Os Nativos ou a Sociedade de Rochas Salgadas

Os Nativos ou

A Sociedade de Rochas Salgadas

(dizem que os nativos de Rochas Salgadas não morremj,antes,se transformam em peixes)

Um pescador recolhe um pedaço de papel que voa. Em Rochas Salgadas o relógio bate três horas da manhã. Todos dormem . Não existem luzes nas outras casas que circundam a calçada em torno do mar. O homem olha para cima . Vê o brilho estranho que cobre o velho chalet com uma luz própria crescendo e resplandecendo a noite. Tião teve uma visão!

Tião dá tapas na cabeça. Bebeu hoje .Olha de novo. Não tem mais nada . Segue caminho aliviado, com o papelucho na mão. A mulher já deve estar a espera para brigar. Quando Tião volta do mar ,sempre passa no bar e bebe uma cachaça. Chega no barraco. Crispa a mão com o volume e deseja que a mulher não proteste .Empurra a porta de madeira comida pelo sal . Espera. Tudo quieto. Tudo calmo. A mulher nunca mais brigou . Parou bem no dia que ele teve a visão.

Maria Benta desperta desanimada .Olha para o lado. Tião ronca. .Resolve se animar Beija . Toca de leve. Ele responde . Maria Benta monta e se anima.

Na manhãzinha a praia de Miraguaia é deserta e vazia. Três barracos, quilômetros de areia e mar. Benta tira a camiseta velha ,dá um mergulho , deixa o sal do mar curtir a pele, penetrar e limpar. Volta para casa . Acende o fogão de dois bicos de gás enquanto morde o sabugo de milho com os dentes fortes de índia. Milho limpa os dente,- pensa- ,café anima mais ainda . Sou feliz com o Tião e meus dois luxo,- olha para a televisão em cima do banco e o rádio no chão de barro ao lado do estrado que serve de cama. Prende o cabelo liso e escorrido de índia numa borracha , bota o vestido estampado e rodado o suficiente para esconder as formas rijas e a carne dura ,queimada, de cabocla. Calça sandálias de couro , arruma o chapéu de palha barata e sai. A carroça espera pronta. Maria Benta carrega com milho ,as trouxas de carne de siri e as rapadurinhas de leite. Rumam para Rochas Salgadas. Tem freguesas antigas e certas . Não compram nas peixarias ,querem o seu siri limpo e o peixe do Tião ,fresco ,tirado vivo . Às vezes pedem marisco e ela ganha um dinheiro extra. Ganha roupa também, remédio , doces e panelas.

- “Prá que mais? Prá que tudo aquilo qui as freguesa tinha si era feliz com Tião assim , si sabia si animá e si o home dela passava força prá ela tudo dia ?Tava cheia di freguesa qui nem sabia si animá .A Dona Letícia ,coitada ,num era ela ,era o marido. Sujeito ruim!Divia di sê purque era feio. Brancu ,bem brancu , cor di cabelu amarelo i duente ,usava aquelas coisa redonda prá enxergá. .Num gostava di pagá ,nem pru Tião. Tião disse prá ela qui home qui num gosta di pagá ,num gosta di dá .Pidiu prá não contá cumo é qui ela fazia prá se animá na vida. Ninguem soubesse, pudiam querê ela. Vivia quieta cum o segredo.Si argum quisesse ela num adiantava ,era tudo brancu num pudia ficá nu sol ,num pudia pescá com o peito nú qui nem o Tião ,ficavam vermelho qui nem camarão ,murriam . Home brancu é home fraco prá ela. Mulhé branca tumbem. Tinha pena delas.Gostava di home como o Tião, cor de caboclo , di indio.Si subessem o qui êle fazia nu barraco cum ela , as branca tambem iam querê. Tinha qui si cuidá.”

Maria Benta dá uma batida com o chicotinho no Fiú ,faz a volta e para enfrente ao calçadão. Abre a sombrinha porque o sol já escalda, distribui o síri de casa em casa ,vende milho verde e entrega as rapaduras na fruteira. Fiú reclama do sol do meio dia. Maria Benta bota a carroça na sombra e vai trabalhar para Dona Nicole. Faz limpeza .

O corpo retaco e forte da cabocla desenha uma sombra na porta.

- Bum dia , Dona Nicole !

- Oi , Maria Benta !Que fazes ? Já começas ? Toma um café antes ou um suco . Vem pega deste suco aqui. Como vai o Seu Tião?

- Deu pra tê visão , Dona Nicole. Onti chegou im casa tardi ,das bebida , num bateu nem cum a porta cumu sempre faiz e dá azar. Dispois mi olhou cum cara di bobo e mi contou qui viu essa casa aí du ladu toda cum luiz di noite.Tião disse qui brilhava ,qui a luis saia ,parecia qui ia voá. O caboclo tá duente ,dei chá prá ele.

- Ora , Bentinha , foi uma festa que teve no chalet ontem ,não te impressiona. .Aliás quero te avisar que ganhei uns panos de prato novos ,estão lá no meu quarto ,mas não quero que uses, são para guardar como recordação.Pus embaixo da boneca de trapos.

Maria Benta riu de lado ,meio escondido:

- Mi disculpi ,Dona ,mais qui buneca feia !Vai vê qui é purissu qui a sinhora nunca casô. Os moço qui gostô deu olho grandi. Essa buneca tem um olho grandi Dona Nicole ,qui até eu qui sei tirá tenho medo. É ela qui num deixa a moça si animá.

- Que história é esta de ser desanimada Benta? Tudo na vida me anima, eu gosto de ler ,comer escrever ,tomar sol... Posso ser solitária ,não ter casado ,mas sou animada ,sim, já te disse isto. Afinal , o que é para ti ser animada?

Maria Benta olha de viés para a casa cheia de coisas caras e encara Nicole:

- A sinhora é mais bunita qui toda essas coisa cara. A moça num pricisa di nada disso prá dá sorte, prá si animá. É só si animá.

Vira as costas e vai para os quartos limpar .Cantarola. Finge não entender a pergunta da patroa .Não pode contar. Pega a boneca , bate na janela. Está cheia de pó. Faz a cruz para não passar azar. Arruma a cama e segue limpando peça por peça.

Naquele dia não fala mais. Disse muito. Lembra o Tião ensinando que “num si diz pruma femia cumu sê fêmea , diz qui todas já nasci sabendo”. Pensa nas cinco mulheres que têm mãe índia e moram em Rochas Salgadas , para os lados do Rio Mareva . Todas sabem se animar. A mãe ensina a filha. A filha não conta para o pai que aprendeu , estraga a sorte. Santinha contou e nunca arranjou caboclo ,acabou ficando com um homem branco que nem barata.Aprendeu a ler, agora só lê, e segredou que o marido não gosta muito de se animar. Deus que a livre disto !Se conta a verdade para Dona Nicole ,periga o Tião começa a azarar, aí tem que aprender a ler que nem a Santinha .Maria Benta faz o sinal da cruz novamente.

Tião se espreguiça e nota o vazio da mulher na cama. .Liga o rádio . Ouve as horas. A barriga ronca de fome . Sacia se com o burriquete menor , que assa na brasa .Toma um gole de cachaça como sobremesa ,acende o palheiro, e como o mar esta bravo resolve não pescar. Na rede ,acomodado e preocupado , revê os fatos do dia anterior, ensimesmado :

-“Ô Tião tá fraco da memória qui nem us loco du postu das Saudis ,ô teve milagri aqui nas Rochas Salgadas.A num se qui seji os discu vuador qui escutou falá. Fosse o qui fossi num aceitava é qui tivesse cum as memória ruim cumu Bentinha falou onti . Verdadi é qui adespois da visão a vida meiorou . A Benta nem brigô di noite ,nem quando quis aproveitá , deixô, i hoji di manhã deixô êle durmi ,num acordou, si animô sozinha”.

Abre os olhos ,satisfeito. Desabafou .Falou só e serenou . A memória esta boa. Decide não contar para ninguém mais o que se passou no chalet. Esquece como comumente faz para não se incomodar. Pensar é difícil. Vai ver o mar. Está calmo. São três horas da tarde e, naquele momento, esteja o mar alto , tenha chuva ou vento ,sempre bate a saudade de estar no barco e no seu mundo , o Oceano. O mar chama . Os peixes abrem a boca, querem morrer no seu anzol. O mar é para o seu dia, a terra é para a noite , a terra é Maria Benta com todos os prazeres , sulcos ,subidas, descidas e recôncavos que seu corpo pode oferecer para o pescador que sorri feliz. Tudo está resolvido .A vida melhora quando a mulher perde a brabeza .

Tião ficou muito tempo em casa desta vez para se recuperar da visão. Esfrega os pés contra o chão ,sente a terra . Caminha para o barco. À noite vai voltar para a mulher , cheio de peixes , cheio do vigor das ondas do mar. Empurra o barco por sobre as ondas, atira a sacola e pula, acomodando se no banco. Leva um trago ,o lampião, as linhas para pesca, a rede , pão e peixe seco feito por Maria Benta. Remexe na sacola à procura de algo e solta um palavrão:

- Bosta! Num truxe aquele papel qui mi dá sorte desdi o dia das luzis. Achu qui deixei no bolso da calça. Maria Benta vai guardá. Só num sei si vou tê aquela sorti cum us peixi qui tive nus ultimo dia.

A pequena embarcação ultrapassa a rebentação guiada pelo braço forte do pescador. A maresia brinca nos cabelos de Tião , fala , assobia e canta. Tião começa a entrar Oceano adentro e já está sorridente:

- Ah ,esse meu amor por este mar de dia e pela minha cabocla di noite! O pescador grita , fala sozinho e canta a altos brados, balançando de uma onda para a outra. O mar guarda todos os seus segredos -pensa Tião -, pois há anos escuta diariamente o relato da sua vida. Aqueles que pensam que ele , Tião , é louco e fala sozinho estão enganados. Tem o oceano que o ouve . Tem os botos , as arraias , as sereias , os mariscos, as tatuíras, as sardinhas , os peixes espadas e o bagres como aliados. Sem falar nos enormes leões marinhos que moram na ilha da Pedra Encantada ,no meio do mar, e que pulam de volta na água por respeito ao pescador, quando este se aproxima no Gaivota das Ondas.

Tião olha para cima e para o horizonte , adivinhando o tempo. Nunca foi atrás das previsões meteorológicas , antes acredita nas ondas do céu , como chama , habitualmente , as nuvens . Através da forma que adquirem e da cor do céu , decide se vai ou não sair para a pesca. E hoje , chegou a ver uma nuvem com jeito de anjo ,outra com a cara do menino Jesus . O rádio berrava que podia vir tormenta , mas ele acreditou no céu onde havia , momentos depois ,um enorme arcanjo branco desenhado. Sentado , sorridente e solitário no oceano neste dia , o pescador retoma a rotina e conta para o mar amigo que o escuta:

- "Pois é , Tião veio sozinho hoji , velho amigo. Ninhum cumpanheiru quis ví, mais Tião olhô e viu qui as nuvim era favurávil . Maria benta chorô ,mais eu agarrei bem minha cabocla e prumetí qui voltava cum peixe i animava bem ela hoji di noiti. Ôta qui cheio di ondão tu tá hoji ,amigão! Tá caprichoso!Brabão mesmo!Quanto mais brabu mais o pescador gosta di tí. Ti amanso qui nem amansei a Benta , qui nem fiz cum todas minhas amanti. Cum esta mão cheia di caroço ti faço carinho nas tuas onda ,nas tuas revolta e ispero a noite chegá prá ti durmí i eu pescá".

Acende a lanterna e prepara a pescaria , pois a noite vem vindo.

A rede mergulha e o pescador relaxa, aguardando para que desça o suficiente e que os peixes entrem . Aproveita para fumar um cigarro , comer o peixe ,pão ,e tomar mais uns tragos da marisqueira . O silêncio desce quebrado somente pelo barulho das ondas em torno do casco do barco. O pescador dorme tranqüilo. Conhece as noites de mar em Rochas Salgadas , são sempre serenas.

O barco balança, sobe na onda que se forma e balança novamente e sobe mais ainda, acorda o pescador estonteado ainda pela cachaça e os devaneios que, em pé, enfrenta. Grandes ondas quebrando espaçadas, cantando ,e após serenando até levantar novamente. Mas se vai a última e tudo fica quieto, a tempestade acalma .Tião está distante ,longe mesmo do casebre, mas pode ver a costa da praia onde mora.

Naquela noite a música do mar atrai , entra orelhas adentro, adormece, depois acorda e agora o embriaga.:

-"Parece musica das sereia. Ê que qui é aquilo? Ali ,aquele peixe prateado tudo iluminado, rodiado pelos boto?". Tião pensa no Zé, velho amigo pescador que com ele andava pelo oceano, agora morto em suas águas e pensa em vários outros amigos que já deixaram Rochas Salgadas pelo mar, alguns jovens, outros meninos. Súbito vários botos põe a cabeça de fora em torno do peixe iluminado e todos falam ,se identificam como os velhos amigos mortos e a sereia canta e canta e canta. ...E Tião entende o chamado e entende toda a magia da sua praia em um milésimo de segundo. Não há cemitério em Rochas Salgadas, todos morrem no mar, mas agora sabe que as mortes não são por serem pescadores , mas sim amantes do mar.

Chegou a sua hora. O caboclo olha para a praia mas não há mais sedução, nem encanto, nem vontade de retornar. Toda a magia se concentra em torno dos peixes cantadores e de todos os amigos queridos ,antigos ,que o rodeiam. A cabeça rodopia. Tião mergulha na música, ondula nas ondas, brinca com os botos, bota o olho no barco ,

e com uma rabanada de seu potente rabo o boto o afunda.

Maria Benta, á tardinha, todos os dias, desce á praia para olhar o mar. No mesmo horário ,um boto enorme ,preto ,levanta nas ondas e mete o olho em Benta e a segue de dentro do mar em seus passeios diários .Maria Benta sabe que é Tião, disfarçado de peixe que a persegue ,por isto nunca mais se casou, nunca mais se animou ,por causa do olho grande do Tião Boto pondo azar nela lá de dentro do mar.

Suzana Heemann

Suzana da Cunha Heemann
Enviado por Suzana da Cunha Heemann em 02/05/2008
Reeditado em 29/06/2008
Código do texto: T971540
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