-se no chão. O tigre a vê. Está aplainada a nave brilhante... O tigre espanta-se. O seu rugido, a sua boca se abre, cratera, vulcão, início dos mundos?

O tigre não se espanta? O tigre só grita, defendendo-se talvez...

O tigre se respeita, azulado pela nave alienígena... O astronauta contempla o animal, a face furiosa do tigre. O vidro da nave é transparente como a vida que ali está. Seus olhos penetram naquela fúria leonina. São olhos de astronauta espantado...

Qual é a natureza deste tigre?

Acionar as bases da astronave. Desconhecer toda a guerra das civilizações? Quanto rastejo de crime sobre a sombra... O que o astronauta pensa, onde está o seu discernimento? A nave está mais iluminada, penetrando, assim, na ótica do tigre.

O tigre desconhecido, enjaulado por esta luz planetária... as formas que se rastejam pela terra.

O astronauta está extático. Suas mãos não acionam as bases.

Apenas seu olhar cintila o olhar da fera. O tigre está rugindo. A luz das estrelas é um lago colorindo estes gritos. Toda a luta de naturezas. A sutil teia de carnes de onde o homem arrancou sua sede. A luta desenfreada de matemáticas supersônicas divisando impérios. Impérios negados por este limite de nave que, daqui a instantes, ficará desamparada no vácuo luzente. O tigre estranhamente está rugindo. A nave ilumina-se cada vez mais. O astronauta parece querer penetrar com suas luzes geométricas na natureza felina: um resumo categórico. Ele está protegido pelo medo da fera e a redoma de vidro.

E dentro da nave circunflexa está guardado o tesouro desesperante de violência, desacordo, detenção de toda a natureza em transe no progresso; o coração do astronauta calcula as coordenadas do tempo. O tigre abre a boca de fera, uma cratera vermelha, uma dentição afiada.

Ao disco voador impressiona este rugido. O coração do astronauta solta as suas pancadas sucessivas. Um tigre parece nascer dentro dele. Lançar o leite do mistério sobre a decisão e o desconforto contínuos.

Uma aproximação de natureza envolvente, derretendo os ossos, esfacelando a consciência. O astronauta penetra com seus olhos mortiços naquela visão de tigre. Tigre dos olhos abundantes de luz, cortando a própria luz da nave, descrevendo arcos: olhar deflexo, ação, choque, momento de raios oblíquos. Os olhos do astronauta latejam e o tigre ensina a sua canção rústica do profundo da selva. Ser animal e passar por esta gelatinosa membrana que termina trágica. A espaçonave tremula em luzes. O tigre se fragmenta em figura distante. A sua selva de entranhas, a descoberta da presa é um bípede a entrelaçar os braços, a cair, girando para a descoberta. Onde estava o astronauta quando pensava o seu mundo, onde estava o seu mundo?

O tigre rugia além da convenção. A nave ainda estacionada.

Estaria o astronauta hipnotizado por natureza tão inferior? E ele conhecia aquela natureza? Não... O astronauta quis chorar. Sentiu o tigre rugindo mais forte do que o centro de controle. E era hora de partir. O universo como uma membrana, um corpo indecifrável, uma aventura projetando absorção.

Projetando já a próxima morte, um silêncio profundo, um negrume separado do burburinho oculto que grita a sua civilização.

O tigre continua em sua natureza, estranho à nave sob sua luz grita indecifravelmente, e o astronauta, mesmo protegido pela couraça da nave, sente o frêmito do ataque.

Como está próximo da floresta... ao mesmo tempo, dentro da nave, ao mesmo tempo, longe da civilização com sua tecnologia contingente em suas mão trêmulas como antes o médico o recebeu para a vida.

Aonde estaria o olhar deste astronauta, no tigre? Nas alavancas de partida, no redemoinho das galáxias, aonde se entregar? Desceria ele da astronave? Ficaria ele na astronave, e o tigre lá fora com força a rugir?! E tudo girou na cabeça do astronauta: os assassinos da espécie, o privilégio de seu vôo, a loucura dos povos, a natureza do tigre, as torturas terrestres, as solidões dos omissos... Onde estava o astronauta?

O centro de controle solicitou sua partida. O retinir do aviso soava pela astronave. E tudo girava na dimensão de sua natureza...

E o tigre lá fora, a rugir, a rugir... num ímpeto desconhecido. E o desconhecido também lá em cima, nas galáxias, também dentro da nave, dentro das máquinas, dentro do próprio coração da civilização.

E, tresloucado, o astronauta caiu sobre as alavancas, com tudo girando sobre sua face, sobre as águas de seus olhos. E a nave partiu e o astronauta partiu solitário e desesperado para as longínquas estrelas...

Fim

FERNANDO MEDEIROS

primavera de 2005