Os dois faróis de taba


Na estrada vazia, num final de tarde de forte chuva, o sargento Henri McTinn caminhava em direção ao farol, usava uma pesada capa de chuva, presente de um marinheiro que encontrara no continente alguns dias antes de chegar ao seu solitário posto de trabalho na Ilha de Taba. Apesar de protegê-lo da chuva, a pesada capa parecia tornar mais longo o caminho do alojamento até o farol. O vento soprava-lhe nos olhos com tanta força que mal podia enxergar. As únicas forças que impulsionavam o velho e gordo sargento eram o cumprimento do dever e sua própria consciência: precisava acender a chama do farol, já que a escuridão da noite se aproximava.

Enquanto caminhava, McTinn pensava no terrível acidente que acontecera no inverno passado. Um navio arrebentara-se contra os arrecifes, matando todos os tripulantes e 52 dos 60 passageiros, totalizando 70 mortos. Tal fatalidade acontecera, segundo relato dos poucos sobreviventes, por erro humano. Afirmavam eles que o farol encontrava-se apagado naquela noite trágica. McTinn lembrava-se do triste destino do cabo Jacobson, colega de trabalho que na noite do acidente era o responsável pelo farol. No sexto dos oito dias de jornada que cumpriria na ilha, após beber todo o rum encontrado numa garrafa na praia, Jacobson, embalado pelo efeito do álcool e o barulho da chuva, aconchegou-se nos braços traiçoeiros do sono. Só acordou na manhã seguinte. Ouvia ao longe sons que lembravam vozes humanas, pensava estar sonhando. Como poderia ser vozes o que ouvia se estava sozinho naquela ilha? Seria a lancha da marinha trazendo seu substituto? Descartou essa possibilidade já que só seria substituído no dia seguinte. Quando vislumbrou a realidade, num salto pôs-se de pé; correu em direção à praia e ficou horrorizado ao ver vários corpos estendidos na areia, a grande maioria estática e, entre eles, alguns moribundos ensaiavam leves movimentos e gemidos. Apesar de desesperado, o infeliz ainda socorreu os poucos sobreviventes e registrou no seu diário todo o ocorrido, para logo depois, tomado pelo remorso, subir a escadaria do farol e atirar-se contra as pedras. Seu corpo foi encontrado pelo seu substituto, na manhã seguinte, junto aos corpos das vítimas do acidente. Em sua mão, Jacobson tinha um bilhete onde assumia sua culpa e pedia perdão às famílias daqueles infelizes, que afirmava ter matado com sua irresponsabilidade.

McTinn acreditava que tomaria a mesma trágica decisão de Jacobson caso fosse ele o responsável por tamanha desgraça. Não suportaria ser responsabilizado por tantas mortes. E assim, continuava sua lenta marcha em direção ao seu objetivo. Quando já chegava à base do farol, estrategicamente construído no alto de uma colina, o gordo sargento teve a infelicidade de tropeçar no primeiro degrau da escada, sendo lançado ao chão com violência. Desesperado, ele percebeu que estava a rolar ladeira abaixo em direção ao precipício. Só vinha à sua cabeça uma velha oração que sua mãe lhe ensinara quando ele ainda era criança. Nessa oração, pedia que todos os santos e forças existentes entre o céu e a terra intercedessem por ele. Foi quando sentiu um forte puxão por baixo dos braços, era como se alguma força sobrenatural atendesse seus pedidos e o tivesse segurado pela pesada capa que, até aquele momento, só o havia atrapalhado. McTinn percebeu que seus pés não tocavam o chão. Estava ali pendurado pela capa na ponta de uma pedra à beira do precipício, como se estivesse num cabide. 

O medo da morte e a impossibilidade de acender o farol levaram o velho sargento ao desespero, fazendo com que perdesse os sentidos. No seu subconsciente, como se num filme, viu passar toda a sua vida. Lembrou da sua bondosa mãe, que morrera quando ele mal entrara na adolescência. Sentia muitas saudades dela. Recordou sua carinhosa esposa e seu belo casal de filhos, gostaria de ter mais tempo para ficar junto a eles. Do seu pai não tinha lembranças, já que nunca o conhecera. Só sabia dele o que sua mãe lhe contara: era um forte marinheiro pelo qual ela se apaixonou e que a única coisa importante que lhe deixou, segundo ela, foi o pequeno Henri McTinn. 

Num estado de semiconsciência, McTinn, pendurado como um pêndulo, castigado pelos fortes pingos da chuva e preocupado com os riscos para as embarcações que costumavam navegar ao largo, imaginou ouvir passos subindo as escadas do farol. Pensou consigo mesmo: "eu devo estar sonhando, como é possível esses passos se estou aqui completamente só e inerte?" Ficou estarrecido quando percebeu que a luz do farol cortava a escuridão da noite, como lâminas de aço reluzente, ofuscando-lhe os olhos molhados de chuva, lágrimas e sangue, que escorria de um corte na cabeça.

Apesar de nada entender, McTinn sentiu em seu coração um alívio acompanhado de inexplicável felicidade diante daquela patética situação em que se encontrava. Lembrou da oração que fizera enquanto rolava pela colina; acreditava ter sido realmente ouvido e atendido. Só sentia vontade de agradecer sem saber realmente a que ou a quem. Chegou até a esquecer que ainda se encontrava em perigo. Aquela capa pela qual estava pendurado poderia não suportar o seu peso, apesar de parecer ter sido fabricada com esse intuito, já que era confeccionada com um material bastante resistente. 

A luz intensa do velho farol emocionava McTinn, confiante de que os navios que passavam ao largo estavam a salvo dos arrecifes. Ele chorou como criança e, como tal, adormeceu exausto com seu próprio pranto.

Acordou aos gritos: 

— O farol! Preciso acender o farol!. 

Percebeu então que alguém o segurava pela mão, pedindo-lhe calma.

— O sol está forte lá fora, senhor, e o senhor está a salvo!

— Onde estou? Quem é você? Indagou McTinn ao estranho.

— Sou o seu médico, senhor, está tudo bem agora, o senhor só precisa repousar.

Aos poucos, as lembranças voltavam à mente do sargento. Ainda não entendia direito o que tinha acontecido. Fora informado de que estava inconsciente há três dias naquele hospital. Ficou sabendo do seu resgate. Os marinheiros, tripulantes da lancha que levava seu substituto, haviam-no encontrado pendurado no precipício. Um dos bolsos da capa se encaixara caprichosamente na extremidade de uma pedra pontiaguda, segurando seus cento e poucos quilos. Todos consideravam ser McTinn um homem de muita sorte. Era motivo de risos quando perguntava se o farol estava aceso naquela noite e sobre quem o havia acendido. Davam-lhe como resposta uma outra pergunta: - Quem poderia ser além de o senhor, sargento?

Percebendo que não era levado a sério e temeroso por acharem que estava perturbado mentalmente, McTinn resolveu não mais falar sobre o assunto. Não sabia quem foi, mas tinha certeza não ter sido ele quem acendera a chama do farol naquela noite. Decidiu que chegara a hora de pedir sua aposentadoria. Queria realizar o sonho de ficar mais próximo de sua esposa e filhos sem precisar passar tanto tempo longe de casa.

Depois de dois anos aposentado, McTinn ficou sabendo que a Marinha havia demolido o velho farol da Ilha de Taba e, mais ao norte da ilha, havia construído um moderno farol alimentado por gerador elétrico. Não entendia por que, mas, apesar de tudo que havia acontecido naquele farol, sentia-se triste com sua demolição.

McTinn nunca mais voltou a seu antigo posto de trabalho. Apesar de ninguém acreditar em sua versão do que havia ocorrido por lá, vários relatos de pessoas que navegaram ou navegam, até hoje, a costa daquela ilha, afirmam que, em noite de muita chuva, dois faróis brilham em Taba.

Elenildo Pereira
Enviado por Elenildo Pereira em 30/05/2008
Código do texto: T1011889